A morte é um dia que vale a pena viver

Cuidando de doentes no fim da vida: existe uma prática médica em que cuidar é mais importante que curar

Clarice Dantas
11 min readDec 9, 2019

Por Clarice Dantas

Foto: Clarice Dantas

Eu temia a morte na infância. Encontrei com ela pela primeira vez aos sete, não lembro se numa quarta ou quinta. Recordo que choveu muito depois daquela visita dolorosa, costumava pensar que a chuva vinha sempre depois que alguém morria, pesada e barulhenta pra lavar e levar o tempo. Vi meu cachorro ser atropelado na minha frente e a primeira reação foi de medo. Tava escuro, as ruas pareciam miúdas e a cidade grande demais. Minha mãe permanecia calma, com sete anos achava absurda a não comoção, “é a morte, você não vê? ”.

Naqueles últimos momentos o obturador da vida ficou aberto por tanto tempo que as luzes doíam os olhos. No meio da rua caído, vários carros vinham um atrás do outro iluminando o corpo pequeno, sem vida, que ia dissipando na memória. Morreu na frente de uma igreja, sempre achei isso curioso. Com ele nos braços de minha mãe, fui o caminho todo chorando e me perguntando o que tava acontecendo, era muito pequena e senti como se ali não houvesse nada mais que um sopro de vida, uma história com ponto final, congelada numa noite escura, nas tessituras do testemunho da morte. Naquela noite chorei tanto que parecia que a chuva era uma extensão de mim, “Porque ele foi embora? Precisava mesmo? ”. Me deixou uma saudade que doía demais o coração, “se morrer for doer assim eu não quero morrer nunca”.

Minha mãe continuou calma no processo todo até a certeza de que meu cachorro tinha ido, enterrou no quintal e foi dormir. Pra ela todo mundo precisa ir uma hora e sem alarde, ir com calma, tranquilo, “vai doer mais nele se continuar”. Não sei se pela idade e anos vividos ela se fez serena, aguarda a morte de portas abertas e prepara o corpo-casa com paz. Um dia vai vir, e vai ficar tudo bem.

Amar muito a vida para amar ainda mais a morte

“A morte me fez entender que o hoje é mais importante que ontem e que amanhã”

Esse foi mais um episódio protagonizado, escrito e encerrado pela morte. Um dos milhões já noticiados e não noticiados, que passaram desatentos no gozar da vida. A psicóloga Anna Valeska Procópio conta que a morte vai além da finitude. “A morte me fez uma pessoa melhor”. A vida é mais leve para quem compreende que quem sofre não está sozinho, nem pra lidar com a dor de se estar doente nem pra lidar com a dor anímica do fim.

Anna Valeska estuda a morte desde que estava na universidade de psicologia. Quando saiu em 97 deu continuidade ao fazer cursos, ingressar no mestrado e atualmente busca terminar o doutorado na área.

Segundo ela faz parte da cultura Ocidental ver a morte como um tabu, “a gente debate muito pouco sobre a morte, não é corriqueiro”, ao mesmo tempo que é intrínseco das mazelas do dia-a-dia, não somos íntimos da nossa condição de finitude. “Vai acontecer. Eu só não sei onde, nem quando, nem como, mas vai acontecer”, negar o fim é prolongar a dor e não aceitar a própria condição de existência. ‘Tia Valeska’ como carinhosamente chamo desde os 16 quando conheci seu filho, um dos meus melhores amigos, me diz então que apesar de tudo isso os debates sobre a terminalidade estão crescendo, começando nos cursos de medicina, com a comunicação de más notícias e os cuidados paliativos. “A morte é algo nosso”.

Conversando com ela, a morte se torna algo a menos a ser temido e mais um capítulo de muitos da vida. “Eu leio e estudo muito sobre morte. Foi algo que me permitiu ressegnificar minha própria vida”, o riso solto ecoa na sala vazia, genuíno, na sua ótica faz parte do respeito em totalidade a vida. Foi na natureza da morte que descobriu os cuidados paliativos, os quais dedica-se ao estudo e ensino desde 2013 para o curso de psicologia, e desde 2015 para o curso de medicina da Universidade Federal do Amapá. “Os cuidados paliativos foram a grande porta pra gente começar a falar sobre morte”.

No Estado os estudos na área ainda passam quase que imperceptíveis diante da grandiosidade dos contínuos epílogos da vida, atrelados a outras matérias, a outros começos. Se a ideia de debate sobre morte ainda é subversiva, o surgimento do movimento de cuidados paliativos se tornou uma alternativa que acalenta o fim, é o tratamento que começa onde tudo termina.

Pallium, no latim, quer dizer manto

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define cuidados paliativos como uma abordagem que visa qualidade de vida do paciente e da família em relação a uma doença crônica que ameaça a condição de vida, é feito por uma equipe multidisciplinar que leva em consideração os aspectos físicos, espirituais, sociais e psicológicos. Para os paliativistas — profissionais que respeitam a qualidade do resto de vida e não uma extensão dela -, cuidar é mais importante que achar a cura. Para estudiosos do assunto como Anna Valeska, “é muito carinho, afeto e disponibilidade”, é entender a dor de cada um. É dar tempo para quem tem pouco a ver passar.

“Quando não é mais possível curar, é possível cuidar”

Foto: Clarice Dantas

E cada dor tem sua história, sentenças e reticências. Não tem um remédio especifico para dor, ela se sente, e sentir não precisa de prescrição médica, o sentir é compreensão e acolhimento. Esse conceito foi denominado de dor total pela inglesa Cicely Saunders em 1967, é total por ser subjetivo e concebível. Dói diferente em cada indivíduo. Para a multiprofissional, foi dedicando a vida pela morte plena de pacientes incuráveis que entendeu o que é sentir. “Quando não é mais possível curar, é possível cuidar”, assim surgiu os cuidados paliativos, da compreensão de que a morte não ameaça a vida e sim faz parte dela.

Cicely foi quem criou o primeiro hospice — uma espécie de albergue — batizado de St Christopher’s Hospice em 1967, especialmente dedicado a pacientes sem chance de cura. Dizia que cuidados paliativos é “Tudo que nós podermos dar da nossa mente. Cada habilidade e cada entendimento, mas também com a amizade do coração”.

No Brasil os cuidados paliativos são relativamente novos. No Estado do Amapá quase que inexistentes. Não há uma enfermaria especializada, apenas uma compartilhada no Hospital Geral de Macapá e o ambulatório onde o Doutor Wilco Júnior atende as segundas, quartas e sextas. “Diante de pacientes com doenças graves muito é deixado de fazer e ele fica largado, a família desassistida e as demandas não são vistas”, quando fala das subtrações existentes, fala da necessidade dos cuidados paliativos com esperança de que a filosofia do cuidar seja cada vez mais difundida. “Não é porque o paciente tem uma doença terminal que ele vai ter que ser largado para morrer. Cada dia tem que ser vivido da melhor maneira possível”.

Para cada morte um substantivo

Muito antes do cuidar da finitude, a morte sempre esteve aqui. Quieta, progressiva e paciente. O professor de história Hedilano Maciel me recebe no Colégio Santa Bartolomea Capitanio onde estudei a vida toda, dessa vez não para me lecionar, e sim para me contar que apesar do fim ser indubitável, a história morreu de diversas formas.

Foto: Clarice Dantas

“Não há um padrão quando se trata do ritual da morte, cada sociedade se comportou de um jeito”, afirma. Embora assustadora, a viagem por dentro da historicidade da morte é necessária para entender nossas tradições. Segundo Hedilano, a questão da finitude sempre demandou tempo até mesmo do tempo que a história construiu.

Os egípcios tratavam a morte como uma passagem para o mundo de Osíris. Durante o processo supunham que o coração era pesado do outro lado, “se o coração fosse mais leve que uma pena, ele seguia”. Por conta disso cuidavam meticulosamente de cada detalhe, preparavam o corpo-templo e cuidavam, em suas crenças, para a passagem da vida para outra vida. Já para alguns povos indígenas o processo de morte é um processo de tristeza, ligado totalmente com seu âmago, “eles têm essa visão de que a natureza vai fazer caminhar naturalmente”, explica Hedilano, “para nós, essa questão do luto é mais turbulenta”. Avançar sobre a dor da perda é uma questão a parte do que é a morte, muito menos incompreendida, muito mais sentida.

Logo na idade média, quando a igreja ainda estabelecia poderes espirituais, o ritual da morte era doméstico. Um ciclo se acabava e no ambiente familiar se realizava o ritual de velar, para depois enterrar aos arredores da própria casa. Com o avançar dos costumes cristãos, o processo de finitude muda também. “Se a pessoa fosse importante ela era enterrada dentro da igreja, se não fosse, era aos arredores”, explica Hedilano. É quando a igreja ganha muita força dogmática que a morte começa a ser temida. “Você tem que ter medo da morte, mas porque ter medo da morte? ”, esse era um questionamento nunca respondido pelo catolicismo, mas justificado com promessas de indulgências e perdão eterno. Atualmente, mais do que em qualquer capítulo histórico, morremos a morte de forma marginal. “É uma vida seguindo o que a igreja diz, e na morte também. É o discurso do medo que se arrastou história a dentro”.

Cuidando para morrer

Hedilano é professor de história a 15 anos. Ele me conta sobre os desdobramentos fúnebres da história e rindo me fala de algumas curiosidades também, “Sabia que existem mulheres que são contratadas para chorar em velórios? É, são as carpideiras”. Eu rio um pouco e ele também, saber dessas histórias subjacentes me faz refletir. Como a morte é grande, ao mesmo tempo tão pequena, tão cheia de personagens? Durante a conversa entendo que foi logo depois da morte do pai, que Hedilano entendeu a grandiosidade da ida. Foi perdendo um pouco da sua história que compreendeu a essencialidade de cuidados no processo de morrer.

Na narrativa da morte do pai, imerso numa existência que o tempo levou sem acalentar, começou a decifrar as singularidades dos cuidados que foram necessários para entender o luto que veio depois. Quando morreu, 6 anos atrás, viu sua mãe sofrer bastante. “Pra minha mãe não foi nada fácil perder o marido de 50 anos de união”, conta, e narra que com o tempo, alguns bordados foram sendo feitos na trama de uma vida marcada pela perda. Intuitivamente eles entenderam que o mesmo tempo que tece as feridas é o mesmo tempo que cura, porém demora a passar e não dá lugar ao não sofrimento. Quando alguém morre a família perde um pedaço de si.

Hedilano comentou despretensiosamente que a assistência que recebeu junto de sua mãe logo após a ida do pai contou com a ajuda da psicóloga Anna Valeska. Fiquei surpresa e alegre por saber que ‘Tia Valeska’, estava de alguma forma ligada a história de perda e reinstituição de alguém importante para meu entendimento sobre morte, visto que ela quem me contou sobre a morte viva, uma morte capitular e bonita.

4 anos depois da ida do pai, Hedilano perdeu a mãe pelo coração. “Ela já queria ta do lado dele, sabe? E eu entendi isso”, o contar revela o saudosismo e o sentimento de compreensão de quem já foi e queria ir. Diferente do momento que perdeu o pai, a ida da mãe foi mais tranquila por causa desse entendimento sereno de que a morte veio, chegou e foi. “Ela não tinha como sair do hospital. Parecia que sabia, essas horas a gente vai montando o quebra-cabeça. Ela saiu em agosto, comemorou o aniversário e no outro dia voltou para o hospital. Depois só saiu em outubro, quando faleceu”, a memória que acalentou o fim relembra a importância de saber da sua condição de finitude e da do outro, muito mais que isso os cuidados durante a ordem natural que rege a vida foram essenciais para que a ida fosse confortável e entendida, não só pela mãe de Hedilano como para ele também.

É isso que o Dr. Wilco Júnior reforça quando conversa comigo. “Não dá pra esquecer da família, ela adoece junto também”. Respeitar o tempo de morrer é algo que os cuidados paliativos reverencia. Morrer é estar frente a frente com a fraqueza e a superação. A morte constantemente nos lembra que o fim é inevitável e em nossa época é quase que necessário sofrer e assim se esconder. Chorar em público é improprio e a solidão é intrínseca na incompreensão de que quem já foi não volta mais. A morte vem se tornando cada vez silenciosa, chorar se tornou um sinal de fraqueza numa sociedade que privilegia indivíduos fortes. Se desse jeito morrer é inevitável, o melhor a se fazer é evitar pensar em quem já foi, em quem ainda vai e aonde acaba a vida. Dr. Wilco me conta que é por isso que cuidados paliativos é tão importante, porque reforça que morrer é natural, morrer faz parte da vida, para ele “sempre vai ter algo a se fazer diante dessas situações mais difíceis, sempre vai ter”.

“Até no dia que a gente for morrer vamos viver esse dia”

Nas escolas de medicina é aprendido a curar. Cuidar é algo pressuposto. Segundo Wilco, ainda existe muita falta de conhecimento por parte dos médicos e profissionais na área da saúde, o que aumenta consideravelmente o malcuidado e o sofrimento de pacientes. O cuidar não é debatido do mesmo jeito que a morte não é. E se ambos andassem lado a lado? E se a gente começasse a cuidar para morrer? Anna Valeska também questiona a falta de estímulo a cuidar da pessoa doente, no curso de medicina da UNIFAP, é uma das únicas professoras que fala intensamente sobre o tema. “A gente não tem um modulo especifico falando só sobre cuidados paliativos”, na universidade não é ensinado a cuidar. “A formação precisa levar em consideração cada particularidade do ser”.

É preciso também desmitificar a ideia de cuidados paliativos devem ser instituídos quando o paciente estiver em condição terminal. O principal foco desses cuidados é promover a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto dos seus familiares por meio do alivio do sofrimento e prevenção. Wilco explica que qualquer doença que tem o risco de causar a morte do paciente precisa ter o acompanhamento por uma equipe paliativista desde o início, pois estabelecer vínculos e uma relação é essencial nos cuidados paliativos. “Quando se conhece todo o histórico do paciente o acompanhamento é mais eficaz”. Cuidar é estar junto, é conhecer o outro e respeitar sua história.

Diante da morte é esperado que o médico tente de tudo. Wilco narra que os pacientes são encaminhados já em um estágio muito avançado da doença. A morte pode vir alguns dias, horas, segundos depois. Normalmente se exige a prolongação da vida e não a qualidade de vida restante. “Todos os cuidados fazem a diferença quando a gente fala que a pessoa ta morrendo”, fala após uma longa pausa e reforça, várias vezes depois, que a assistência no final da vida é essencial, “até no dia que a gente for morrer vamos viver esse dia”. Diante de uma doença incurável as vezes é necessário parar. Frente a frente com a finitude e o inevitável, o melhor é entender, aceitar e viver. Diante da morte o que se pode fazer é compreender que a morte é um dia que vale a pena viver.

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