Mãe líquida

Clarissa Barreto
3 min readFeb 18, 2016

--

Eu não sei como é “ser mãe”. A única coisa que sei é como ser mãe do Rafael, eu com 36 anos, já não cozinho na primeira fervura, ele com 2, em plena efervescência. Qualquer definição fora desse pequeno universo de nós dois é uma generalização da qual estou tentando desesperadoramente fugir — e como é difícil não sacudir a cabeça com benevolência e um sorriso de lábios fechados quando uma mãe reclama do filho de seis meses, pensando “espera pra ver o que te aguarda”.

Por essa discrepância nos nossos pontos de ebulição, me sinto exausta. Sinto saudade de ser só eu. De poder decidir ir a uma festa meia hora antes de sair, de ler revistas na cama até dez da manhã de sábado, de ter uma sala arrumada por mais de duas horas, de tomar banho sem pressa. E não estou sozinha. Uma proliferação de textos de pais e mães desesperados vem acontecendo na internet num ritmo de zika vírus. Embarquei no rosário de reclamações, nós mães somos mesmo pobres coitadas, mas por que estamos reclamando só agora? Aí lembrei do Bauman. Ei-lo:

Ter filhos significa avaliar o bem-estar de outro ser, mais fraco e dependente, em relação ao nosso próprio conforto. A autonomia de nossas preferências tende a ser comprometida, e continuamente: ano após ano, dia após dia. A pessoa pode tornar-se — horror dos horrores — “dependente”. Ter filhos pode significar a necessidade de diminuir as ambições pessoais, “sacrificar uma carreira”, como pessoas submetidas à avaliação de seu desempenho profissional olham de soslaio em busca de algum sinal de lealdade dividida. Mais dolorosamente, ter filhos significa aceitar essa dependência divisora da lealdade por um tempo indefinido, aceitando o compromisso amplo e irrevogável, sem uma cláusula adicional “até segunda ordem” — o tipo de obrigação que se choca com a essência da política de vida do líquido mundo moderno e que a maioria das pessoas evita, quase sempre com fervor, em outras manifestações de sua existência. Tomar consciência de tal compromisso pode ser uma experiência traumática. A depressão e as crises conjugais pós-parto parecem enfermidades específicas de nossa “modernidade líquida”, da mesma forma que a anorexia, a bulimia e incontáveis variedades de alergia.

Podemos trocar de emprego. De carro. De parceiro. De amigos. De cidade. Podemos optar por nunca mais encontrarmos nossos tios e primos, e até nossos pais. Mas, fora casos muito específicos, a relação de mãe e filho é possivelmente a última relação perene, sem porta de saída. Sólida como uma rocha, pétrea como o Deus seja louvado nas nossas notas de Real. E não estamos mais acostumados a isso. É compreensível que cada vez mais pessoas façam a opção de não terem filhos para não se confrontar com essa rigidez. É compreensível que cada vez mais pais se sintam oprimidos. Tempos líquidos. Amores líquidos.

Se eu tenho a solução? Lógico que não tenho. Me conforta saber que hoje há escolha entre ter e não ter filhos. Mas me preocupa que estejamos, nós que somos pais, tão frustrados, cansados e inseguros. Que reflexo isso vai ter nos nossos filhos? Me ajudem a responder.

--

--