A Mercearia do Zé Totó

O dono da mais antiga mercearia em atividade de Belo Horizonte se foi

Cidade Instante
6 min readJan 19, 2023
Mercearia do Zé Totó. Raphael Morone, 2018.

O Zé Totó se foi. O dono da mercearia mais antiga em atividade de Belo Horizonte deixará saudade, mas um lindo legado. Lembro que havia descoberto a existência dela no Baixa Gastronomia Por Nenel e fiquei bastante instigado. Já faz algum tempo que são raras as mercearias em Santos, minha terra natal, e elas para mim sempre foram ambientes que geravam grande curiosidade, gostava da diversidade de ítens e a atmosfera de lugar mágico, como se viesse de um outro tempo. A mercearia do Zé Totó é mais do que isso, fica em um casarão antigo no bairro Cachoeirinha, um bairro que ainda tem muito de cidade do interior, com algumas ruas que sequer possuem prédios. O Cachoeirinha surgiu como vila operária e juntamente com outros bairros próximos, como Aparecida e Renascença, se tornaram famosos pelas fábricas de têxteis, empregando bastante gente vinda de todo o estado de Minas Gerais. Essa aura, mesmo com todas as modificações que a cidade passou, se manteve, e mesmo que as fábricas não estejam mais lá, existe uma brisa que te leva aquela época, de uma Belo Horizonte ainda se consolidando como capital e com vida muito concentrada na Avenida do Contorno.

Mercearia do Zé Totó. Raphael Morone, 2018.

Era 2018, eu passava pela fase mais aguda da depressão, fazia o que podia para me adaptar na cidade e tocar a faculdade, faltavam meses para formar e não queria de forma alguma ficar devendo qualquer disciplina, ia me arrastando se precisasse. Nesse período, eu fazia uma optativa sobre Belo Horizonte com a professora Vânia Myrrha, e então surgiu um trabalho para que apresentássemos um local de interesse da cidade, abordando questões históricas e arquitetônicas. Escolhi a mercearia do Zé Totó assim que ela passou mais detalhes de como devíamos fazer a entrega. E lá fui eu, alguns dias depois, rumo a mercearia.
Logo que cheguei, me deparei com um casarão antigo, dotado de uma arquitetura cada vez mais rara na cidade e cheio de marcas de um tempo inexorável em sua pintura. Os pixos me fizeram recordar o tempo que vivia e as escadinhas de concreto que levavam as portas evidenciavam ainda mais o casarão, apesar de que nada ali parecia poder tirar sua imponência, mesmo que degradada pelo passar dos anos. Fui ao balcão e disse ao atendente, um homem aparentemente mais novo que eu, que estava fazendo um trabalho para faculdade e pedi autorização para fotos. Nessa data, jogavam Brasil e Bélgica pela copa de 2018, e preferi ir após o jogo, para fugir da loucura de um dia de Copa do Mundo. Mas lá, no Totó, o clima era outro, a conversa era outra, a velocidade era outra. Fui logo abordado por Timóteo, curioso após ter escutado minha conversa com o atendente, e que naquele momento, conversava com Carlos. Eram idosos, aliás, boa parte das pessoas ali eram bem mais velhas do que eu, e isso não fez diferença alguma.

Carlos. Raphael Morone, 2018.

Começamos nós três a conversar sobre a vida, sobre meu trabalho, sobre a cidade de Belo Horizonte, sobre a história de cada um. Descobri que a Rua Boaventura, rua próxima de minha primeira morada na cidade, ali no Liberdade, fora desmembrada da Rua Itapetinga, uma rua longa próxima a mercearia e que corta o bairro do Cachoeirinha e outros bairros da região. Abaixo da rua, tem um córrego, e conta-se que o nome do bairro derivava desse córrego. Descobri outras histórias sobre o bairro, da rotina das pessoas, do espírito daquele lugar e nisso, Seu Baiano, outro novo amigo, insistiu em me pagar uma cerveja para tomar com eles. Recusar seria muito indelicado para aqueles três senhores que tinham uma gentileza abundante, virtude essa que em minha primeira ida a Belo Horizonte, em 2013, havia me dado um estalo para que eu mudasse meus planos e fosse morar lá.

Seu Baiano. Raphael Morone, 2018.

Zé Totó não estava nesse dia, aliás, o ritmo de idas a sua amada mercearia diminuía gradativamente por conta da idade e do zelo da família com a saúde dele. A mercearia existia desde 1943 e Zé Totó tomava conta desde a morte do seu pai, em 1950. Eram 68 dos seus mais de 90 anos dedicados a um comércio que vendia desde defumadores para prosperidade, amor e contra inveja até chapéus de palha. No dia, pude registrar ainda balas de diversos sabores e tipos, raquetes elétricas mata mosquito, pipas (ou papagaios), chinelos, dedeiras, enlatados e todos os secos e molhados que você pudesse imaginar. No mobiliário do balcão, vi alguns papéis com preços colados, pareciam residir ali há muitos anos e vi também uma pequena mesa com duas cadeiras, a única em todo o estabelecimento. Ainda havia espaço para o botequim que ocorria ali, no balcão, onde eu, Timóteo, Carlos, Seu Baiano e outros clientes estavam, de pé, enquanto um número razoável de pessoas entrava e saia buscando alguma coisa do infinito inventário da mercearia.

Timóteo. Raphael Morone, 2018.

Nunca mais voltei ali, nunca mais vi Timóteo, Carlos e Seu Baiano, e não pude conhecer o Seu Totó. Mas sempre serei grato pelo espaço que ele construiu. A partir daquele dia, algo mudou, algo que talvez seja difícil por em palavras, porque descrever os sentimentos é uma das mais difíceis tarefas que existe. Sei apenas que Belo Horizonte havia voltado a ser a cidade de quando cheguei, em um calorento fevereiro de 2015: uma Belo Horizonte com bairros cheios de mistérios a serem explorados, de gente sorridente e amiga. Obrigado por tanto, Zé Totó.

Mercearia do Zé Totó. Raphael Morone, 2018.

Abaixo, dois poemas que fiz e que acompanharam o trabalho que fiz para a disciplina optativa:

Poema para Carlos

Disseram-me que o Zé Totó era o melhor lugar para se fazer amigos
disseram que o Zé Totó era o melhor para estacionar
a cachaça poção, a cerveja latão a que abriga risos soltos
afagos bêbados
sabedoria dos cabelos brancos(Itapetinga antes do anel)
que bom que não cheguei atrasado

Entrei
parecia um lugar completamente fora da época que eu estava
a fita cassete estava com preço bom, o pacote de estalinho também
A Rua Aporé fica mesmo em 2018?
de pé no balcão, preferi comprar alguns reais em balas e tomar o refrigerante mais gelado que havia

A Mercearia do Zé Totó fica na Rua Aporé, 500, em Belo Horizonte — MG.

Raphael Morone é artista visual e trabalha com pintura, desenho e escrita. Vive entre Belo Horizonte e Santos. Pode ser encontrado no Instagram.

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