Depressão, Aceitação e Superação: A Emocionante Narrativa de GRIS

Clara Borges
7 min readSep 9, 2019

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Imagem de Gris, personagem principal do jogo GRIS.

Uma coisa é certa: a indústria de games definitivamente tem evoluído nas últimas décadas. Com a melhoria dos dispositivos eletrônicos e o reconhecimento do mercado de jogos como uma opção viável para criadores de conteúdo, tal indústria tem se provado um terreno fértil para a criação de histórias memoráveis, com personagens cada vez mais atraentes, mecânicas diferenciadas e mirabolantes, narrativas complexas e estéticas que agradam os olhos e os corações de milhões.

Um exemplo deste sucesso são os jogos com o gênero drama interativo, que tem se popularizado bastante e borrado a linha entre jogo e cinema. Títulos como The Last of Us, The Walking Dead Game, Horizon Zero Dawn, The Wolf Among Us, Life is Strange e muitos outros contam com roteiros gigantescos e milhares de caminhos a serem seguidos, além de diversas opções de diálogos e interações, mundos enormes com vários cenários para se explorar, dezenas de itens a serem adquiridos e um mercado cada vez maior para acomodá-los.

GRIS, no entanto, não é como esses jogos. Trata-se na verdade de um jogo 2D single-player de plataforma/aventura desenvolvido pela Nomada Studio e disponível para Nintendo Switch, Windows, Mac e iOS. Ele foi indicado aos prêmios de excelência em animação e direção de arte na edição de 2019 do DICE Awards juntamente com nomes como Detroit: Become Human, God of War e Red Dead Redemption 2 e conquistou a crítica com sua história poderosa, seu estilo artístico e design minimalista e, sobretudo, com sua capacidade de emocionar sem dizer uma única palavra.

História

GRIS conta a história da protagonista de mesmo nome (para diferenciá-los neste artigo usaremos letras maiúsculas para o jogo e minúsculas para a personagem), uma garota de cabelos azul-esverdeados que aparece inicialmente na palma da mão de uma enorme estátua e canta para esta, mostrando que seu atributo dominante é a sua voz angelical. O jogo começa de fato quando alguma coisa — ou alguém — faz com que a estátua se despedace, causando a queda da protagonista, que é jogada para o mundo inferior e precisa explorá-lo e aprender com ele.

Logo de início já temos um perfil da personagem principal: ela é uma menina solitária, perdida e que passou por uma experiência dolorosa que literalmente transformou seu mundo em ruínas monocromáticas (afinal, Gris em francês significa “cinza”). É apenas quando Gris começa a sentir suas emoções novamente, seu avatar saindo de uma posição cabisbaixa e fraca para uma pose mais altiva, que o universo do jogo começa a adquirir cores novamente: uma bela aquarela que preenche o cenário em explosões e que muda com cada emoção sondada em sua jornada.

Screenshot de GRIS, com as cores em aquarela do cenário mudando de vermelho para um azul-celeste.

Ao progredir em sua exploração, Gris descobre — juntamente com o jogador — que as estrelas são a chave para a solução dos puzzles e também uma ponte para a saída daquele lugar. O caminho não é fácil, entretanto. Além dos obstáculos (abismos, tempestades, sombras que parecem pequenas borboletas, máquinas, entre outros), o vilão do jogo se mostra na forma de uma enorme sombra negra disforme que ora torna-se um pássaro, ora vira um monstro aquático, ora se mostra apenas como uma violenta e sufocante escuridão. Enfrentá-lo é necessário não apenas para progredir no jogo, mas para entender o que se passa com Gris: a escuridão é uma personificação de sua dor, de seu medo, de sua depressão.

Mas, como todo herói, Gris tem um poder especial: a capacidade de se adaptar a diferentes situações. A cada novo passo de sua jornada, a protagonista aprende uma habilidade que a ajuda a superar os desafios. Diante de tempestades, ela pode se tornar um bloco impossível de ser carregado pelo vento. Diante da solidão, ela pode fazer amizade com criaturinhas que a ajudam a acessar áreas diferentes. Diante dos rios subterrâneos, ela aprende a nadar profundamente. Até a gravidade uma hora deixa de ser um problema e se torna um novo caminho: Gris aprende a voar e explorar o céu. Cada nova habilidade vem com novos desafios, mas também com um maior conhecimento sobre o mundo e novas cores e emoções.

Screenshot de Gris utilizando sua habilidade de mergulhar nas profundezas, acompanhada de uma tartaruga aliada que ilumina seu caminho.

Com o progresso de Gris, o cenário ganha vida e a estátua começa a se restaurar. O mundo se torna mais colorido, iluminado e repleto de estrelas. As ruínas voltam a se tornar construções cada vez mais belas e detalhadas. No entanto, a sombra maligna retorna e destrói tudo novamente, usando o próprio rosto e cabelo da personagem como sua representação. O processo de reconstrução agora é outro. Gris precisa usar todas as suas habilidades para resolver os puzzles até adquirir um novo poder: criar vida e mudar a perspectiva do mundo ao rotacioná-lo completamente.

Seu último confronto com a escuridão tem início. Um confronto consigo mesma e com o vazio proporcionado por seu sofrimento até chegar na recuperação da sua voz e a superação da dor — não ao esquecer o momento ruim, mas reconhecer que ele faz parte da jornada e que crescer e melhorar a si mesmo (e, quando necessário, com a ajuda de alguém) é a única forma de superar as mazelas de fato.

Screenshot do momento de confronto de Gris com a escuridão, que toma a forma de sua própria face. Aqui Gris é, ao mesmo tempo, o seu algoz e a sua salvação.

Aspectos Técnicos

Em GRIS toda a história é contada através de cutscenes artísticas que mais se assemelham a um filme de animação do que a um jogo propriamente dito. Entretanto, diversos aspectos técnicos interferem na experiência do jogador, sendo a trilha sonora onipresente e etérea e a arte que mais parece uma pintura em movimento os mais gritantes. Som, luz e energia são as forças motrizes em GRIS e é de se esperar que sua apresentação para o jogador através do vídeo e do áudio seja tão incrível quanto a sua representação no mundo do jogo.

GRIS é sutil na sua forma de mostrar como as coisas acontecem, mas poderoso em suas alegorias e na sua capacidade de engajar. Mesmo não se tratando de um game com diversos caminhos e finais como Detroit: Become Human ou os títulos da franquia The Walking Dead Game, há uma beleza em ser o instrumento que conduz Gris para o final de sua jornada (que, para minimizar a chance de spoilers, só pode ser descrito como bastante satisfatório) e de se experimentar uma história tão bem amarrada com começo, meio e fim igualmente bem definidos. Estar no mundo de GRIS é experimentar emoções juntamente com a personagem e a jogabilidade permite essa interação com o meio, complementando a narrativa ao promover sua exposição com cada avanço na gameplay.

Há uma única cena no jogo que só pode ser liberada ao se encontrar todos os objetos escondidos nos cenários. Ela revela o que aconteceu de fato com Gris e qual é a origem de toda a sua dor, assim como o simbolismo das estrelas e da estátua. Entretanto, é possível entender a história sem ver nada disso. Isso porque Gris tem um conteúdo narrativo fechado, limitado a seu próprio universo, linear e, para qualquer pessoa que tenha o mínimo de senso crítico, óbvio. A história segue o básico da jornada de um herói abandonando seu estado inicial, enfrentando os desafios e então passando por um momento final onde retorna ao início, com um diferencial proporcionado pelo trajeto percorrido.

Screenshot onde Gris luta com a escuridão na sua forma de pássaro gigante

A jogabilidade de GRIS é bastante simples, com ações curtas mas significativas. Um diferencial do jogo é que Gris não morre. Embora existam inimigos e obstáculos, a protagonista não pode ser morta ou destruída, de modo que o jogador pode se concentrar completamente em explorar o mundo, desvendar os puzzles e apreciar o ambiente do jogo. É um recurso que acaba o tornando um tanto parecido com outro jogo indie, Journey, desenvolvido pela Thatgamecompany para Playstation 3 e 4.

GRIS também não é um jogo longo. Um jogador dedicado pode completá-lo em pouco mais do que duas horas, sem muitos motivos objetivos para jogá-lo novamente. Também não existe qualquer texto indicando o que deve ser feito, muito menos diálogos ou narração explicando a história, de modo que a narrativa é completamente expositiva e cabe ao jogador desvendá-la e interpretá-la. Não só isso, cabe ao jogador impedir que Gris desista e sucumba ao vazio que a persegue. A conexão emocional criada entre personagem e jogador não precisa de palavras para se fazer presente, tampouco o ambiente precisa ser altamente complexo ou gigantesco para promover imersão. GRIS não tenta ser imersivo, ele simplesmente é.

Considerações Finais

Vazio, tristeza, raiva, dor, enfrentamento, emoção, equilíbrio, amizade, superação, reencontro, futuro. Palavras e sentimentos que, uma hora ou outra, fazem parte da vida dos seres humanos. Apesar de sua aparência de outro mundo, dos poderes mágicos, dos cenários que poderiam muito bem ter saído de um livro de contos-de-fadas, é a humanidade que define GRIS. É a jornada rumo ao desconhecido, a superação de um momento difícil, a consciência da perda e a necessidade do aprendizado, a busca pela própria voz, a transformação de um mundo para pior e para melhor. É a mudança de perspectiva.

Screenshot da cena onde Gris canta para a estátua

GRIS é uma experiência tanto quanto é um jogo e sua narrativa é o ponto principal desta jornada. Em sua inocência e autenticidade, o jogo toca em temas que praticamente todo mundo já teve que lidar em algum momento de sua vida e ainda consegue deixar um quentinho no coração, uma esperança de que a verdade encontrada naquela narrativa fictícia também possa se espalhar para a vida real e, quem sabe, torná-la um pouco menos cinza.

PS.: As imagens presentes neste artigo podem ser encontradas aqui e aqui.

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