Um jogo sintomático: as virtudes e fraquezas da Alemanha

Clarissa Barcala
17 min readNov 24, 2022

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Alemanha perde para o Japão em mais uma zebra da Copa do Qatar. Foto: Reprodução/Site DFB.

A Alemanha estreou na Copa do Mundo 2022 nesta quarta-feira (23) com uma derrota de virada para o Japão. Depois de um início complicado, os alemães conseguiram controlar o jogo e pareciam ter o resultado nas mãos, mas acabaram sofrendo uma reação histórica dos adversários. Como se não bastasse ser vítima da primeira virada da história dos japoneses em uma Copa do Mundo, a Seleção Alemã vê o fantasma da eliminação vexatória em 2018 assombrando o elenco.

“É uma decepção amarga. Tivemos 78% da posse de bola no primeiro tempo e tivemos várias chances no segundo que não conseguimos aproveitar. O Japão nos venceu com sua eficiência”, afirmou o técnico Hans-Dieter “Hansi” Flick depois da derrota para o Japão. Uma afirmação que, assim como o jogo, parece muito sintomática. O sentimento que paira sobre os alemães não parece ser de vergonha, mas de frustração.

A comparação da derrota para o Japão com a participação alemã na Copa da Rússia não foi por acaso e é muito mais profunda que parece: o gosto amargo que fica depois da estreia no Qatar parece muito com a sensação pós-eliminação em 2018. A Alemanha volta a apresentar os problemas crônicos dos últimos anos que marcaram a reta final do trabalho de Joachim “Jogi” Löw e não foram embora com a chegada de Hansi Flick. Contra o Japão, a Alemanha continuou com suas virtudes claríssimas: a capacidade de ocupar o campo de ataque, dominar o jogo a partir da posse de bola e de criar uma chance de gol atrás da outra. No entanto, a falta de contundência e principalmente a problemática transição defensiva alemã mais uma vez custaram um resultado em um torneio relevante; e podem acabar em mais uma eliminação.

O novo futebol alemão

Pep Guardiola e Joachim Löw, dois dos homens mais importantes para o futebol alemão na última década. Foto: Reprodução/Site DFB.

Depois de duas eliminações traumáticas consecutivas na Eurocopa, em 2000 e 2004, a Federação Alemã de Futebol (ou DFB, a sigla em alemão) ligou o sinal vermelho e decidiu mudar radicalmente de rota para revitalizar o futebol da Mannschaft. Além de algumas mudanças estruturais, a DFB resolveu promover também uma mudança de ideais no futebol que se praticava no país.

Por décadas, a Alemanha (e, por consequência, o Bayern de Munique; ou o Bayern de Munique e por consequência a Alemanha; os caminhos se confundem) era um time marcado por um pragmatismo muito característico. A estrutura de 3 zagueiros (sendo um deles o líbero), meio-campistas muito físicos (mas não necessariamente técnicos) e atacantes dedicados e velozes reinava no futebol alemão. A marcação individual era um conceito intocável, e a objetividade e a solidez defensiva marcavam um estilo que dava raros suspiros ofensivos, como a semifinal contra a Itália em 1970.

Com a crise que a Alemanha enfrentou no final dos anos 90 e começo dos anos 2000, a DFB voltou os olhos a uma nova escola que surgia. Liderados por Ralf Rangnick, a nova geração dos treinadores alemães surgiram com o conceito de uma linha de quatro (a vierkette, como ficou conhecida no país), da marcação por zona, a pressão alta e do gegenpressing (contrapressão), que trazia a ideia de recuperar a bola logo depois de perdê-la para impedir que adversários aproveitassem com contragolpes a linha alta usada para pressionar. A partir disso, a segunda metade dos anos 2000 foi de uma Alemanha muito mais interessante de ver jogar, pois era um time que pressionava o adversário o tempo todo, sem deixá-lo respirar e, ao recuperar a bola, atacar com velocidade e atropelar o adversário em transições, buscando o gol o tempo todo. Assim, a Alemanha foi a sensação da Copa de 2010 e nomes como Ralf Rangnick, Joachim Löw, Jupp Heynckes e Jürgen Klopp apareceram para o mundo (no caso de Jupp Heynckes, reapareceu).

O segundo grande impacto no futebol alemão aconteceu em 2013, trazendo uma mudança que permanece até os dias atuais: Pep Guardiola chegou ao Bayern de Munique. Agora, é clara a influência que o clube bávaro teve no estilo de jogo da Seleção, que começava a coçar a cabeça com duas dúvidas sobre o novo perfil tático que adotara. A primeira era como impedir que jogos aparentemente “resolvidos” partissem para um cenário de descontrole, já que a Alemanha frequentemente levava os jogos para uma “trocação”. A segunda era ainda mais profunda: em jogos em que a Alemanha era superior, como o time deveria assumir o protagonismo da partida, ditando o ritmo com a bola, ao invés de partir para a “trocação” o tempo todo?

A passagem de Guardiola pelo Bayern rapidamente teve impacto na Alemanha de Joachim Löw, que ganhou a Copa de 2014 mesclando conceitos “guardiolistas” com o novo jeito alemão de se jogar, da marcação alta, do gegenpressing e das transições implacáveis.

A partir da Copa de 2014, no entanto, Jogi Löw começou a enfrentar as duas dúvidas que citei antes, e por isso passou a cada vez mais abrir mão de um jogo direto em prol de um estilo de mais controle, onde a Alemanha assumia de vez o protagonismo dos jogos e colocava o adversário na roda a partir da posse de bola. O ciclo para a Copa de 2018 foi praticamente impecável: uma semifinal de Euro, um título da Copa das Confederações e uma sequência de vitórias contundente.

No entanto, a Copa de 2018 e o ciclo para a Copa de 2022 começaram a expor os problemas atrelados a esse estilo. Para dominar o campo de ataque, a Alemanha usava um ataque posicional, espalhando seus atacantes em campo e atacando frequentemente com 6 ou 7 jogadores. No entanto, começou a faltar efetividade para a Alemanha, que muitas vezes dominava o jogo mas não convertia seu domínio no placar. Além disso, com muitos jogadores na frente da linha da bola, o espaço nas costas da defesa alemã era sempre um latifúndio a ser explorado em contragolpes e, à medida que o time de Löw ganhava em técnica mas perdia em físico, o gegenpressing da Seleção passou a ser prejudicado. Assim, a Alemanha começou a sofrer para matar os jogos e a ter dificuldades em sufocar os contragolpes. Curiosamente, a Alemanha perdia em intensidade para os adversários, e nem a chegada de Hansi Flick depois da Eurocopa de 2021 promoveu o impacto necessário.

Com o devido contexto, começaremos a tratar sobre os pontos da Alemanha na partida contra o Japão: começando pelas virtudes e passando para os problemas que custaram os 3 pontos na estreia.

Escalação da Alemanha e característica dos jogadores explicando os mecanismos ofensivos

Escalação da Alemanha para o jogo contra o Japão.

A escalação que Flick mandou a campo já deixava claro os mecanismos ofensivos que a Alemanha usaria apenas ao analisar as características dos jgoadores escalados. Apesar de aparentemente se alinhar em um 4–2–3–1, a Mannschaft praticamente só se organizava assim na hora de se defender, pois o momento com bola da Alemanha apresentava uma estrutura completamente diferente.

A começar pelas características dos defensores: Rüdiger e Schlotterbeck são zagueiros clássicos, sem surpresa aí. Nas laterais, no entanto, havia dois jogadores de perfis completamente diferentes. Pela direita, Süle é um zagueiro. Chegou a quebrar um galho ou outro jogando na lateral em sua passagem no Bayern de Munique, mas Süle é um zagueiro de ofício com todas as letras. Alto e corpulento, o defensor do Borussia Dortmund tem 1,95m e pesa quase 100kg. Pela esquerda, David Raum construiu sua carreira no Hoffenheim e garantiu sua transferência para o RB Leipzig no início da temporada jogando como um ala clássico. Raum preenche o corredor esquerdo inteiro atacando como um ponta e, por isso, frequentemente é utilizado em uma linha de 5 defensores para evitar espaços às suas costas, de tão ofensivo que é. Assim, a Alemanha tinha um zagueiro na “lateral direita” e um ponta na “lateral esquerda”.

Na linha dos volantes, Gündoğan e Kimmich são jogadores mais próximos que, digamos Kimmich e Goretzka, que parecia ser a dupla que Flick escolheria. No entanto, Hansi surpreendeu e escalou Gündoğan. Assim, a Alemanha tinha dois jogadores muito bons na distribuição, com muita qualidade no passe e na visão de jogo, com Gündoğan como um jogador naturalmente mais ofensivo que Kimmich.

Nos atacantes, Flick escalou diversos perfis diferentes. Pela direita, Gnabry é um ponta muito vertical e agudo, que está acostumado a jogar aberto para cortar para dentro ao receber uma bola perto do gol adversário. Pela esquerda, Musiala é um meia-atacante muito promissor. O jovem jogador do Bayern é muito técnico, tem muita capacidade para driblar, um domínio excelente e é um típico armador avançado. Müller, por sua vez, também é um meia-atacante excelente em ler os espaços, mas é menos técnico e mais efetivo que Musiala: o veterano começou sua carreira como ponta, jogou como segundo atacante no Bayern de Hansi Flick e já chegou a atuar como 9. Por fim, Havertz é outro meia-atacante, mas partindo da posição de centroavante. Ele oferece muita mobilidade ao ataque alemão, mas não é um camisa 9 clássico como a Alemanha se acostumou a ter.

Características dos jogadores indica o funcionamento ofensivo da Alemanha: Süle mais defensivo e Raum se lança ao ataque. Gündoğan é um infiltrador que tende a se juntar aos atacantes. Gnabry, ponta clássico, fica mais aberto. Musiala, meia, tende a centralizar. Havertz atua como um “falso 9”.

Saída de bola alemã para bater a primeira linha de marcação

A Alemanha saía jogando em uma estrutura de 3+2 (ou 1+3+2; é justo colocar Neuer no esquema, já que o goleiro era muito participativo nessa fase de construção) que contava com três zagueiros, Süle, Rüdiger e Schlotterbeck, com dois volantes à frente, Kimmich e Gündoğan. O lateral esquerdo, David Raum, praticamente não participa dessa fase e se lança ao ataque, ficando junto dos meias ofensivos. Assim, a Alemanha posiciona 5 jogadores na saída de bola (6, se contarmos Neuer) e 5 atacantes mais separados dessa fase de jogo.

Estrutura de 1+3+2 da Alemanha na saída de bola, com Neuer (amarelo) próximo dos 3 zagueiros (preto), e com os 2 volantes (branco) mais a frente.

A partir da saída de bola, Flick já começa a impor seu jogo de mais controle e posse. A Alemanha não busca ligações diretas para seus atacantes disputarem ou força jogadas diretas desde trás como antigamente, mas coloca a bola no chão e sai tocando, buscando atrair o bloco defensivo do Japão para encontrar espaços a partir da posse de bola. É a Alemanha da calma, do controle, da imposição do ritmo mais lento de jogo.

Outra característica da Alemanha já começa a aparecer na saída de bola: Hansi Flick usa várias características do ataque posicional e do Jogo de Posição em seu time. Apesar da Mannschaft apresentar vários mecanismos de aproximação e aglomeração no setor da bola, a maioria dos princípios ofensivos da Alemanha de Flick partem da lógica posicional que Guardiola levou ao país quando assumiu o Bayern.

Desse modo, a Alemanha evita concentrar muitos jogadores na saída de bola. Até acontecia de, em um momento ou outro, o lateral David Raum ou um dos meias, como Musiala ou Müller, baixarem para ser uma opção de passe a mais, mas na maioria das vezes a saída de bola acontecia apenas com Neuer, zagueiros e volantes. Desse modo, quando a Alemanha tinha dificuldades em superar a pressão japonesa, a alternativa era recuar para Neuer e reiniciar a saída de bola, e não aproximar mais jogadores para bater o Japão.

A finalidade disso é justamente não comprometer os princípios posicionais do ataque da Alemanha. Se o time se propõe a dominar a posse de bola a partir de um ataque posicional, os jogadores devem se espaçar mais em campo e preencher algumas posições pré-determinadas. Assim, a Alemanha cria linhas de passe e consegue dominar o campo de ataque. Se o time aproximar muitos jogadores, pode até haver uma recompensa imediata de superar a pressão japonesa por superioridade numérica, mas o posicionamento dos atacantes ficaria comprometido e a Alemanha não teria as posições preenchidas para ocupar o campo de ataque do jeito que ela quer. Assim, o time de Flick prefere espaçar seus jogadores da saída de bola e ter mais calma ao construir suas jogadas para não comprometer seu ataque posicional.

Avançando em campo a partir de uma estrutura posicional

Estrutura da Alemanha ao avançar em campo mostra claramente os conceitos posicionais do time. Estrutura 3+2 na base da jogada continua, com os 3 zagueiros e os 2 volantes. A linha de atacantes bem espaçada alarga a linha de defesa japonesa: David Raum e Gnabry (não aparece na imagem) abrem o campo, e Musiala, Havertz e Müller atacam por dentro. Repare em como a Alemanha espaça seus jogadores e os coloca em posições bem definidas, em blocos distintos.

Para avançar em campo, a Alemanha mostrava sua versão mais posicional. O Japão executou muito bem sua proposta defensiva na primeira metade do primeiro tempo para frear os ataques alemães; frente a isso, o time de Flick não forçava muito as jogadas e, apesar de tentar alguns lances em velocidade com Raum e Musiala, a Alemanha preferia manter a calma, rodar a bola e, se for o caso, reiniciar as jogadas ofensivas.

Para isso, Flick alinhou a Alemanha em um claro 3–2–5. Na base da jogada, os 3 zagueiros e 2 volantes mantinham a estrutura em 3+2 da saída de bola e enfrentavam a primeira linha de marcação do Japão. A distribuição inicial partia desses jogadores, principalmente de Kimmich e Gündoğan. Mais à frente, Gnabry e Raum eram clássicos pontas, bem ofensivos, espetados e colados à linha lateral. Por dentro, Müller era um meia-atacante pela direita, Musiala era um meia-atacante pela esquerda e Havertz partia de uma posição de 9, mas recuava e circulava pelo ataque. Os três trocavam bastante de posição, mas inicialmente sem alterar a estrutura de 5 atacantes bem espaçados.

Alemanha ao avançar em campo.

Assim, a Alemanha usava sua lógica posicional para tentar ocupar o campo de ataque. O primeiro princípo que Flick usa para construir esses ataques é dividir o campo em zonas de acordo com a posição da bola, pois assim ele define como seu time se posicionará em diferentes momentos do jogo. Ao progredir com a bola, Flick desenha a Alemanha nesse 3–2–5, com jogadores bem espaçados e relativamente presos a suas posições. Assim, os alemães dominam os espaços do jogo, e é a partir desses espaços que eles pretendem dominar o resto das ações.

Com as zonas pré-definidas devidamente preenchidas, o ataque posicional (ou ataque por zona, com Cruyff e Guardiola preferem chamá-lo) começa a se desenrolar. A primeira consequência é um tipo de superioridade posicional: jogadores espaçados tendem a alargar a linha defensiva adversária e a dificultar encaixes individuais. Desse modo, um jogador que recebe a bola em um ataque posicional tende a ter alguns segundos de conforto antes que algum marcador o alcance, tempo suficiente para um jogador de alto nível decidir a próxima ação. Assim, a Alemanha ataca por zonas, dominando a bola e movimentando o bloco de marcação do Japão a partir desse mecanismo.

Alemanha inicia a jogada com seu 3+2. Observe como Raum (ponta esquerda) Müller (meia-atacante pela direita) e Musiala (meia-atacante pela esquerda) estão próximos da jogada, mas respeitam suas posições e não as deixam para se aproximarem de onde sai a jogada.
Jogada se desenrola e Alemanha continua muito bem estruturada dentro de seu 3–2–5: os jogadores mantém suas posições. Observe como a linha defensiva do Japão está sobrecarregada. Frente a 5 atacantes, a sensação de “cobertor curto” é constante: sempre há alguém livre.
Musiala recebe a bola entre as linhas de marcação do Japão; jogada sai pela esquerda, mas jogadores não se aproximam. Devem manter suas posições para continuar fixando a atenção dos defensores japoneses e abrir espaços no campo.
Musiala consegue acionar Raum livre pela ponta esquerda, e a Alemanha avança com os 5 atacantes mais os dois volantes para atacar a linha de defesa do Japão. Repare como Gnabry e Raum só têm espaço pelas pontas porque o time respeitou as posições e, a partir do ataque por zona, criou esses espaços.

Ocupando o campo de ataque e jogando no último terço: uma Alemanha mais móvel

Ao ocupar de vez o campo de ataque, a Alemanha abandona alguns de seus conceitos posicionais e parte para um estilo mais funcional para atacar o último terço do campo e produzir as chances de gol. Nesse cenário, Flick dá mais liberdade a seus jogadores para deixarem suas posições, aglomerarem no setor da bola e trocarem passes a partir de aproximações e assimetrias.

Alemanha concentra 7 de seus 10 jogadores de linha: Süle (o zagueiro por aquele lado), Kimmich e Gündoğan (os volantes), Gnabry (o ponta por aquele lado) e Havertz, Müller e Musiala, os 3 meias ofensivos. Observe o espaço que essa organização gera pelo lado esquerdo para que Raum (que não aparece na imagem) possa explorar em uma inversão de bola.
Organização funcional da Alemanha pelo lado esquerdo: Schlotterbeck avançou e Süle também avança para se aproximar. Gündoğan e Kimmich mais na base da jogada, Raum fica aberto e os 3 meias (Havertz, Müller e Musiala) se aproximam. Aqui, a Alemanha junta 8 dos 10 jogadores de linha no mesmo setor. Observe o espaço que Gnabry (não aparece na imagem) pode explorar no lado direito.

Com o time já postado no campo de ataque, organizado ofensivamente e a poucos metros da área, já não faz tanto sentido ter seus jogadores tão espaçados, principalmente em uma seleção com peças ofensivas com tanta criatividade e mobilidade. Para aproveitar o talento de seus jogadores em desequilibrar no terço final e criar chances de gol, Flick parte de vez para um ataque funcional: ele aproxima suas peças ofensivas e concentra as jogadas em uma faixa do campo. Assim, ele consegue duas coisas: a primeira é a qualidade do time concentrada em um só lugar, facilitando a associação dos jogadores, as trocas de posições, os desmarques e infiltrações que apenas a criativa linha de meias da Alemanha pode te oferecer. A segunda é que, ao concentrar a jogada em uma faixa do campo, os defensores adversários também se concentram por lá, deixando a faixa oposta vazia para alguma inversão.

Ao concentrar 5 dos 7 jogadores de ataque pelo lado direito, observe o espaço livre para Gündoğan e Raum atacarem pelo lado esquerdo.
Outro lance: Alemanha começa a jogada de ataque bem espaçada.
Com o desenrolar da jogada, Alemanha se compacta pelo lado direito e leva o bloco defensivo japonês para lá. Assim, Raum e Gündoğan mais uma vez têm o lado esquerdo livre para atacar.
A jogada do gol sai a partir disso: Alemanha concentra jogadores no lado direito e arrasta o bloco defensivo do Japão para lá.
Assim, Kimmich é acionado por dentro e consegue tempo para lançar Raum pela ponta esquerda, zona completamente vazia. O lateral invade a área sozinho e sofre o pênalti que Gündoğan converte para abrir o placar.

Flick armou uma Seleção Alemã praticamente impecável com a bola. Apesar de ter marcado apenas um gol, isso parece ser mais culpa dos jogadores que do treinador: afinal, a Alemanha finalizou 26 vezes contra o Japão e terminou com 3,53 xG (expected goals ou gols esperados, estatística que avalia a probabilidade de um chute virar um gol, priorizando a qualidade das finalizações), um número altíssimo. Para efeito de comparação, a Espanha produziu 3,79 xG na goleada por 7 a 0 sobre a Costa Rica. O mecanismo ofensivo de Flick teve muito sucesso em levar a Alemanha para o ataque, mas acabou faltando contundência dos atacantes na frente do gol. Chama a atenção a falta de um camisa 9 confiável no elenco.

A Alemanha de Flick mescla conceitos posicionais e funcionais para construir seus ataques e consegue dominar o jogo a partir da posse de bola como poucos. A complexidade e qualidade dos mecanismos ofensivos que a Mannschaft apresenta é de fazer inveja em praticamente todas as outras seleções da Copa do Mundo. Flick produziu um time capaz de dominar todos os espaços do campo a partir de um ataque por zona, mas que também sabe aglomerar jogadores no setor da bola, bater a marcação adversária para criar desencaixes ou acionar algum jogador do lado oposto em uma inversão. A Alemanha consegue produzir chances de gol como água e bombardeia a área rival por 90 minutos. Falta, porém, contundência dos jogadores para aproveitarem essas chances.

Gegenpressing: o contra-ataque do contra-ataque

A Alemanha protagonizou um verdadeiro monólogo na segunda metade do primeiro tempo do jogo contra o Japão. A partir dos 20 minutos de jogo, os alemães se estabeleceram no campo de ataque, bombardearam a área japonesa e criaram uma chance de gol atrás da outra. No entanto, a chave para o domínio alemão passa por outra coisa: não sofrer defensivamente.

Quando Rangnick, Klopp e cia. começaram a desenvolver o estilo de jogo que marcou a Alemanha entre a segunda metade dos anos 2000 e a primeira metade dos anos 2010, eles se depararam com um problema claro. Se o time vai atacar com muitos jogadores e pressionar o adversário desde a saída de bola, a linha defensiva precisa ser alta e, consequentemente, acaba deixando espaços para o adversário contra-atacar. Para driblar isso, foi desenvolvido o gegenpressing. Como citei antes, o gegenpressing ou contrapressão (também conhecido como perde-pressiona) é um mecanismo defensivo que parte da ação imediata dos jogadores de ataque ao perderem a bola. Ao invés de se recompor em um desenho defensivo, os jogadores próximos da jogada devem sufocar o adversário que tiver a bola, dobrando ou triplicando a marcação em cima dele para matar uma possível jogada em velocidade que explore a linha defensiva alta. Por isso, é chamado de “contra-ataque do contra-ataque”.

A segurança defensiva da Alemanha nesse período de jogo foi fruto de um gegenpressing bem executado e encaixado. O Japão, retraído no campo de defesa, buscava contra-atacar explorando a linha alta do time de Flick que, por sua vez, tentava sufocar essas jogadas a partir do mecanismo de perde-pressiona.

Havertz é desarmado e os jogadores próximos da jogada (Gnabry, Gündoğan e o próprio Havertz) se preparam para triplicar a marcação em cima do portador da bola.
Havertz recupera a bola com apenas 3 segundos. Observe como o portador da bola está cercado por Havertz, Gnabry, Gündoğan e Süle, com Kimmich cercando a opção de passe mais próxima.
Outro lance: Alemanha tenta atacar pela direita, mas perde a bola. Observe a movimentação de Havertz e Kimmich, dobrando a marcação no portador da bola, enquanto Gnabry, Müller e Gündoğan buscam cercar as opções de passe mais próximas.
Mais uma vez, Havertz desarma o oponente 3 segundos depois de perder a bola. Observe que Gündoğan e Müller já se movimentavam em direção ao portador da bola para fechar ainda mais a marcação.
Outro lance: Alemanha perde a bola no meio de campo e já prepara 4 jogadores para sufocar o portador da bola, mas o juiz marca um toque de mão do jogador japonês antes do desarme.

O domínio que a Alemanha apresentou no segundo tempo, onde sofreu apenas uma finalização, passou muito pela efetividade que o time mostrou em pressionar o adversário após a perda da bola, aplicando o gegenpressing que Hansi Flick tanto valoriza. O treinador fez um trabalho espetacular entre 2019 e 2021 no Bayern de Munique justamente por mudar os bávaros de um time apático sem a bola que sofria em contra-ataques para uma equipe implacável ao pressionar, que sufoca os adversários a todo momento. Quando a Seleção Alemã dispensou Löw e contratou Flick, esperava-se justamente esse tipo de transformação: que a Alemanha de Jogi, com tantos problemas de transição defensiva, voltasse a ser um time que pressiona o adversário como poucos no futebol mundial. E, pelo menos no primeiro tempo, a Mannschaft apresentou sinais promissores.

O efeito dominó: e quando o gegenpressing não funciona?

O salto da produção ofensiva do Japão do primeiro para o segundo tempo é gritante: enquanto os japoneses finalizaram apenas uma vez e criaram humildes 0,11 xG no primeiro tempo, no segundo tempo os japoneses chutaram 11 vezes, criando 1,35 xG. Durante a segunda etapa, o Japão finalizou apenas uma vez a menos que a Alemanha, e os times empataram em finalizações no alvo. A diferença de xG passou de 1,44 no primeiro tempo para apenas 0,08 no segundo. A pergunta é simples: por que tanta diferença?

Alemanha perde a bola dentro da área, e Japão arma o contra ataque. Os jogadores, desconexos, não apresentam a mesma sincronia para contrapressionar.
Jogada segue sem a Alemanha conseguir sufocar o portador da bola. Ataque do Japão supera a primeira linha de marcação alemã e encontra o campo aberto e um cenário de 3x3 para contra-atacar.
Outro lance: volante japonês tem a bola no meio de campo, e 3 jogadores da Alemanha tentam fechar a marcação.
Alemães não conseguem fechar a marcação no volante japonês, que consegue espaço para o passe que encontra Ito atacando as costas da linha defensiva alemã.
No lance do primeiro gol japonês, o Japão sai jogando com certa tranquilidade e encontra espaço na origem da jogada pelo lado do campo, sem problemas em superar as linhas de marcação da Alemanha.
Espaço pelo lado do campo gera uma jogada de perigo, onde 5 jogadores do Japão invadem a área e conseguem marcar o gol.

Nesses lances, fica claro que a diferença do cenário do jogo entre o primeiro e o segundo tempo está na conta do sistema defensivo alemão. Afinal, o ataque da Alemanha praticamente não sofreu alteração nos números: finalizou 14 vezes no primeiro tempo e 12 no segundo, criou 1,65 xG no primeiro e 1,43 no segundo.

O problema estava na defesa alemã: a marcação alta e o gegenpressing não encaixaram como no primeiro tempo e as transições defensivas problemáticas do final da era Löw voltaram a assombrar a Alemanha. Com uma linha alta mas pouca pegada na marcação, aliadas a um time que posiciona 7 jogadores a frente da linha da bola, a ameaça em profundidade dos contragolpes japoneses estava desenhada. Além disso, a Alemanha produziu o suficiente para ter matado o jogo ainda no primeiro tempo, mas a falta de efetividade dos jogadores deixou o placar aberto e viva a possibilidade de uma surpresa do Japão.

Os problemas da Alemanha acabam se desenhando em um efeito dominó, ou em uma bola de neve que vai crescendo. Sem converter seu volume ofensivo em gols, o time acaba deixando o adversário vivo no confronto por não conseguir passar de vantagens magras. Em seguida, o desgaste físico acaba atingindo os jogadores alemães, que não conseguem pressionar e contrapressionar com a mesma efetividade. Assim, com uma linha defensiva alta e muitos jogadores no ataque, qualquer escapada do adversário vira um contra-ataque perigoso, com os zagueiros tendo que cobrir um latifúndio e os meias correndo para trás como loucos para frear as transições ofensivas do adversário. Nem tudo está perdido para a Alemanha pois, como vimos aqui, a qualidade da Mannschaft com a bola a coloca entre as melhores do Mundial nesse quesito. No entanto, a margem para erro é zero, e qualquer resultado diferente da vitória contra a Espanha no próximo domingo (27) eliminará os alemães da Copa do Mundo na fase de grupos pela segunda vez seguida.

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