Ventiladores, exaustores e hélices

Cidade Instante
4 min readFeb 15, 2023

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Lembro quando criança, como era observar o mundo que habitava. Era mesmo um mundo, porque na minha perspectiva de criança, quase tudo era maior do que eu e me causava uma sensação estranha, que na época não tinha ideia do que poderia ser, mas que hoje penso que seria como os insetos do jardim, quando viam o jardim de casa, que para eles eram grandes territórios longínquos uns dos outros, conectados de forma intermitente por pontes, escadarias, ruas e avenidas feitas de partes de plantas e da própria terra seca nas bordas do canteiro. Isso, aliás, mudava de estação para estação, novas rotas surgiam ou deixavam de existir de acordo com o tempo e por vezes, a própria ação humana dos membros da minha família afetava essa dinâmica.
Nas brincadeiras que fazia, o chão do quintal era o lugar onde tudo acontecia. Sentado no piso quente com alguns brinquedos, o que era grande, se tornava ainda maior, como a palmeira plantada em um dos canteiros e parecia tocar o céu. Me recordo do seu tronco largo, cascudo e amarronzado, com um tracejado circular que subia até o frondoso topo de folhas compridas verdes e brilhantes que em dias ensolarados ganhava tons de esmeralda, refletindo o cerúleo de um céu limpo de verão.
Mas não eram apenas os canteiros e a grande palmeira que minha visão do mundo de cima dava pé. Logo após o muro rente a um dos canteiros havia a casa do vizinho, uma casa de madeira pintada de amarelo com detalhes verdes em que via apenas três coisas, coisas que marcariam toda a minha infância e se tornaram um dos meus primeiros arrebatamentos: hélices, telhados e antenas. Quero me ater as hélices, no caso, as hélices do exaustor daquela casa. Aquele exaustor era feito de material metálico e se não me falha a memória, pintado de verde, mas estava mais escuro, pela falta de luz e a corrosão, assim como as hélices, que nunca tinha visto girar até então. Fiquei por momentos olhando aquilo, curioso, fascinado, tentando entender aquilo e, novamente, alguns outros sentimentos que não tinha ideia do que eram. Aquilo me marcou, e marcou de forma tão intensa, que hoje penso que foi ali que meu instinto de artista nasceu.

Ilustração presente no disco "Narciso deu um grito" de Veronez. 2017. Raphael Morone

Sentia que precisava por isso para fora, de alguma forma, mas que, de novo, o eu criança não tinha como estruturar o pensamento, a não ser no desejo de procurar outras hélices e exaustores pela casa e pelos lugares que passava pela cidade. Enchia meus familiares de perguntas, aprendi que exaustores e ventiladores tinham um funcionamento semelhante, perguntei da escuridão do exaustor do vizinho, descobri o ferrugem, a pintura desbotada, por que da falta de luz no local, e aos poucos, essas coisas começavam a entrar na cabeça. Comecei a desenhar ventiladores, exaustores e hélices, fiquei o verão inteiro dedicado a desenhar e pinta-los, pedia para o meu avô me levar em lugares que haviam alguns desses para ver, ficava vários minutos ali, admirando-os. Em um dos passeios com meu avô, pegamos um barco para uma cidade vizinha e vi hélices nos barcos e nos navios que passavam o canal do estuário, vi exaustores num dos armazéns que ficava próximo a parada de barcos na outra cidade, vi ventiladores na vendinha do bairro.
Sei que em todas as pessoas reside uma força, algo que te leva a determinado desejo, e que é nesse território que nascem nossos começos, nossos intentos. Na minha trajetória como artista, passei a perceber que esse arrebatamento que senti na infância com os ventiladores, exaustores, hélices e um tanto de outras coisas era essa força que nos empurra, que leva essa curiosidade inicial a algo mais profundo, e é a partir dela que me movo para criar um poema, desenhos ou uma série de pinturas. Hoje, lembrando dessa história, percebo que sempre fui um observador para o que passa desapercebido, para os vestígios e para essas inscrições do tempo na paisagem. A arte, nesse sentido, me permitiu quando pequeno transformar esses arrebatamentos e impulsos em algo, sentia uma necessidade grande de colocar a interpretação do mundo grande que habitava e que muitas vezes não podia tocar. Desenhar ventiladores, exaustores e hélices era a forma que entendo que encontrei na infância para tocar o que não tinha acesso. Hoje, sou movido por essa mesma criança, que busca tocar um mundo que continua distante: do exaustor que nunca girou, do tempo que passou e enferrujou, dos vestígios deixados por alguém, do ventos que nunca senti daquele ventilador, da hélice da velha embarcação. A arte, para mim, funciona como um meio para acessar mundos distantes, como as partes de plantas e gravetos dos insetos do jardim do quintal de minha casa.

Raphael Morone é artista visual e trabalha com pintura, desenho e escrita. Vive entre Belo Horizonte e Santos. Pode ser encontrado no Instagram.

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