Dionísio: O Libertador

Circulodedionisio
6 min readNov 30, 2022

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Dionísio é sem dúvidas um dos deuses mais intrigantes e também um dos mais importantes do panteão grego. Embora conhecido pela maioria como “deus do vinho”, Dionísio é muito mais que isso. Em verdade, seus aspectos e facetas não são de fácil compreensão. Conhecido como Eleutherios (Libertador) é retratado em seus mitos como um deus estrangeiro, que necessitou lutar para ter sua divindade reconhecida entre os gregos e os próprios olimpianos; os cultos a Dionísio nos deixaram como herança dois grandes gêneros literários, e uma forma de arte que se tornou um dos trunfos da cultura ocidental: o teatro. Além disso, foi também a figura central de uma seita que influenciou toda uma tradição filosófica. Por essas e outras razões, Dionísio vale a pena ser conhecido.

Quem é Dionísio?

Durante muito tempo, Dionísio foi considerado pelos estudiosos como um deus estrangeiro, advindo da Trácia, e que adentrou a grecidade apenas posteriormente, quando todos os outros deuses olimpianos já tinham se estabelecido. Contudo, essa visão foi contestada quando se encontrou o nome de Dionísio escrito em Linear B, em uma tabuleta em Pylos, remontando à Idade do Bronze e ao período Micênico [1]. Portanto, Dionísio é muito mais antigo do que se acreditava ser. Não se sabe ao certo que papel Dionísio desempenhava na cultura micênica, mas sabemos que, diferente dos helenos, os micênicos tinham foco maior em divindades ctônicas — isto é, ligadas ao submundo.

Não obstante, os mitos dionisíacos de fato apresentam Dionísio como um estrangeiro, mesmo que reforcem que ele tenha nascido na Grécia [2]. Sim, é um paradoxo aparente e, por isso, interessante. É uma característica de Dionísio ser visto como “o outro”, um estranho em sua própria terra. Pois é, ele não é um mero deus do vinho: é o deus do vinho, sim, mas também o deus da fertilidade, do êxtase religioso, da loucura, da intoxicação pelo vinho; seus mitos expressam sua relação com o submundo, com os mistérios da vida e da morte, com a natureza selvagem. Dionísio é o deus salvador, aquele que morreu e renasceu. Dionísio é Eleutherios.

Os mitos dionisíacos

Existem, na verdade, duas versões de Dionísio. A primeira é própria dos mistérios órficos e, a segunda, própria das tradições populares, principalmente as atenienses. Ambas as versões possuem mitos distintos, porém, com inúmeras semelhanças. Tentativas de harmonizar os mitos foram feitas por diversos poetas da Antiguidade.

O mito do Primeiro Dionísio relata que ele era filho de Zeus e Persephone. Hera, como sempre, enciumada pelos relacionamentos extraconjugais do marido, armou um plano juntamente aos titãs para assassinar a criança que acabara de nascer. Com diversos brinquedos os titãs atraíram Dionísio e, quando o capturaram, devoraram-no. Zeus, para punir os titãs, os destruiu com um raio. O coração de Dionísio, contudo, não foi devorado e permaneceu intacto, mesmo com o golpe de seu pai. Zeus então, com a ajuda de Atena, costurou o coração de Dionísio na própria coxa para gestar novamente a criança.

O mito do Segundo Dionísio, por sua vez, diz que ele era filho de Zeus com a mortal Sêmele. Hera enganou Sêmele, forçando-a a pedir a Zeus que se revelasse em sua verdadeira forma (assim ela saberia que de fato, era amante de um deus). Zeus, que havia prometido fazer tudo o que sua amasse desejasse, atendeu o pedido. Porém, a verdadeira aparência de um deus é divina demais para um mortal contemplar, e Sêmele se transformou em cinzas. Naquele momento Zeus descobriu que Sêmele carregava um filho seu, pois no meio das cinzas se encontrava o coração da criança, que Zeus costurou em sua própria coxa para terminara gestação.

Obviamente, Dionísio não poderia crescer no Olimpo, pois Hera o tempo todo tramava vingar-se contra ele. Foi então exilado e criado em meio a selva, entre ninfas e sátiros. Descobriu a arte de fazer vinho e viajou pelo mundo ensinando-a aos homens. Muitas cidades resistiram à influência de Dionísio e se recusaram a aceitar suas dádivas e a reconhecê-lo com uma divindade. Todas foram punidas severamente.

As características fundamentais dos mitos

Como fica evidente, os mitos compartilham diversas semelhanças, a principal delas é o processo de morte e renascimento de Dionísio. Esse aspecto é importante principalmente na primeira versão do mito, apropriada pelos órficos, já que o orfismo era um culto que visava compreender justamente os mistérios da vida e da morte. Mais que isso, buscava a salvação da alma. O Orfismo será abordado em um outro texto, já que é uma religião complexa e cheia de nuances; por enquanto, basta saber que a interpretação alegórica do mito visa explicar a formação da humanidade, que constitui de uma parte titânica (ligada aos instintos animais) e uma parte divina, que é Dionísio. Os órficos adotavam uma postura asceta, de desprezo ao corpo e as paixões, e uma valorização das virtudes da alma.

A personalidade de Dionísio é construída ao longo de sua vida, desde seu nascimento conturbado a sua criação, exilado, crescendo em meio a uma natureza selvagem, com Ninfas e Sátiros. Dionísio, apesar de divino, não teve sua divindade reconhecida de pronto, nem pelos deuses e nem pelos homens. Foi de cidade em cidade levando a arte de fazer vinho, subvertendo a ordem com uma comitiva de bêbados, ninfas, mulheres seminuas e sátiros, de ereção permanente. Mulheres deixavam seus maridos e filhos para seguirem Dionísio, em um estado de êxtase, loucura religiosa e ardor sexual. Elas ficaram conhecidas como Bacantes. O poder do vinho era grandioso, ele permitiu ao homem se libertar de suas amarras sociais. E para aqueles que não reconheciam a divindade de Dionísio, ele designava severas punições, como em Tebas, onde o rei foi decapitado pela própria mãe e filhas, que estavam tomadas pela loucura dionisíaca. Essa narrativa, ligada mais ao Segundo Dionísio, foi responsável pela construção das tradições populares em Atenas.

As duas faces de Dionísio

Temos então duas faces de Dionísio: a primeira, do Dionísio órfico, um deus ctônico, responsável pelos mistérios da vida e da morte e pela salvação da alma [3]. Seus adeptos eram austeros e ascetas, valorizavam a alma ao mesmo tempo que desprezavam o corpo. Este Dionísio é representado como um homem maduro, de barba e com chifres.O outro Dionísio é mais jovem, belo e afeminado. Selvagem, de natureza subversiva, ligado à loucura ritual e ao êxtase religioso.

Os legados culturais de Dionísio

A herança cultural deixada pelas tradições dionisíacas é rica, tendo contribuído amplamente na cultura, filosofia e arte ocidental. Em relação a filosofia e cultura, muito se discute o papel da religião dionisíaca no escape e subversão dos papéis sociais e de gênero, através do estado alterado de consciência, máscaras e fantasias, dança extática e embriaguez; embora na prática os cultos não fossem realmente subversivos, sendo sancionados pelo Estado mais para manutenção da ordem do que o contrário. Sabemos também, embora o processo seja incerto, que as tradições dionisíacas em Atenas influenciaram o surgimento do Teatro e seus gêneros literários. Discute-se também a possível influência da religião dionisíaca no cristianismo, por conta do arquétipo do deus que sofre, morre e renasce, oferece a salvação da alma e uma experiência religiosa onde o indivíduo é unido com a divindade [4].Todas essas contribuições mostram a grande importância que tem Dionísio.

Referências e bibliografia:

[1][2][3][4]: Anciet Greek Culs: A Guide — Jennifer Larson

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Paganismo Clássico, Orfismo, Mitologia e Filosofia Neoplatônica.