Errar e desejar na arte

Cidade Instante
6 min readMar 2, 2023

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Um tanto da minha prática artística pela perspectiva do erro e dos arrebatamentos

Raphael Morone. 2017.

Meu percurso com a arte sempre foi instintivo, errante. Foram poucas as vezes que fui buscar um curso, como quando criança e comecei a ter aulas de desenho numa escola de arte próxima de casa e me vi deslocado do processo de aprendizagem. Arriscaria dizer que, olhando para aquele tempo, tinha dificuldades para compreender as dinâmicas do desenho de um personagem da Looney Tunes e as instruções do professor. Talvez a metodologia não fosse a mais adequada para mim, ou talvez não me dedicasse tanto como deveria, ou os dois. Fui relegado, até por conta de um desentendimento com outro aluno, para uma turma mais nova, onde tinha que realizar atividades que não estava tão afim de fazer, como desenhar o que comi naquela semana ou decorar ovos de galinha com motivos de páscoa. E foi assim ao longo da vida, minha relação com a arte era curiosa e estabanada. Tive o privilegio de ter uma família que pode me dar acesso a alguns espaços e materiais, como quando estudei parte da vida em uma escola onde tive o melhor professor de arte que poderia ter tido, o Elder Savietto, e materiais como os lápis com cores brilhantes que eram moda no meio da década de 90. Lembro, também, daquela maleta artística que vinha com giz, canetinha, pastéis e alguns outros materiais e era toda decorada com a temática da Disney, aquilo era uma loucura na época. Tudo isso me afetou, me despertou algo, e tenho boas memórias de usar tudo isso desenhando personagens de video-games das revistas que de vez em quando comprava, ou mesmo pichando os muros do quintal de casa com o nome de um dos meus gatos.

Raphael Morone. 2017.

Ali cresci, nesse ambiente de abertura e estímulo, e chegou a adolescência. Minha relação com a arte havia diminuído e o pouco que desenhava eram rabiscos na carteira da escola e no máximo inventando pokemon nas aulas de Matemática. Nesse período, descobri a maravilha do design gráfico através de uma pessoa que meu pai contratou e fez cartões de visita para a vidraçaria que ele tinha. Essa pessoa, um jovem, devia ter uns 17, 18 anos, conhecia de cima a baixo o Corel Draw 4.0. Ve-lo fazendo os cartões no computador lá de casa foi incrível. Tenho uma imagem muito nítida na cabeça do rapaz desenhando tijolinho por tijolinho de um projeto paralelo que meu pai havia pedido a ele além dos cartões. A partir daquele dia, eu quis ser designer gráfico.
E fui, cursei, atuei um tempo na área mas nunca me estabeleci. Talvez não fosse bom o bastante para o que o mercado pedia na época, eu era muito devagar para fazer as coisas, não sabia usar os atalhos e tinha dificuldades para fazer recortes de imagens ou efeitos muito complexos no Photoshop. E vetorizar? Era um inferno. Essas atividades repetitivas limavam toda a vontade de criar, e isso me cansava, um cansaço mental que quando chegava a parte de criar, de fato, só queria entregar. Tive um pouco mais de felicidade nos freelas, que em sua maioria eram para a área cultural e o fato de ser freela me dava tranquilidade, além da liberdade artística para propor a solução que quisesse para capas de livro, cartazes e folders. O design é feito de detalhes e de muito planejamento, e sendo uma pessoa totalmente alheia a detalhes e com dificuldade de planejar, os freelas eram onde mais me sentia feliz, mas eram raros. Aos poucos, o amor pelo design foi murchando até simplesmente eu arranjar outro emprego nos Correios e ficar nele até começar a segunda graduação em Licenciatura em Artes Visuais, quando me mudei para Belo Horizonte. Tem muita história nesse intervalo, mas vou acelerar um pouco para me ater ao tema.

Raphael Morone. 2017.

O curso de Artes Visuais foi bom, muito mais teórico do que prático, exigia da gente estar sempre afinado com textos e livros, nos dando um arcabouço teórico bem interessante. Os debates em sala de aula eram estimulantes e me fizeram questionar o ambiente de ensino de arte, sobretudo na educação básica. Contudo, depois que formei, tinha pouquíssima experiência com a prática artística. Tivemos, sim, experiências bacanas com gravura, desenho de objeto, processos com livro de artista, mas ainda assim, faltava, e de certa forma, essa falta, foi o combustível para que eu começasse a experimentar fora da universidade. E de novo, como dito lá no começo desse texto, estava lá, eu, instintivamente, experimentando com canetas marcadoras, como aquelas da Stabilo, com lápis aquarelável, com pastel oleoso, e guiado por uma consciência um tanto nômade, assim como os arrebatamentos que me ocorriam, como quando cismei com as possibilidades de cobertura em uma determinada superfície que o pastel oleoso permitia, aquele relevo pastoso da cera, aquela sujeira e o contraste do pigmento com outro pigmento.

Raphael Morone. 2019.

Aquilo me deslumbrava e me guiava a experimentar em papéis diferentes, em superfícies diferentes. Era um desejo, isso que me guiava, e cegamente incursionava na próxima técnica. Fui para o lápis aquarelável, e ali estive imerso num processo completamente diferente. Havia métodos de trabalhar: molhar o papel e depois passar o lápis, pintar com o lápis e depois molhar com o pincel. Fazer manchas, deixar a gota d'água do pincel molhado se espalhar pelo papel de modo que fosse deixando manchas de tinta, demarcando a superfície como café derramado. Nisso, voltava as canetas marcadoras, que me davam a precisão que gostaria para desenhar por cima dessas manchas da aquarela. As vezes borrava, as vezes não, e continuava, um corpo errante na prática artística. Esse desejo que havia despertado no poder de cobertura e de volume do pastel oleoso me aproximaram da tinta acrílica, e atualmente é a técnica com que tenho tido mais prazer em trabalhar. Como diz Alice Lara, uma artista que admiro, a pintura te permite resolver certos problemas que o desenho por vezes não te dá, e isso faz com que esse território da pintura deixe aprofundar mais no tema, e nesse caminho, a pintura te oferece possibilidades, ou happy accidents, como dizia o saudoso Bob Ross.

Raphael Morone. 2021.

Hoje, mais velho, e tendo passado por tantas coisas boas e ruins junto da arte, creio cada vez mais na frase de que o caminho é a maior recompensa. Não trocaria as errâncias por nada, elas me moldaram como artista e como pessoa. Esse trajeto trouxe reflexões importantes, como lidar com a precariedade e questionar os modelos de ensino. Me fez perceber que o desejo, esses arrebatamentos que mencionei, precisam ser vividos, porque dali virá a substância ou a força motriz para os processos, sejam eles dentro ou fora da arte. Que possamos errar, desejar, sermos estabanados, instintivos e criarmos nossa própria jornada.

Raphael Morone é artista visual e trabalha com pintura, desenho e escrita. Vive entre Belo Horizonte e Santos. Pode ser encontrado no Instagram.

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