A arte de planejar a liberdade

Clarissa Barcala
31 min readJan 13, 2023

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Klopp e Ancelotti. Foto: Reprodução/Twitter Champions League.

A ideia de que jogar futebol ofensivo significa dar todo o poder do mundo aos jogadores para que eles possam se expressar dentro de campo livres das perversas “amarras táticas” (que são exclusivas do pragmático futebol defensivo) existe desde que o esporte foi inventado. Atacar bem sempre significou ter uma gama de jogadores muito criativos, que saberiam tirar um coelho da cartola a cada lance e resolver todas as adversidades com um drible desconcertante ou um passe genial. Ao treinador cabia a tarefa de não atrapalhar: quanto menos ele fosse acometido pelo ego e começasse a limitar os jogadores com sua tática, melhor ele seria. Seu trabalho era simplesmente organizar o time defensivamente, pois o lugar da tática era na defesa. Para um treinador, menos sempre era mais.

O Brasil abraçou orgulhosamente essa ideia. Nossa literatura futebolística, por exemplo, se desenvolveu muito mais no campo das crônicas esportivas do que nos áridos desertos da tática, louvando assim muito mais o aspecto lúdico do jogo ao invés do mais científico. Depois de 3 títulos mundiais em 12 anos, era extremamente confortável para nós nos acomodarmos no trono, valorizando a inventividade e a genialidade dos nossos jogadores e atribuindo unicamente a eles a beleza do nosso futebol. A tática era coisa pros europeus, aquele povo triste que não foi abençoado com nossa ginga e teve que procurar um jeito sistemático e pragmático para conseguir competir contra nós. Relegamos nossos treinadores ao papel de entregador de coletes, cuja tarefa não deveria passar de ser um bom gestor de pessoas e um bom construtor de sistemas defensivos. No ataque, era melhor deixar com quem sabia. Claro que, nas crises, as críticas sempre estouravam primeiro nos treinadores, os grandes culpados por times desorganizados e sem soluções. Mas isso não importa. Vicente Feola era o gentil comandante que às vezes dormia no banco de reservas; Aymoré Moreira deixava a gestão do time para Pelé e Garrincha; Saldanha e Zagallo eram os melhores pois deixavam uma multidão de “camisas 10” em campo se expressarem livremente e por aí vai. Durante décadas, o bom futebol ofensivo era visto como a expressão máxima do talento individual, onde o treinador pouco (ou nada) deveria mexer.

1. O impacto do Jogo de Posição

O Barcelona de Pep Guardiola forçou uma mudança de panorama na discussão sobre futebol ofensivo. Foto: Reprodução/Twitter Champions League.

O Barcelona de Guardiola foi um belo susto para aqueles que defendiam que atacar bem não dependia do treinador. O catalão assumiu o Barcelona em 2008 e quando deixou o clube, em 2012, tinha conquistado 14 dos 19 títulos possíveis pelos blaugrana. Dentro de sua coleção de troféus, Guardiola tinha 3 ligas espanholas (só perdeu quando o Real Madrid de Mourinho alcançou os 100 pontos) e 2 Ligas dos Campeões, além de ter conquistado a tríplice coroa, inédita no futebol espanhol, e logo depois um “sextete” (6 troféus na mesma temporada), inédita no futebol mundial. Além disso, seu Barcelona passou da marca dos 90 gols em LaLiga em todas as temporadas, e atingiu os 100 gols em duas delas.

Os resultados por si só já assustam, mas a forma de jogar do Barcelona de Guardiola foi o que realmente sacudiu o mundo do futebol. Eles pareciam jogar um esporte próprio, um jogo à parte que dava a impressão de estar a anos-luz de qualquer coisa que seus oponentes tentassem. Goleadas históricas sobre o Real Madrid e duas finais de Champions League (ambas contra o Manchester United de Ferguson, o melhor time da Inglaterra à época) que foram verdadeiros monólogos marcaram temporadas em que o Barcelona se isolou em um patamar próprio e forçou os outros times a correrem atrás. Isso também mudou completamente o panorama do futebol mundial: estava claro que o time de Guardiola contava com muito talento, mas seus ataques eram tudo, menos aleatórios. Pelo contrário: o Barcelona tinha um ataque altamente coordenado, com movimentos minuciosamente sincronizados e uma estrutura extremamente bem definida. Era hora de deixar para trás as ideias de que atacar bem significava deixar seus jogadores totalmente livres em campo e começar a estudar o Jogo de Posição de Guardiola.

O Jogo de Posição partia de um conceito chamado ataque posicional (ou, como Guardiola prefere chamar, ataque por zona). Para entendê-lo, precisamos antes passar pelo espaço e pelo tempo.

O futebol tem, entre os jogadores e a bola, o espaço e o tempo. Para um jogador dominar a bola, ele precisa dominar o espaço em que ele está (e aquela a seu redor) e o tempo de suas ações. O ataque posicional defende que o melhor jeito de se dominar a bola é dominar antes o espaço: se um jogador for dono de seu espaço e estiver livre, terá tempo para receber, pensar e agir. Assim, o ataque posicional parte do domínio dos espaços para então controlar o tempo e, consequentemente, a bola. Se o time for o dono dos espaços, ele terá total controle do tempo e poderá, assim, controlar a bola. Isso pressupõe algo bem importante: o time que pratica o ataque posicional precisa ter uma maneira racional e simétrica de ocupar os espaços em campo. Desse modo, os jogadores têm suas posições demarcadas e não podem abandoná-las. Caso contrário, a ocupação dos espaços ficaria comprometida e o time teria dificuldades em dominá-los. Isso não significa que o time não pode se movimentar em campo: as movimentações acontecem, mas devem ocorrer dentro da estrutura posicional que o treinador escolheu. Assim, quando um jogador deixar sua posição, outro deve ocupá-la, e um terceiro deve ocupar a posição do segundo e por aí vai. As movimentações dentro de um ataque posicional ocorrem a partir de trocas de posição que não alterem a estrutura original.

Exemplo de um time em ataque posicional. Os jogadores devem atuar dentro de suas posições para não comprometar a ocupação dos espaços que o treinador planejou.

Foi a partir do ataque posicional que nomes como Guardiola, Cruyff, Van Gaal e Juanma Lillo construíram o Jogo de Posição. É de extrema importância distinguir o ataque posicional do Jogo de Posição: não são, nem de longe, a mesma coisa. O ataque posicional é uma premissa do Jogo de Posição. Logo, todos os times que praticam o Jogo de Posição praticam o ataque posicional, mas a recíproca não é verdadeira. Para que um time seja um legítimo praticante do Jogo de Posição, ele deve aplicar vários outros conceitos e mecanismos de ataque (e defesa) que vão muito além do ataque posicional.

No livro Pep Guardiola: a Evolução, o autor Martí Perarnau define o Jogo de Posição (mais especificamente o modelo de Guardiola) a partir de alguns fundamentos básicos. O primeiro é a posse de bola, que deve ser a ferramenta para alcançar o objetivo (jamais o objetivo por si só). O segundo é superioridade numérica na defesa e numérica ou posicional no centro do campo. O terceiro é a amplitude máxima de campo para encontrar a maior profundidade possível, combinando com sequências de passes para atrair adversários e liberar o atacante para seu duelo individual. O quarto é o escalonamento dos jogadores para facilitar um avanço sincronizado e compacto. O quinto (e provavelmente um dos mais importantes) é a busca pelo terceiro homem (terceiro homem é um mecanismo que busca encontrar um jogador livre a partir de triângulos) e/ou os homens livres entre as linhas de marcação rivais em todas as ações de construção de jogo. O sexto é a proteção defensiva a partir da posse de bola, ou seja, o uso da posse de bola para mantê-la longe de seu gol e para esfriar o ritmo das partidas. O sétimo (também importantíssimo) é o respeito às posições, estimulando a troca de jogadores nelas e dando prioridade para que a bola chegue ao jogador que a espera, e não o contrário (como diz Juanma Lillo, a bola vai até as posições). O oitavo é a excelência no gesto técnico e a posição corporal na recepção e no passe, além da busca de passes que melhorem a posição do companheiro. O nono é intensidade em todas as ações, e o décimo e último é a posição dominante no campo e a orientação ofensiva.

“A maioria das pessoas crê que a zona é apenas defensiva, mas isso não é correto: também existe o ataque por zona. Quando seus atacantes estão longe da bola, esperando que ela chegue após uma série de jogadas e ações, isso é o ataque por zona. Chamamos de ataque posicional, mas em realidade é um ataque por zona. O ponto não é buscar a bola para atacar, mas esperar que ela chegue a uma determinada zona” — Pep Guardiola.

“Em Munique se acreditava, a princípio, que era um jogo para manter a posse da bola. Não! É um jogo de posição, não de posse. Um jogo para saber como você deve se colocar e se perfilar quando tem a bola e onde deve pressionar quando não tem” — Domènec Torrent, ex-auxiliar de Guardiola.

Assim, o Jogo de Posição de Guardiola partia do ataque posicional para controlar as zonas do campo; por isso, segundo Domènec Torrent, o Jogo de Posição é sobre as posições, não a bola. Juanma Lillo prefere chamá-lo de “Jogo de Localização”, pois esse termo uniria melhor os dois principais objetivos dentro dessa ideia: encontrar o jogador bem posicionado em campo e bem situado dentro de sua postura. O Jogo de Posição busca obter vantagens posicionais dentro do campo a partir dos conceitos que Perarnau explicou, o ataque posicional é apenas uma delas.

A revolução do Barcelona de Guardiola trouxe uma maré de coisas boas, como a noção de que organizações ofensivas são planejadas pelo treinador e devem ser alvo de estudo, por exemplo. No entanto, ela também trouxe algumas coisas ruins. Com o sucesso do Jogo de Posição e do ataque posicional, o mundo passou a admirá-los tanto que passou a estudar e a teorizar apenas esse modo de atacar, desvalorizando outras organizações ofensivas que não seguiam à risca os conceitos guardiolistas. Assim, o discurso do começo do texto se manteve praticamente o mesmo, com uma pequena mudança: os ataques organizados, coordenados e sincronizados são apenas aqueles que praticam o Jogo de Posição. Os outros são apenas fruto do improviso dos jogadores, comandados por treinadores que sabem gerir o elenco e não se preocupam tanto em organizar as ações ofensivas.

2. O ataque funcional

A Hungria de 1954 foi um dos primeiros times a assombrarem o mundo a partir de um ataque funcional. Foto: Reprodução/Twitter FIFA.

Se de um lado as mentes de Cruyff, Van Gaal, Juanma Lillo, Guardiola e outros trabalhavam incessantemente na construção dos conceitos do Jogo de Posição, buscando a melhor maneira de dominar o jogo a partir dos espaços, de outro havia uma escola diferente de treinadores desenvolvendo silenciosamente uma maneira diferente de ter o controle da bola. Das noites frias da Escócia, das margens do Rio Danúbio e das favelas sul-americanas, surgia o ataque funcional.

Para entender o ataque funcional, teremos que voltar os conceitos de espaço e de tempo. Se o ataque posicional parte da ideia de que um jogador deve ser dono de seu espaço para então conseguir controlar o tempo de suas ações e, enfim, dominar a bola, o ataque funcional é o exato oposto. A ideia aqui é que o melhor jeito de ter controle da bola é dominando primeiro o tempo.

O ataque funcional defende que, se um jogador tiver total controle do seu tempo, se ele conseguir fazer as coisas no tempo certo, agir (e interagir) no tempo certo, ele conseguirá dominar os espaços do campo e, portanto, a bola. Se o ataque posicional defende que é preciso dominar os espaços para interagir bem, o funcional defende que é preciso interagir bem para dominar os espaços.

Para dominar a bola do jeito contrário ao do ataque posicional, o ataque funcional também terá conceitos inversos aos do ataque posicional. Aqui, não se exige simetria e ocupação racional dos espaços, pois não é essa a prioridade. A principal característica do ataque funcional é a aglomeração de vários jogadores em um único setor do campo: para que os jogadores possam interagir cada um à sua maneira (e a seu tempo), o ataque funcional permite que eles se aproximem sem seguir uma estrutura pré-definida. Assim, o time cria linhas de passe mais curtas, facilita a interação entre os jogadores, aumenta a movimentação (já que ela não precisa respeitar uma ordem posicional) e incentiva a interpretação individual de cada jogador sobre a jogada para que ele possa agir respeitando o próprio tempo. O ataque funcional apresenta uma movimentação muito intensa a partir de aproximações, assimetrias, trocas de posição e desmarques. O movimento e a interação de tantos jogadores em um setor tão pequeno do campo é o que cria o espaço, que deve rapidamente ser ocupado por um jogador para que ele possa continuar interagindo. Por isso, o ataque funcional exige que os jogadores tenham uma alta capacidade de interpretar o jogo e, assim, agir a partir de sua intuição. Caso contrário, o jogo ficaria uma bagunça.

“Com Ancelotti, é a liberdade”, disse Thiago Alcântara sobre Carlo Ancelotti, um dos principais nomes da escola do futebol funcional (mais sobre isso mais tarde). “Mais que a estratégia ou a tática, é a liberdade e a confiança que um treinador pode te dar. […] Ele te deixa fazer isso porque te fala algumas coisinhas para que você as interprete de seu jeito. Ele transmite que tudo é de todos, que a culpa é de todos. Assim, ele te dá a liberdade para que você possa assumir a responsabilidade”.

Exemplo de um time em ataque funcional. Os jogadores têm a liberdade de se aproximarem em um lado do campo, formando uma estrutura assimétrica, para facilitar suas interações e movimentações.

O nome “ataque funcional” vem exatamente dessa ideia. Se os jogadores devem se aproximar, cada um com sua própria interpretação do jogo, e interagir a partir disso, esse tipo de ataque se organiza a partir das funções dos jogadores. O mais importante aqui não é a posição, onde o jogador fica no campo, mas sim como ele age em uma partida. Como ele se movimenta no terço final? Ele vai de fora para dentro ou de dentro para fora? Como ele gosta de receber (ou passar) a bola? Qual sua área de atuação? Todas essas são perguntas que um treinador que usa o ataque funcional deve fazer antes de escalar um jogador, pois quando ele estiver em campo, ele deve agir de acordo com sua interpretação do jogo. Por isso o nome “ataque funcional”: é um ataque que se organiza a partir das funções.

Esse estilo de jogo se originou com Jimmy Hogan, um inglês de pais irlandeses que se apaixonou pelo jogo de passes da Escócia e começou a difundi-lo pela Europa Central no começo do século XX. Rapidamente, países como Áustria, Hungria e Itália começaram a praticá-lo, e o ataque funcional ganhou seu primeiro nome: o Jogo Danubiano, por causa da proximidade desses países ao Rio Danúbio. Em uma espécie de convergência evolutiva, os países sul-americanos (principalmente Uruguai, Argentina e Brasil) também começaram a organizar seus ataques partindo do tempo para o espaço, já que isso dava muito mais liberdade aos disruptivos e inventivos talentos que esses países esbanjavam. Algumas décadas mais tarde, a influência húngara nesses países (especialmente no Brasil, com Dori Kürschner e Béla Guttmann) deu ainda mais gás para o jogo funcional que se desenvolvia na América do Sul. Desse modo, o ataque funcional dominou o futebol mundial na primeira metade do século XX: o Uruguai campeão em 1930, a Itália bicampeã em 1934 e 1938, a Áustria de 1934, a Hungria de 1938 e de 1954 (a mais brilhante), a Argentina dos anos 40 (que não teve a oportunidade de disputar uma Copa do Mundo) e, claro, o Brasil tricampeão do mundo em 1958, 1962 e 1970. Além disso, dentro do futebol de clubes, elencos lendários como o Real Madrid da década de 50, o Santos de Pelé e o Benfica de Eusébio também eram dignos representantes da escola funcional. Esse panorama só começaria a mudar na década de 70, quando o Ajax e a Holanda de Cruyff e Rinus Michels começou a impressionar o mundo com seu jogo posicional, conhecido à época como Futebol Total. Apesar disso, o futebol funcional continuou “dando as cartas” no mundo até o final da década de 90.

Com a explosão do ataque posicional nos anos 2000 e 2010, o jogo funcional acabou sendo a organização ofensiva que mais sofreu com o discurso que colocava o Jogo de Posição num pedestal e desvalorizava todas as outras formas de atacar. Como o ataque funcional pressupõe bastante liberdade de movimentação e interpretação própria de cada jogador, muitas vezes o time pode acabar parecendo bagunçado, como um “caos organizado”. Isso apenas potencializou a ideia de que os treinadores que usavam o ataque funcional deixavam seus jogadores livres em campo sem qualquer instrução tática, ao invés de, talvez por falta de capacidade, aplicar o complexo e coordenado ataque posicional.

3. O futebol moderno

“Há um equívoco comum que futebol ofensivo significa confiar nos jogadores para se expressar, enquanto futebol defensivo significa dizer a eles o que fazer. […] Mas no futebol moderno, o oposto é verdade. O melhor futebol […] é o mais rigorosamente planejado, ensaiado e coordenado” — Jack Pitt-Brooke, jornalista do The Athletic.

O futebol evoluiu ao longo dos anos para se tornar um esporte de altíssimo rendimento e de inconcebível exigência. Todos os espaços do campo são estudados repetidas vezes para que se encontre o melhor jeito de ocupá-los, tanto ao atacar quanto ao defender. Cada milímetro é ferozmente disputado, e o tempo que os jogadores têm para pensar e interagir fica cada vez menor. O crescimento do futebol de alta intensidade, pressão agressiva e contra-ataques velozes, o surgimento da marcação por zona e a sistematização dos sistemas defensivos são os principais fatores que vêm tornando o futebol cada vez mais decidido pelo físico, pelo ritmo e pela intensidade. Dominar o tempo e o espaço virou uma tarefa árdua em um cenário onde praticamente não há tempo ou espaço.

Frente a isso, o discurso sobre os treinadores que não instruem seus jogadores no ataque e os deixam completamente livres simplesmente não se sustenta. Um futebol tão intenso, estudado e disputado não dá espaço a treinadores que não procuram uma abordagem mais tática, sistemática e sincronizada e que preferem deixar seus jogadores livres em campo para que eles sozinhos encontrem as soluções. Um treinador assim seria facilmente parado pela complexidade e intensidade dos sistemas defensivos atuais e, embora no passado a figura do “entregador de coletes” possa ter sido mais comum, ela não tem espaço no futebol moderno. Talvez quem mais se aproxime disso seja José Mourinho: o português dá uma ênfase enorme às táticas defensivas e pouco trabalha na organização defensiva de seus times. Essa liberdade que Mourinho dá a seus jogadores no ataque é ótima para cenários de contragolpes, onde o time encontra um campo aberto e totalmente livre de marcação, mas acaba tropeçando nas próprias pernas ao encontrar defesas mais fechadas que exigem uma maior complexidade de movimentos. Isso acabou sendo um dos motivos que causou a saída de Mourinho do Real Madrid em 2013, pois os jogadores se incomodavam ao receber pouca (ou nenhuma) instrução do treinador na hora de atacar.

O Jogo de Posição que Guardiola implementou no Barcelona, no Bayern e no City parecia ser a resposta perfeita para o futebol moderno. Se todos os espaços do campo estavam ocupados, o repaginado Jogo de Posição de Guardiola rodaria a bola por todos os lugares, movimentando o bloco de marcação do rival até que aparecesse um espaço livre, ocupado por algum jogador seu, que poderia receber a bola e ter tempo o suficiente para agir. Era um estilo altamente ensaiado, coordenado e sincronizado, perfeito para encarar defesas fechadas e times agressivos. No entanto, para que o Jogo de Posição seja bem executado, os jogadores precisam ter um imenso rigor tático e muito respeito às posições que o treinador traçou para cada um e as movimentações devem ocorrer apenas dentro da estrutura posicional do time. Os jogadores precisam resistir ao ímpeto de participar do jogo toda hora e esperar em sua posição para que o time possa acioná-lo no momento certo. As interações eram muito mais regradas e limitadas, e algumas posições (normalmente os pontas) pegavam muito pouco na bola. Seria o começo do fim do futebol mais associativo, dos times funcionais?

4. Klopp e Ancelotti: planejando a liberdade

Klopp e Ancelotti são os dois expoentes mais modernos do ataque funcional. Foto: Reprodução/Twitter Premier League.

“Futebol é um jogo, e você deve jogá-lo com liberdade” — Jürgen Klopp.

“Não há sistema vencedor. O sistema vencedor é colocar os jogadores confortáveis em campo” — Carlo Ancelotti.

“Ser treinador é tentar fazer com que o futebol, um jogo baseado em inúmeros eventos aleatórios, seja menos aleatório” — Peter Krawietz, auxiliar de Jürgen Klopp.

“Para que um sistema de jogo seja eficaz, é indispensável passar muito tempo em campo, porque o jogador deve saber exatamente o que deve fazer em diferentes situações” — Carlo Ancelotti.

Se o imenso sucesso de Guardiola com o Barcelona, o Bayern e o Manchester City acabou causando uma homogeneização do futebol mundial que convergiu no ataque posicional (provavelmente em uma tentativa fracassada de imitar o Jogo de Posição), um grupo seleto de treinadores manteve-se firme em suas ideias e trabalhou duro para adequá-las ao futebol moderno sem abrir mão da essência, do que as torna únicas. Diversos treinadores absorveram o que acharam necessário do Jogo de Posição e apenas incorporaram isso às suas ideias, sem se voltar completamente a um ataque posicional. Esse processo foi guiado por treinadores como Fernando Diniz, Lionel Scaloni, Julian Nagelsmann e os protagonistas desse texto: Carlo Ancelotti e Jürgen Klopp.

Carlo Ancelotti começou a ensaiar sua carreira de treinador como auxiliar de Arrigo Sacchi na Seleção Italiana (ele compunha a comissão técnica da Itália que perdeu para o Brasil na Copa de 1994) e em 1995 começou de vez a vida no banco de reservas quando assumiu o comando da Reggiana. Em 1996, foi escolhido para comandar o ambicioso projeto do Parma, e foi lá que suas ideologias foram postas em xeque pela primeira vez. Inspirado por Arrigo Sacchi, Ancelotti armou o time em um 4–4–2 bem definido com Hernán Crespo e Enrico Chiesa como dupla de ataque. No entanto, havia um terceiro jogador de ataque bem interessante: Gianfranco Zola. O italiano era um clássico segundo atacante, que gostava de atuar centralizado e com bastante liberdade. Ancelotti, irredutível na ideia de usar seu amado 4–4–2, resolveu escalar Zola na ponta-direita. O resultado foi ruim para o jogador e ainda pior para o time, e Zola sairia do Parma ainda em 1996 para o Chelsea, onde marcaria época. Pouco depois, Ancelotti recusaria a contratação de Roberto Baggio justamente por não achar que ele se encaixaria em seu modelo, assim como Zola. Essas foram as experiências que marcaram Ancelotti, segundo as palavras do próprio: “decidi, mais uma vez (primeiro Zola depois Baggio), recusar um jogador extraordinário. Eu estava convencido de que tinha tentado todas as soluções possíveis, mas havia um problema: eu tentava buscar inúmeras soluções sem nunca cogitar mudar o sistema de jogo. A solução não estava na adaptação, mas sim na mudança; ou melhor, na escolha de um sistema que se adaptasse aos meus jogadores, e não o contrário”. Um Ancelotti que ainda engatinhava na carreira como treinador seria eternamente moldado por sua passagem pelo Parma: na Juventus, abriu mão do 4–4–2 para escalar Zidane onde ele se sentia melhor; no Milan, armou o famoso sistema “árvore de natal” para alojar os “camisas 10” do elenco rossonero (Rui Costa e Rivaldo em um primeiro momento, depois Kaká e Seedorf); no Chelsea, Ancelotti mudou o esquema base no meio da temporada para acomodar mais atacantes e vencer a Premier League com recorde de gols marcados; no Bayern, escalou Thiago Alcântara mais avançado para tirar o máximo do meia hispano-brasileiro; e em suas duas passagens pelo Real Madrid, construiu um sistema de “pontes” para potencializar o time ofensivamente e compensar a falta de intensidade do elenco sem a bola.

A carreira de Jürgen Klopp foi drasticamente diferente: o alemão não foi um jogador de sucesso como Ancelotti e não ganhou de cara um trabalho com Arrigo Sacchi. Na verdade, Klopp acabou virando jogador-treinador do Mainz quando o time estava em apuros da Bundesliga 2 em 2001. Ele acabou indo tão bem que o time o manteve nessa função até o fim da temporada e lhe ofereceu um contrato de treinador para a temporada seguinte. Klopp acabaria levando o Mainz para o primeiro acesso à primeira divisão alemã da história do clube em 2004 e o manteve na Bundesliga por 2 anos, quando foi rebaixado em 2007 e não conseguiu subir de novo em 2008. Seu trabalho no Mainz o catapultou para o Borussia Dortmund, onde Klopp conseguiu um bicampeonato seguido da Bundesliga, uma Copa da Alemanha e alcançou uma final da Champions League. Até então, os times de Klopp praticavam um estilo muito característico: pressão alta, intensidade total e contra-ataques fulminantes, o famoso “futebol heavy metal”. No entanto, seus anos finais no Borussia e seu trabalho seguinte (no Liverpool) forçaram Klopp a dar dois passos para trás: para dar mais consistências às suas equipes, o alemão precisava aprender a controlar a posse de bola. Para isso, algumas coisas era inegociáveis para ele: seu time não podia perder a intensidade e seus jogadores não podiam perder a liberdade.

Ambos os treinadores, apesar de tão diferentes, tinham um ponto em comum: a liberdade de seus jogadores em campo era algo imprescritível. Assim, ao longo do tempo, Klopp e Ancelotti começaram a montar times que se organizavam para atacar a partir do tempo e que mostravam bastante liberdade dos jogadores em campo. No entanto, para ter sucesso no futebol moderno, Klopp e Ancelotti não podiam deixar suas equipes se renderem ao caos; eles precisavam aprender a planejar a liberdade.

4.1. O Liverpool de Jürgen Klopp

O Liverpool 21/22, provavelmente o time de Klopp que mais teve sucesso em controlar a posse de bola.

O sistema funcional de Klopp se baseia na principal característica do alemão como treinador: é uma ferramenta que ele encontrou para manter a intensidade dos seus times mesmo em cenários em que o Liverpool teria 60% de posse de bola ou mais. Se Klopp espalhasse demais seus jogadores em campo, seu time teria que dar passes mais longos e um avanço em bloco seria mais difícil. Em um ataque funcional, onde os jogadores ficam próximos uns dos outros e há maior liberdade de movimentação, o time formaria linhas de passe mais curtas. Além disso, ao invés do Liverpool ocupar os espaços para então atacar, o ataque dos Reds gera os espaços através de muita movimentação, trocas de posição e passes curtos e rápidos. Isso acaba criando uma confusão na defesa adversária que, ao tentar cobrir tantos jogadores em um só lugar, acaba abrindo buracos no campo que são perfeitos para a infiltração de jogadores como Salah, Mané ou Luis Díaz. A ideia de Klopp não é ocupar os espaços, mas sim deixá-los vazios para que seus jogadores possam atacá-los rapidamente e dar sequência ao ataque.

O ataque funcional de Jürgen Klopp: aglomeração pelo lado direito e muita movimentação para abrir espaços por lá.

Fabinho e Thiago sempre começam na base da jogada: o volante brasileiro é uma ameaça única nas infiltrações em direção ao ataque com sua força física. Thiago, por sua vez, é muito menos antagônico ao modelo de Klopp que muitos podem pensar; claro, falta-lhe intensidade sem a bola, mas o meia foi formado no futebol brasileiro e é muito confortável em jogar esse futebol mais rápido, com toques curtos, tabelas e desmarques. Thiago pode tanto fazer parte do intenso jogo ofensivo de Klopp quanto dar ao time um repertório maior para pausar o ritmo do jogo quando necessário. No ataque, Mané é um falso 9 com um refino técnico invejável, enquanto Luis Díaz é o clássico ponta sul-americano vertical, driblador e incisivo, perfeito para atacar os espaços. Por fim, há um interessante mecanismo pela direita do campo: Arnold é um lateral com a categoria de um camisa 10 e, por isso, Klopp prefere colocá-lo mais por dentro; Henderson é um meia com espetaculares lançamentos e muito vigor físico, e Salah é um ponta de pé invertido que adora cortar para dentro. Assim, Klopp cria uma rotação entre esses jogadores: Arnold sai da lateral e vai para dentro, Henderson sai do meio de campo para atacar o lado e Salah sai do lado para cortar para dentro. Desse modo, os três trocam muito de posição e revezam para atacar o flanco direito.

A proximidade dos jogadores do Liverpool é essencial para a velocidade em rodar a bola. Caso Klopp usasse uma abordagem mais posicional, ou seu time teria que passar a bola com mais calma, jogando a dois toques (para Klopp, uma heresia) ou o Liverpool teria que forçar bolas mais longas para seus atacantes, o que reduziria drasticamente a efetividade e a qualidade dos ataques dos Reds. Dar aos jogadores linhas de passe mais curtas e em maior quantidade (já que há sempre muitos jogadores no setor da bola) permite que eles rodem a bola muito mais rapidamente. Além disso, ao posicionar os jogadores em suas posições preferidas, eles terão muito mais conforto dentro de campo e poderão agregar muito mais à essa velocidade que o Liverpool quer aplicar na posse de bola: ao fazer o que está acostumado a fazer, um jogador agirá muito mais rápida e naturalmente, enquanto uma posição “nova” exigirá que ele se acostume com cenários estranhos a ele, comprometendo sua atuação e a naturalidade de seus movimentos. Assim, Klopp usa as aproximações e a liberdade de seu ataque funcional para rodar a bola com muita velocidade, sem deixar seu adversário respirar. Ao se organizar a partir do tempo, seus jogadores conseguem imprimir intensidade no jogo com muito mais sucesso.

Além disso, organizar seu ataque a partir do tempo resulta em outra grande vantagem para Klopp. Se o ataque posicional busca conseguir tempo a partir dos espaços, o ataque funcional quer criar espaços a partir do tempo, e essa é outra chave do jogo rápido e intenso que Klopp procura. Para o alemão, é muito mais cômodo esvaziar os espaços do campo e permitir que seus jogadores os ocupem a partir de infiltrações e movimentações. Mais uma vez comparando com o jogo posicional: se Guardiola quer todos os espaços preenchidos, Klopp os quer vazios: não importa onde seja, um lugar vazio no campo é terreno para a aceleração. Para isso, o alemão usa a movimentação, os desmarques e a velocidade de seus jogadores. O Liverpool possui uma gama de peças ofensivas extremamente móveis, que se sentem muito confortáveis em abandonar suas posições, jogar a poucos toques e se apresentar logo depois. Em uma releitura alemã do toco y me voy argentino, Klopp usa a combinação e os desmarques de seus jogadores para abrir buracos no bloco defensivo adversário. Além disso, os atacantes do Liverpool (em 21/22, Salah, Mané e Luis Díaz) foram formados na intensidade e velocidade, sempre prontos para acelerar. Sem o campo aberto que um contra-ataque daria a eles, os três ficam mais que contentes em acelerar a jogada nos pequenos espaços que a movimentação do Liverpool gera. No entanto, há outro espaço que o time de Klopp adora explorar. O ataque funcional normalmente cria um mecanismo chamado coloquialmente de “lado forte e lado fraco”: o lado forte é o setor do campo onde o time concentra mais jogadores (no caso do Liverpool, o lado direito), enquanto o lado fraco é o setor oposto que naturalmente fica mais esvaziado. Assim, é muito comum ver ataques funcionais que se juntam por um lado para atrair a marcação do adversário para aquele setor, o que naturalmente abre um buraco no setor oposto. Assim, o time que ataca pode explorar esse espaço vazio em uma inversão. O Liverpool é um dos times que melhor executa essa estratégia a partir de Andrew Robertson: o lateral-esquerdo de Klopp dificilmente fica parado na ponta-esquerda abrindo o campo; ele costuma se posicionar mais recuado pronto para ser acionado em uma inversão e atacar o lado esquerdo esvaziado com suas famosas ultrapassagens. Desse modo, o Liverpool consegue mais uma maneira de imprimir velocidade e intensidade no jogo mesmo tendo a bola: ao concentrar a jogada em um lado e invertê-la para outro, o time encara um cenário de campo aberto explorado por Robertson, um lateral de muito vigor físico e excelente cruzamento.

Exemplo do ataque funcional de Klopp em ação, com os jogadores se concentram do lado direito do campo. Observe que o Liverpool tem diversas posições não preenchidas, como a ponta-direita e o flanco esquerdo (atacado por Robertson), para poder acelerar a jogada a partir de infiltrações nelas.

4.2. O Real Madrid de Carlo Ancelotti

O Real Madrid 22/23, time que teve uma melhora considerável em sua qualidade de jogo mesmo depois de ganhar a Champions League.

Ancelotti e Klopp partiram do mesmo ponto, mas seguiram caminhos drasticamente diferentes. Se Klopp usa a aproximação e as movimentações do ataque funcional para verticalizar o jogo, Ancelotti é o completo oposto: o italiano, no auge de sua “liderança tranquila”, prefere usar seu ataque funcional para rodar a bola com calma, explorando a qualidade técnica de seus jogadores ao invés do vigor físico. O Real Madrid ao longo dos últimos anos se tornou um time especialista em encarar as pressões dos adversários desde a saída de bola e, usando o imenso talento e refino de seus jogadores (como Alaba, Tchouaméni, Carvajal, Kroos e Modric), superar as linhas de pressão pouco a pouco, sem se afobar ou recorrer a chutões, e assim chegar ao campo de ataque (normalmente com superioridade posicional e numérica). Além disso, a aproximação no campo de ataque com jogadores como Kroos, Modric e Benzema é um escândalo: por estarem muito próximos, eles podem trocar passes com facilidade, se desmarcar e exibir a qualidade técnica que poucos times podem sonhar em ter.

O ataque funcional de Carlo Ancelotti: aglomeração pelo lado esquerdo, muita circulação de bola e pausa.

O Real Madrid, apesar de começar em um 4–3–3 (e normalmente se defender assim), na verdade se assemelha muito mais a um time com uma dupla de volantes e um camisa 10 (como um 4–2–3–1, por exemplo) quando tem a bola. Tchouaméni é o primeiro volante e naturalmente começa mais recuado, mas o francês costuma ganhar a companhia de Toni Kroos. O alemão começou como meia aberto, se destacou no Bayern como meia-atacante e, à medida que sua carreira avançava, começava a atuar em faixas cada vez mais recuadas, atuando como um meio-campista que arma o time de trás ao invés de um clássico “camisa 10”. Assim, Kroos fica mais próximo de Tchouaméni e normalmente é quem realiza a saída de bola logo à frente dos zagueiros (quando não ao lado deles). O papel de camisa 10 fica com quem usa a camisa 10 do Real Madrid: o croata Luka Modric não seguiu o caminho de Kroos e se desenvolveu como um meia avançado, que circula livremente pelo ataque e desequilibra os jogos com sua condução absurda e seus passes geniais. Uma peça importante nesse centro de campo acaba sendo Ferland Mendy: o lateral francês não é um primor da técnica e se destaca pela solidez defensiva, mas ele não compromete o time ao atacar. Mendy normalmente sai da lateral-esquerda e se posiciona mais por dentro, normalmente à frente de Kroos e Tchouaméni, e é uma opção de passe segura na hora de rodar a bola por lá. Esse movimento de Mendy acaba consagrando outro jogador: Vinícius Júnior. O brasileiro explodiu sob o comando de Ancelotti e se tornou um dos melhores atacantes do mundo, adicionando refino técnico e efetividade a seu jogo que já contava com uma velocidade imparável e dribles desconcertantes. Assim, Vinícius se sente muito confortável em começar o jogo mais aberto e, no momento certo, cortar para dentro fazendo um excelente “movimento de facão” para atacar a área adversária. Benzema, por sua vez, é um camisa 9 único no futebol. Além de entregar gols (fez mais de 40 na temporada passada), ele é um jogador tecnicamente excelente, muito confortável em sair da área e armar o ataque como um típico falso 9, realizando combinações estonteantes com Modric, Kroos e Vinícius Júnior, por exemplo. Nesta temporada, houve também a explosão de Rodrygo, que se destacou jogando nas faixas mais centrais como um falso 9 ou meia-atacante, contribuindo muito com sua qualidade técnica e intensidade. Por fim, Carvajal e Valverde são os jogadores do “lado fraco”, mas não se resumem a isso, pois Ancelotti dá bastante liberdade a ambos para se aproximarem e participarem da jogada.

Assim, o ataque funcional do Real Madrid é muito mais voltado para potencializar a qualidade técnica do time do que acelerar a todo momento. Ancelotti mais uma vez mostra sua capacidade de adaptação a diferentes cenários ao explorar a fundo a característica dos jogadores que tem em mãos, principalmente de seu trio de meio-campistas e de seu camisa 9. O Real Madrid não mostra a aceleração que outras equipes de Ancelotti mostravam, como o Milan, o Chelsea e o Bayern (embora seu Real Madrid mostre sim contragolpes espetaculares, principalmente a partir da velocidade de Vinícius Júnior, Rodrygo e Valverde). Ao invés de verticalizar a jogada a todo momento como o Liverpool de Klopp, esse Real Madrid prefere circular a bola com mais calma para atrair o adversário e aí sim acelerar a jogada com Vinícius ou Valverde. Ancelotti potencializa Modric, Kroos, Tchouaméni e Benzema, que têm total liberdade para circular pelo campo de ataque e receber a bola onde eles julgarem necessário. Além disso, a proximidade dos jogadores também faz a bola circular com mais velocidade, não para levá-la imediatamente ao ataque como Klopp, mas para manter a posse com mais efetividade e incentivar a interação desses jogadores. Assim, a partir de passes, arrancadas e desmarques, o Real Madrid ocupa facilmente o campo de ataque, põe o adversário “na roda”, coloca a bola onde quer e tem total controle do tempo e do ritmo do jogo. E, sendo dono do tempo, o Real Madrid também é dono dos espaços.

O ataque funcional do Real Madrid em campo: Kroos e Tchouaméni na base da jogada, Modric e Mendy mais à frente, Vinícius Júnior aberto e Benzema recuando para participar da jogada. Carvajal fica em diagonal defensiva e Valverde ataca o lado fraco.

Um mecanismo interessante do Real Madrid são as “pontes” de Carlo Ancelotti. Essa ideia surgiu na cabeça do italiano em sua primeira passagem pelo clube merengue, em 2015. Ancelotti percebeu que, ao escalar seu meio de campo (à época, Kroos, Modric e James Rodríguez) em uma linha reta, o time acabava dando muitos passes horizontais e tinha sérias dificuldades em levar a bola ao ataque: o jogo do Real Madrid ficava “plano”. Para resolver isso, Ancelotti usou mais uma virtude de seu ataque funcional. A partir das funções, o italiano começou a colocar seus jogadores em campo em faixas diferentes: Kroos ficava mais recuado, Modric mais à frente e James era o meia-atacante que fazia a ligação com o ataque. Além disso, Ancelotti também aproveitou a qualidade técnica de Sérgio Ramos ao avançar com a bola e a facilidade de Benzema em recuar como um falso 9. Assim, surgiam as “pontes ofensivas”: ao invés de alinhar seus jogadores, Ancelotti posicionava cada um em uma faixa do campo de acordo com suas funções, formando “pontes” entre um setor do campo e outro. Esse mecanismo é muito conhecido no futebol brasileiro como “escadinhas”, pois o posicionamento e o jogo do time lembra alguém subindo uma escada, degrau por degrau. Em sua segunda passagem, Ancelotti voltou a usar as pontes: o primeiro homem do Real Madrid normalmente é Militão; Alaba, seu companheiro de zaga, salta à frente e participa mais do ataque; à frente de Alaba fica Tchouaméni ou Kroos, já que ambos trocam de posição; em seguida, vem Mendy; depois, Modric; por fim, Benzema e Vinícius também variam de posição e alternam a função de jogador mais avançado do time. Obviamente, os jogadores têm total liberdade de trocar de posição, mas sempre seguindo a lógica das “pontes”.

As pontes de Ancelotti. Repare como cada jogador fica em sua própria faixa, não há uma linha de meio-campistas ou atacantes. O time constrói “pontes” ou “escadinhas”, com jogadores em várias faixas de campo diferentes para avançar confortavelmente.

4.3. Como planejar a liberdade?

Para construir times que mostram uma extrema liberdade dentro de campo, Klopp e Ancelotti tiveram que desenvolver uma minuciosa e complexa metodologia de treinamentos. Afinal, já está estabelecido que deixar seus jogadores em campo sem qualquer instrução não é algo viável no futebol de hoje: os times de Klopp e Ancelotti precisavam ter um plano de jogo pré-programado e amplamente complexo para que eles consigam superar quaisquer adversidades que um jogo possa lhes oferecer.

No livro Klopp, o autor Raphael Honigstein conta com a ajuda de Peter Krawietz (auxilar do Liverpool) para explicar o método de trabalho de Klopp. Segudo Krawietz, o segundo ano de todos os trabalhos de Klopp sempre era focado em desenvolver mecanismos de posse de bola. “A ideia era controlar o ritmo da partida com a bola e usar o período entre os jogos para ir adotando um jeito de jogar futebol que pudesse, idealmente, ser reproduzido de modo flexível quando sob pressão”, afirma Krawietz.

Honigstein afirma que a comissão técnica de Klopp passava horas treinando para fazer o time aderir a determinados padrões de movimentação; não eram corridas pré-determinadas, mas alguns “procedimentos combinados” (Krawietz) para criar espaços em regiões específicas onde os adversários supostamente eram mais vulneráveis. Honigstein descreve um desses movimentos como “dois jogadores correndo sem a bola, levando consigo a marcação e abrindo espaço no meio para um terceiro correr livre em direção ao gol”. Um movimento simples, mas que seria fatal se executado de forma sincronizada.

Aqui, entra a palavra do próprio Klopp. Em entrevista recente, o alemão contou a importância de dar liberdade a seus jogadores, pois “eles precisam jogar um jogo. Futebol é um jogo, e você deve jogá-lo com liberdade”. Klopp afirma que possui muitas informações que não dá a seus jogadores, não para “guardá-las” para si, mas para observar como esse jogador atua naturalmente em alguns cenários distintos. Ele dá o exemplo de quando um jogador novo chega no clube: Klopp diz que não dá qualquer informação a ele e, em um primeiro momento, apenas o deixa jogar. Assim, Klopp pode aprender sobre o jogador e sobre as coisas que ele já faz naturalmente para, em um segundo momento, descobrir o que ajustar, o que não mexer e o que o jogador deve parar de fazer. “Muita coisa acontece em conversas individuais”, disse Klopp.

Em uma ideia parecida, Ancelotti também prefere dar menos informações a seus jogadores em um primeiro momento para entender como seu elenco age naturalmente a algumas situações e, ao longo do tempo, lentamente ajustar e sincronizar os movimentos de seus jogadores. Em seu livro “Minha Árvore de Natal”, Ancelotti afirma que “para que um sistema seja eficaz é indispensável que (os jogadores) passem muito tempo em campo, pois o jogador deve saber exatamente o que fazer nas mais diversas situações competitivas. Este objetivo só pode ser alcançado com um trabalho prático que permita ensaiar várias vezes as situações mais realistas possíveis”.

Ancelotti dá um exemplo do Milan de Arrigo Sacchi: “fazíamos treinamento tático sem fim; certos mecanismos não eram naturais; o cansaço era desumano. Sacchi nos repetia várias vezes: ‘Temos que seguir uma partitura que vocês devem saber de cor’. No final, cada um sabia exatamente o que fazer em qualquer situação de jogo, fato que proporcionava muita tranquilidade”. O italiano também defende que “quando temos de treinar times sem uma estrutura construída e queremos que o jogo seja natural e eficaz, temos de dar prioridade ao trabalho tático, mesmo em detrimento do físico”.

Para construir seu time, Ancelotti faz o uso de “tarefas individuais”. Dependendo da posição e da função de um jogador, o italiano lhe atribui uma “tarefa individual” e, a partir disso, constrói o time “de dentro para fora”: ao invés de escolher um sistema e treinar seus jogadores a partir dele, ele primeiro lapida os movimentos de seus jogadores para, assim, construir um sistema. “As tarefas individuais estão muito ligadas às características dos jogadores. Na atribuição de tarefas individuais, são levadas em conta não só as características e a função do jogador específico, mas também as particularidades técnicas e físicas do parceiro mais próximo. O treinador vê o todo, combina qualidades individuais e compõe a equipe”, explica.

Desse modo, Ancelotti e Klopp desenvolvem seus trabalhos de uma forma muito lenta. Eles não escolhem um sistema complexo previamente, que tenha a “receita” de atacar qualquer time da liga, para então encaixar seus jogadores nele: lentamente, aprendendo as características, qualidades, defeitos e movimentos naturais de seus jogadores, Ancelotti e Klopp começam a construir um sistema a partir disso. Isso demanda algo que é mais valioso que ouro no mundo dos treinadores: tempo. Para construir um sistema a partir das individualidades de seus jogadores, Ancelotti e Klopp precisam aprender como cada um se comporta e, então, arrumar um jeito de sincronizar todos esses movimentos de um jeito que cada jogador seja potencializado à sua maneira. Por isso, normalmente as temporadas seguintes de seus trabalhos apresentam um nível muito melhor: o Liverpool de 18/19 é muito melhor que o de 17/18; o Borussia de 10/11 e 11/12 é melhor que o de 09/10; o Milan de 2006/2007 é melhor que o de 2002/2003; o Real Madrid vem jogando melhor em 22/23 que jogou em 21/22, e até em 14/15 o time jogou melhor que em 13/14, por mais que o final da temporada tenha sido desastroso por causa das lesões. Além de demandar tempo, esse método de trabalho pode parecer estranho em alguns cenários: no Bayern, os treinos “longos e sem especificação” de Ancelotti (usados para explorar os movimentos dos jogadores e atribuí-los pequenas tarefas individuais, sem impor um sistema antes) criaram estranhamento nos jogadores do time bávaro, que estavam condicionados a 3 anos sob a rígida tutela tática de Pep Guardiola.

Os dois treinadores que resolveram a última Champions partem da mesma ideia e chegam em resultados completamente diferentes. Klopp é a intensidade, é a verticalidade, as infiltrações e as inversões de jogadas, esvaziando um espaço para imediatamente ocupá-lo e seguir no ritmo frenético do treinador; Ancelotti é a calma, a pausa, as “pontes”, a potencialização dos talentos e a liderança tranquila, pois seu time sempre parece estar no controle das ações mesmo quando o cenário acaba ficando desconfortável. O futebol, cada vez mais intenso, planejado e estudado, parece ter dado a chave do futebol bonito para aqueles que sabem planejar a liberdade.

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