Edição 1 · As narrativas da cidade na perspectiva de Cecília Lima
Você já parou para pensar no caminhar? O caminho que você traça com seus pés, os objetos que estão ao seu redor e você nem percebe? Cecília Lima trabalha com esse ato e objetos que talvez não sejam importantes para nós. Nesta entrevista, a artista e estudante do Departamento de Artes Visuais (VIS) da Universidade de Brasília (UnB) conta um pouco sobre sua trajetória, pesquisa e as experiências durante a residência artística no Centro Espronceda em Barcelona, como uma das vencedoras do prêmio Vera Brant. Confira:

SG1: Como você escolheu ser artista e como foi seu percurso até a universidade?
CL: Eu sempre tive muito interesse pela manufatura das coisas. Quando estava na escola, sempre tive interesse nas aulas de artes, em fazer murais… E era algo um pouco obsessivo. Às vezes era um trabalho, mas eu fazia vários e ficava horas desenhando, pintando… Mas eu acho que o que me fez realmente escolher fazer artes, porque até então eu pensava em fazer um curso como Direito, foi uma aula de matemática do Ensino Médio. Lembro que o professor entrou na sala, deu bom dia para os alunos e ninguém respondeu. Estava um calor de agosto, horrível, e, mesmo assim, ele deu a melhor aula que podia. Eu fiquei muito impressionada e pensava: “quero encontrar uma ocupação na minha vida que pode estar o inferno que eu vou gostar de fazer aquilo”. Acho que há tantas outras coisas chatas que precisamos fazer na vida, que o trabalho deve ser um prazer. Pensando muito sobre isso, decidi fazer artes, porque era movida por essa paixão pelo fazer. Fiz a prova de habilidades e o vestibular, ingressando na UnB no segundo semestre de 2015, com 18 anos. Comecei a cursar as disciplinas, fiz Fundamentos da linguagem visual, fiz Desenho 1… Desenho 1 foi algo muito significativo, porque comecei a mexer com carvão, que é um material com o qual me envolvia muito; gostava muito dessa relação com o material, com o tocar, com a dimensão do papel… Eu fazia uns desenhos enormes. A partir de então, fui fazendo as matérias do curso, me descobrindo e estabelecendo uma relação de entrega. Por mais que fosse difícil, me esforçava para fazer acontecer.
SG1: Como se desenvolveu a sua poética?
CL: No terceiro semestre cursei Escultura 1, uma disciplina que foi um divisor de águas porque fiz um trabalho que começou a dar origem ao que é minha pesquisa atualmente. Foi um experimento a partir da cópia de um par de All Star que eu ganhei de uma colega da disciplina. Essa cópia é feita da maneira mais tradicional que se faz a escultura, com molde e cópia em gesso e cera. À partir disso, comecei a experimentar coisas com esses objetos. Em Escultura 1, já estava pensando essa relação da tridimensionalidade, da cidade e da performance. Então, o professor me indicou uma pasta de textos da professora Karina Dias (artista visual e professora do VIS) que falava sobre essa relação da caminhada e da viagem. Li a pasta inteira, devorei os textos e pensei: “é isso”. Fiz Escultura 2, comecei a trabalhar no Laboratório de Soldagem e Fundição da universidade e a dar monitoria lá. Foi um processo muito rico, aprender junto com as outras pessoas e pensar a tridimensionalidade com essas descobertas. Foi assim que percebi esse lugar da caminhada, do deslocamento, como um ato com potência poética porque, até então, eu caminhava por caminhar; e porque gostava muito de caminhar. Comecei a observar e a pensar bastante sobre esse ato. Esse trabalho sobre os sapatos (“Descalçar”), apresentei no Setor Comercial Sul.
SG1: Você falou sobre o caminhar, quais são suas principais referências na produção?
CL: Para mim, antes de falar as referências em si, preciso dizer que a minha relação com elas é da ordem da companhia. Não sei se vocês já leram a carta da Lygia Clark para o Mondrian, dizendo que ela pensa na pesquisa dele e que se sente mais na companhia dele, que já estava morto, do que na companhia das outras pessoas. Como no departamento temos poucas pessoas que trabalham com escultura, apesar de haver bastante gente que trabalha com instalação, sempre foi um lugar muito solitário. Tive poucas amigas e ainda há esse lugar de ser uma mulher que trabalha com escultura. Para mim, as referências me servem nessa relação quase que de companhia. Quando eu penso deslocamentos, a primeira pessoa que me vem à cabeça é Francis Alÿs, que tem trabalhos sobre empurrar blocos de gelo pela cidade e sobre caçar tornados. Outra artista, que eu acho as relações que ela propõe muito interessantes, é a Cinthia Marcelle. É uma artista contemporânea que pensa a relação do corpo com a máquina e com a arquitetura. A Maria Eugênia Matricardi, do Corpos Informáticos, porque acho muito interessante a relação com a fuleiragem e o corpo político. Acho que os trabalhos dela são muito sutis; um gesto mínimo, mas muito potente. O Kishio Suga que participou do movimento Mono-ha, mais ou menos contemporâneo ao Fluxus, em que relacionavam materiais orgânicos com materiais industriais em uma configuração mínima. Ele tem essa questão do equilíbrio com madeiras e pedras de maneira escalativa. E o Robert Smithson, que é uma referência pela forma como pensa seu trabalho, desde o ensaio “Passeio pelos monumentos de Passaic”, em que fala sobre entropia e monumentalidade, ao “Uma sedimentação da mente”, que eu sempre volto a ele, em que relaciona a construção do pensamento e a extração de elementos da terra. Há também outras referências que surgem de acordo com os trabalhos que eu desenvolvo.
SG1: Você pode falar mais um pouco sobre o seu trabalho atual?
CL: Atualmente, tenho pensado em duas áreas que me interessam muito. No início do ano, passei quarenta dias em Barcelona e lá tive uma experiência que nunca tive em Brasília, que era caminhar à noite. Tive uma segurança absurda para fazer isso e às vezes eu saía, ia comer, visitava algum lugar, ia à um clube de jazz e voltava para o lugar em que eu estava morando tranquilamente. Eu comecei a observar a cidade à noite e a perceber sua outra face. Um dia eu estava caminhando e cheguei à Sagrada Família, de Gaudí, que ainda não tinha ido visitar. Ela era uma grande nave alienígena, porque já é estranha de dia e à noite é muito bizarra, com as gárgulas, tudo apagado… E não tinha ninguém circulando, diferente do que é de dia, parece um formigueiro. Essa foi uma experiência que me impactou muito. O silêncio da cidade e o tempo de deslocamento, você poder andar na pista e não só na calçada… Todas essas coisas me chamaram muito a atenção. Essas coisas me mostraram que, em termos de poética, sempre há uma relação do trabalho com o mundo e com as coisas. No início da graduação, eu ficava pensando que precisava produzir, ir para o ateliê, até que entendi que a minha produção se dá o tempo todo em que eu observo as coisas e me relaciono com elas. Agora o que tenho debatido e tenho pensado é essa relação com os elementos noturnos da cidade. Comecei a caminhar à noite, a coletar e colecionar elementos que me chamavam atenção, como o papel de bala, que tem brilho. Tenho experimentado a partir desses elementos que brilham. Tem a fase de explorar, a fase da acumuladora compulsiva, catadora, e depois um terceiro momento de separar as coisas, lidar com elas e configurar o que estou pensando com elas. Esse tem sido o lugar da pesquisa. Outra coisa que tenho pensado, e que tem relação com a viagem e com Brasília, tenho observado máquinas de escavação, justamente pensando em qual o sentido de retirar coisas da cidade. Talvez o meu método, hoje, seja esse lugar da escavação das coisas, de revirá-las. Durante um tempo eu coletei pedaços de madeira e agora estou pintando eles.
SG1: Como você vê esse movimento de trazer para dentro da galeria objetos cotidianos achados na rua?
CL: Sinto que sempre há um descompasso. Isso é uma coisa que às vezes fica mais fácil de lidar, porque justamente são deslocamentos de objetos. A galeria proporciona um espaço para se relacionar com o objeto, que eu acho muito interessante em um sentido de ter um respiro, também espacial, para lidar com ele. Às vezes, proponho situações que só conseguiriam se realizar dentro da galeria. Tenho um trabalho que são umas telhas quebradas, o nome é “Kintsugi”. Estava trabalhando na maquete e caiu uma árvore no telhado, no outro dia eu recolhi todas as telhas. O que fiz na galeria foi pintar todas e reconstruir esse telhado. Acho que o espaço expositivo, ao mesmo tempo que é um espaço violento, um cubo branco, possibilita tirar muitos partidos dele. Têm trabalhos que não cabem, temos de ter consciência do trabalho, e não tentar forçar uma coisa que não cabe, nesse quadradinho, na galeria, porque às vezes você acaba matando o trabalho.
SG1: Sobre seu processo de andar nos lugares, como artista você vê a cidade, como a cidade te vê? Andando e recolhendo objetos.
CL: Acho que um exemplo muito engraçado é de quando eu estava no Setor Comercial Sul. Estava performando com os sapatos, tentando atravessar a faixa de pedestre e um cara que cruzou comigo disse: “Nossa! Isso é penitência, né? Só pode!”. Acho sempre muito engraçado, esse confronto com o outro pelas vias do estranhamento, do preconceito, mas nunca foi uma dificuldade. Também sou muito discreta, principalmente quando estou recolhendo coisas, a discrição ajuda a poder me concentrar. Uma vez, aqui na UnB, eu estava deslocando um bloco de gesso, da Colina até o outro lado, e passei bem em frente ao posto policial. Na hora que estava passando, vários policiais estavam sentados dentro da delegacia e um deles começou a gritar lá de dentro: “Isso que você está carregando é o que? Um cachorro?”. Só que o barulho do gesso é muito alto, e eu já tenho um problema de audição, então demorei muito tempo pra ouvir o policial gritando. Quando ouvi eu só virei de novo para o trabalho, mas na hora eu pensei: “Virei para o policial, faltam duas semanas para as eleições. Eu vou ser presa agora”. Eu falo rindo, mas fiquei com muito medo de ele me abordar. Depois disso, comecei a ter uma pessoa comigo cem por cento das vezes em que ia gravar esse trabalho, porque eu achava “poxa estou na UnB”. Achava que não ia acontecer nada aqui dentro, até que o policial me mostrou que não.
SG1: Fale sobre sua experiência no Vera Brant, como foi ser uma das indicadas, e como foi ganhar e ir para a residência? Muitos artistas têm o desejo dessa oportunidade. Como podemos democratizar esse acesso ao circuito de arte, principalmente para artistas que estão iniciando?
CL: Olha, democratizar o acesso, sinceramente gostaria de saber também. Acho que antes de tudo, sempre trabalhei muito, e tive uma dedicação muito intensa com minha pesquisa. Se existe alguém mais crítica com a pesquisa, essa pessoa sou eu, em minha relação com o trabalho. Então, fui selecionada para o prêmio, e na pré-seleção eram vinte e cinco artistas. Teve uma entrevista de cinco minutos, e nela você tinha que falar o que queria fazer na Casa Niemeyer. O que me ajudou muito foi sempre estar muito atenta a essa necessidade de saber falar sobre o trabalho, onde começa a minha fala. Se eu falo sobre o trabalho, ou com o trabalho, quem está falando primeiro, quais as questões dele. Fui selecionada nessa entrevista, que foi a parte mais tensa. Quando a gente entrou para a residência, eles tiveram que alterar as agendas de Barcelona. No início era pra gente ficar na Casa um mês, e depois disso um artista seria escolhido, mas tínhamos que fazer um plano de trabalho para apresentar para o conjunto de produtores e curadores em uma semana. Passei a semana estudando feito louca, desci na biblioteca e peguei todos os livros de arquitetura espanhola. Então, desde o início eu realmente tentei buscar uma relação com meu trabalho. Se era uma cidade, o que tem nessa cidade? Quais são as questões desta cidade? Políticas? Culturais? Como é a arquitetura dessa cidade? Tem um grande arquiteto, que é o Gaudí, como eu posso pensar nessa outra arquitetura? Como posso me deslocar nesta cidade? Vi que tinha uma malha de metrô incrível… Pensei nas questões, parecido com o que fiz na matéria com a Iracema (Iracema Barbosa, artista visual e professora do VIS), dezoito caderninhos que era meu plano de trabalho, e costurei todos. No plano de trabalho, apresentei a parte mais conceitual da pesquisa, e possíveis proposições , mas o que era mais importante era ter afinado essa questão conceitual. Era um objeto que eu poderia fazer as coisas que eu propus, mas eu também poderia fazer outras coisas com a cidade, estando lá, que varia de acordo com edital, de curador para curador. Teve um momento que os curadores discordavam entre si, ou concordavam. Não tem receita de bolo.
Quando eu cheguei em Barcelona, tinha quatro semanas, na verdade três e meia, pra fazer tudo. Não levei nenhum trabalho, fiz tudo lá. Depois, tínhamos quatro dias para montagem, eram cinco instalações mais ou menos. Comecei a andar, andar andar… Eu tinha levado uma bota e ela rasgou de tanto que andei; pegava o metrô e andava tudo. Lá, eu percebi algumas coisas que me chamavam muito a atenção. Por exemplo, tudo sempre estava em reforma. Então você tinha essa arquitetura com monumentalidade histórica, mas sempre cuidando para manter tudo que está ali há milhões de anos. Chamava minha atenção porque no Brasil não temos muito essa relação, derruba e constrói outro. Lá eles derrubam para construir outro igual. Comecei a recolher esses restos de construção das caçambas, elas eram todas organizadas. Uma tinha o tijolo marrom, a outra o vermelho, os azulejos… Ficava maravilhada com a organização. Depois, descobri que eles organizavam porque reutilizam tudo, não jogam fora; fica em um depósito. Se você derruba uma parede e daqui a cinco anos quer ela de volta, você utiliza os mesmo tijolos, o que é uma outra relação. Nas primeiras duas semanas, eu levava muita tralha pra dentro da galeria, carreguei um aquário do meu tamanho; carregava um monte de coisas. Tinha uns cinquenta tijolos do outro lado da rua, e eu passei a residência inteira namorando eles. No final queria fazer uma instalação com eles. Fiz e no outro dia devolvi. Os tijolos sumiram, alguém levou e ficou com eles.
Tive várias experiências, tanto com a cidade, quanto com um choque cultural muito forte. E lá, entre eles tem uma questão dos catalães, porque se você não fala catalão a comunicação é mais difícil, embora eles falem espanhol e catalão. Então você tem esse cenário, mas tem os imigrantes que vivem no porto. Tem outros povos, chineses, árabes, então isso para mim foi muito enriquecedor, pensar enquanto eu estava na viagem, nesse processo de deslocamento e encontrar outras pessoas que também estavam em uma situação parecida, mas muito diferente também politicamente. A cidade é muito diferente de Brasília, então para mim era tudo uma grande novidade e até hoje eu ainda volto para as anotações para pensar várias coisas.
SG1: Como foi fazer uma exposição individual?
CL: O processo de montagem foi bem puxado, porque não tinha assistência e apenas dois rapazes para me ajudar. Como eram várias instalações, no final, tinha coisas que fazia sozinha porque só eu sabia como fazer. Nesse processo foram 4 ou 5 dias sem dormir; foi muito intenso, mas foi uma prova de fogo. Depois que eu montei essa exposição, eu disse: “Não, está tudo bem, posso montar muita coisa agora” (risos). Foi muito prazeroso. O que eu percebo é que, a cada dia que passa, por mais desafiadora que as coisas fiquem, mais vontade eu tenho, mais vontade eu tenho de trabalhar com arte, de conhecer outros artistas e estar no meio. Essa exposição foi um marco, foi muito interessante saber o que as pessoas pensavam e quais eram as reações no dia da vernissage e nas visitas. Essa foi uma oportunidade que nunca tinha tido porque normalmente eu colocava a obra no espaço e ia fazer minhas coisas, só que lá, eles marcavam as visitas e eu acompanhava. Para mim, foi muito interessante esse processo, inclusive foi em uma dessas visitas que a moça me explicou que eles restauravam tudo. Também teve uma visita de um estudante de Teoria, Crítica e História da Arte com seu esposo. Foi bem legal, porque eles já tinham outras noções.
SG1: Você notou algumas diferenças do circuito de artes em Barcelona, como tratam essa questão do curador com o artista, pensando o apoio e a liberdade que você teve em pensar a sua criação na hora de fazer essa exposição?
CL: Em termos de circuito, eu acho que existem mais semelhanças do que diferenças. Você tem esse pequeno núcleo de pessoas que vão em vernissage, todo mundo que se conhece, tem um vínculo com a academia, mas lá tinha uma coisa que eu achava muito interessante e que é o contrário daqui, o centro da cidade é ocupado por grandes museus. Então, tem o museu de arte contemporânea, um centro cultural e o Museu Nacional d’Art de Catalunya. São prédios enormes que ocupam o centro, e as galerias de arte contemporânea ficam nas margens, que é uma outra relação. Por exemplo, às vezes eu saia da galeria para fazer um trabalho que era no chão, eu sentava, botava o papel, começa a riscar com giz de cera, (no início era para ser com tinta, mas o curador falou que com tinta não iria acontecer) e sempre aparecia uma senhora ou um senhor pra falar “eu vi você desenhando aqui no chão e vim ver o que você está fazendo” ou então “você não acha melhor fazer naquele ali, aquele ali está mais bonito, hein”, então era outra relação. É muito legal você pensar esses pequenos núcleos da arte contemporânea em um bairro, em um lugar que realmente tem uma vizinhança, isso para mim é muito interessante. Eu fui com dois curadores, um curador era de Brasília, escolhido pelo prêmio, e o outro era um curador brasileiro que administrava a galeria, e para mim foi ótimo porque eles me deram muita liberdade. Percebo que consegui crescer em termos de pesquisa, de resposta ao processo de imersão. Eu não sou essa pessoa que trabalha super bem sob pressão, mas o tempo que eu tive foi um tempo suficiente e o acompanhamento que eu tive foi suficiente para conseguir erguer a exposição.
SG1: Como foi voltar para Brasília depois dessa experiência?
CL: Quando eu voltei foi ótimo, porque eu sentia muita saudades do Brasil. Tem esse caráter da viagem também. Como eu tinha que trabalhar muito, eu não consegui visitar muitos lugares. Às vezes eu ia visitar, mas eram duas horas de fila, e eu não tempo e eu não consegui mesmo, por isso que às vezes eu ficava: “Eu tenho que voltar para o Brasil” e ia chegar a primavera, mas ela nunca chegou para mim enquanto eu estava lá. Então levei as roupas para primavera, mas quando eu cheguei tinha um vento frio, gelado. Eu começava a caminhar na rua e minha mão começava a congelar. Acho que o frio era uma das coisas que mais me fazia sentir falta do Brasil. Este casaco (em suas mãos durante a entrevista) eu cheguei a levar, e não tinha como lavá-lo porque a máquina lavava as minhas roupas e encolhia elas, perdi muitas roupas. Eu trabalhava com ele no ateliê, até que caiu parafina nele. Eu guardei, e falei que só iria lavar no Brasil e comprei outro. Quando voltei, eu comecei a observar as coisas por um outro ângulo. Para mim foi muito bom perceber que por mais que a gente tenha crises aqui, outros povos de várias partes do mundo tem suas crises e eles lidam com essas crises de outras maneiras. Foi bom perceber que a gente tem essa ideia de cidade, mas a gente tem várias outras possibilidades de outras cidades, outras possibilidades de deslocamento na cidade, a relação com a cidade. Uma coisa que tinha lá, por exemplo, eram os bebedouros para cachorros. Todas as praças tinham um lugar reservados para os cães, então assim, tinha outra relação com os animais dentro da cidade. Eles andavam no metrô com os cachorros, os cachorros não latiam tanto porque nenhum cachorro era de guarda, não há necessidade. Quando eu voltei senti falta de alguns sons que eu escutava enquanto estava lá, e comecei a prestar atenção em outras coisas aqui. Esse trabalho mesmo em que eu comecei a coletar coisas, comecei a fazer aqui. Apesar da experiência ter sido lá, eu comecei a pensar essas questões aqui no Brasil.
SG1: Antes você começou a falar da sua experiência aqui no departamento, o que é o SG1 pra você e o papel dele na sua história?
CL: Eu sou muito grata a todos os professores, antes de qualquer coisa. Quando eu fui monitora em uma matéria, percebi o quanto é absurdamente difícil ser professor universitário. Quanto o sistema, de maneira geral, dificulta o trabalho dos professores. Então quando penso nesse departamento, antes de pensar em um lugar físico, sempre penso no carinho que tenho pelos professores. Eu tive bons mestres, tive muitos professores generosos e abertos, que me deixaram livre para experimentar o que quisesse, mas que sempre pontuaram, me empurraram para crescer. Uma coisa que me interessa muito continuar na minha vida são as relações que fui construindo de amizade, companheirismo… Eu acho que é isso que constrói esse departamento.
SG1: Você tinha falado sobre como você se sente como mulher dentro do departamento, gostaria de falar mais um pouco sobre isso?
CL: Eu vou falar da minha experiência. Existe um choque de gerações muito forte, tem uma geração de professores que foram criados em outras décadas, tem outras formas de pensar e de se expressar, e tem outra geração que nasceu na década de 1990, que está lidando com outras questões. Eu acho que esses choques geracionais gera muito atrito. Eu já presenciei muitos atritos, mas eu, quanto mulher, não passei muito por isso. Mas tem muito haver com a minha personalidade, eu acho como eu tenho uma relação muito obsessiva com o meu trabalho, muitas vezes quando alguém vem rebater alguma coisa, eu já me rebati e já me questionei. Acho que isso tem muito a ver com uma carga que as artistas têm, eu já tenho que formular na minha cabeça o que vão me rebater para já saber. Tem uma frase da Louise Bourgeois, uma escultora que eu admiro muito, que diz que o mercado da arte só te reconhece como artista quando você prova que você não vai desistir (“A woman has no place as an artist unless she proves again and again that won’t be eliminated”). Eu acho que ainda hoje há esse lugar, mas é uma questão muito delicada, e na escultura fui muito bem recebida. Os professores homens nunca me desrespeitaram, fui recebida com muito carinho, com muito afeto.
SG1: Você tem o caminho como matéria definitiva para sua produção? Você vê uma perspectiva para sua produção para levar o caminho como matéria?
CL: Olha, como matéria definitiva me preocupa um pouco (risos), mas como um norte de pensamento, acho que sim. Mas eu acho que dentro desse campo do caminho existem várias coisas. Existe o que eu faço, existe o antes e o depois, então eu acho que é um norte de trabalho. Acho que talvez as coisas mudem. Uma coisa que pra mim foi libertador, quando eu tava assistindo uma aula Escultura 1 e a professora disse: olha isso aqui é só o início, nada do que está aqui pode vir a continuar, nada é definitivo. Acho que a gente tem que se lembrar disso, tudo que a gente faz aqui agora é o começo de alguma coisa, não é a coisa em si. As coisas boas ainda estão por vir.
Mapa astral da artista:
Canceriana, com ascendente em Capricórnio e marte em Libra.
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