“A sociologia é uma esporte de combate, mas apenas para se defender”

Claudio Cordovil
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16 min readNov 20, 2016

Entrevista inédita com Pierre Bourdieu, publicada 16 anos depois

Por Cláudio Cordovil

Bourdieu em cena do filme “La sociologie est un sport de combat”

Em dezembro de 2001, fui convidado pelo governo francês a entrevistar personalidades do cenário cultural e acadêmico, em Paris, numa viagem de 10 dias. Era uma espécie de gentil prêmio de consolação que o Consulado da França, na pessoa do então adido cultural Marc Pottier, me concedera. Na realidade, eu fora selecionado, em 1997, quando ainda trabalhava no Jornal do Brasil, pela hoje extinta Fondation Journalistes en Europe, para passar nove meses em Paris, cobrindo temas de interesse europeu para a sua revista intitulada Europ.

Ganhei, mas não levei, pois os recursos financeiros para tal empreitada não vieram junto com o certificado do prêmio. Assim, aceitei o prêmio de consolação do Consulado e escolhi três personalidades que tinha interesse em entrevistar: Luc Montagnier, descobridor do virus da Aids; Armand Mattelart, importante teórico da comunicação; e Pierre Bourdieu, o mais respeitado sociólogo da segunda metade do século 20. Trabalhava, na época do encontro com Bourdieu, como editor de Ciência e Saúde da Globo.com (o que poderia ser considerado hoje o site G1).

Apesar da importância indiscutível dos três entrevistados, entrevistar um deles para mim representaria o ápice de minha carreira como repórter: Pierre Bourdieu.

Minha admiração por Bourdieu surgira quando, na redação do Jornal do Brasil, entre 1992 e 1999, movia uma guerra pessoal sem fronteiras contra o neoliberalismo, ideologia que surgia com força total sob o governo de Fernando Henrique Cardoso. Mas com alguma elegância sutil, comparado ao descaramento desavergonhado com que o neoliberalismo nos é hoje imposto goela abaixo.

Bourdieu e o repórter, em seu gabinete no anexo do College de France (2001)

Os artigos de Bourdieu, publicados em sua dimensão de intelectual público, a partir de 1995, me inspiravam a prosseguir na luta contra a ideologia do pensée unique e do horror econômico.

Algumas peripécias rondaram a entrevista dos sonhos. Num primeiro momento, a secretária de Bourdieu informou à minha secretária (que o Consulado gentilmente me ofereceu em Paris) que a entrevista não seria possível. Tristeza profunda. Afinal, a pièce de résistance de minha ida a Paris era a entrevista com Bourdieu. Atribuo esta negativa à delicada condição de saúde de Bourdieu na ocasião.

No entanto, a bordo de um táxi no dia seguinte, o telefone de minha assistente toca. Era a secretária de Bourdieu nos informando que ele concordava em nos dar a entrevista. Regozijo total. O que se seguiu foram os 90 minutos mais gloriosos de minha carreira jornalística, no anexo do College de France. Um homem gentil, elegante e brilhante estava ali à nossa disposição. Ganhei de Bourdieu uma edição autografada de La domination masculine (em catalão rsrsrsrs) e pedi a ele que autografasse o meu livre de poche La Misére du Monde, o que ele fez acrescentando uma linda dedicatória.

Por uma série de circunstâncias que ora não vêm ao caso, esta entrevista permaneceu inédita nos últimos 15 anos. Foi a última entrevista concedida por Bourdieu a um jornalista brasileiro. Talvez uma de suas últimas entrevistas concedidas a um jornalista de qualquer nacionalidade. É de dezembro de 2001. Bourdieu faleceu em 23 de janeiro de 2002.

Esta entrevista foi o estopim do Colóquio Bourdieu, que idealizei para acontecer 15 anos após seu falecimento e, originalmente, para divulgar a entrevista inédita e recordar o pensamento do meu ídolo maior, através de palestras de seus mais respeitados alunos brasileiros. Contei com o apoio imediato de A Maison: Espaço Cultural da França para este projeto. E com a ajuda de uma comissão organizadora incrível, nas pessoas de Leonardo Castro, Carlos Otávio Fiuza, Julien Roques, Adalberto Cardoso, José Maurício Domingues e José Sérgio Leite Lopes, a quem agradeço pelo embarque neste sonho que ora se torna realidade.

Deleite-se agora com a atualidade e o vigor do pensamento de um dos mais importantes intelectuais do século 20.

Bourdieu na greve dos ferroviários, em 1995.

O senhor manteve uma posição muito discreta diante dos acontecimentos de maio de 68 na França e assumiu um papel importante durante a greve dos ferroviários em 1995, em Paris. A que atribui esta mudança de atitude?

Sempre estive presente na vida política, mas, sem dúvida, de uma maneira mais discreta no passado, até mais invisível. Como eu estava menos visível, minhas ações foram também menos visíveis. Então, costuma-­se dizer que mudei bruscamente em 1995. Penso que isto não é verdadeiro. Acredito que o que tenha mudado foi a visão que os intelectuais e, sobretudo, os jornalistas tinham de mim. Por exemplo, em 1981, fiz com Michel Foucault um apelo em favor do sindicato Solidariedade, na Polônia. No entanto, é verdade que tomei posições mais visivelmente políticas a partir de 1995, porque acredito que a situação global mudou muito e o perigo que ameaça certos dispositivos da sociedade democrática desenvolvida e as outras são muito grandes. Não é mais possível se omitir. Penso que o sociólogo, por conta de seu trabalho, pode ver as coisas com alguma antecipação. Pode ver as conseqüências a longo prazo de decisões políticas atuais, seja em termos de saúde, de delinqüência, de mortalidade e outras. Se eles não falam do que prevêem, são culpados de não-­assistência a pessoas em perigo, muito gravemente responsáveis.

Michel Foucault

A que o senhor atribui uma espécie de cooptação intelectual, diante da nova ordem econômica, apontada por alguns analistas? Parece que o senhor é uma das raras pessoas do mundo acadêmico que se coloca neste papel de intelectual público, não raro com críticas ferrenhas de jornalistas e profissionais da mídia. Como o senhor explica este distanciamento entre o universo acadêmico e a vida das pessoas comuns?

Há muitas causas para este fenômeno. Diz-­se que o intelectual tem uma certa autonomia em relação à política, ao jornalismo, mas esta é uma autonomia relativa. Sua autonomia, infelizmente, acompanha as grandes tendências. Eles se afirmam como independentes e anticonformistas e livres e, de fato, ocorre o inverso: são tão conformistas quanto os outros. Então há uma grande tendência à conservação. A sociedade desenvolvida se voltou para a conservação, globalmente. Seja o partido conservador, seja o partido social­democrata, hipocritamente socialista, e na realidade conservador. Os intelectuais acompanham isto. Então vemos uma grande parcela de oportunistas, de conformistas, que ou bem não refletem sobre nada ou se ligam ao poder.

Há também um fator individual muito importante na minha opinião, que é o fato de que muitos foram bastante engajados no passado, porque era politicamente gratificante se engajar, ser de esquerda. Eu, nesta época, por reação, não queria ser engajado, porque achava que isso era conformista. Fizemos um dossiê no Líber​,revista européia que dirigimos, sobre os intelectuais na Europa e o que acreditávamos que era um fenômeno francês: a trajetória do intelectual que passa da extrema­ esquerda para a direita ou mesmo para a extrema ­direita é muito freqüente, muito banal. Estes intelectuais são de alguma forma duplamente rigorosos com relação a pessoas como eu.

Revista, editada por Bourdieu.

Certa vez, uma pessoa me interpelou, perguntando quando ia parar de criticá­los. Mas eu não reprovava a conduta de ninguém em particular. Apenas reparava que muita gente que estava aparentemente à minha esquerda há 20 anos, agora se encontra completamente à minha direita. E, evidentemente, estas pessoas são muito hostis a mim, porque lembro a elas o passado, mesmo quando nada falo.

Estas pessoas são bastante desencantadas, cínicas, e pregam o cinismo. Estive conversando com o historiador Christophe Charle, que me disse que foi a um colóquio sobre os intelectuais, que era animado por Jean ­François Sirinelli, que apresentou os intelectuais como uma espécie de excitados. Alguém da platéia reagiu, lembrando que Michel Foucault e o filho de Mauriac se atracavam com as forças policiais não para aparecer na mídia e que eles corriam riscos e disso não se podia esquecer.

Recordo-­me que falei, em um debate, que Michel Foucault se atracou com um policial da Guarda Civil em Madri e que Foucault não era especialmente um peso­ pesado no boxe. Era apenas corajoso fisicamente e então não se tratava somente de um processo de busca de visibilidade.

Então, temos esta espécie de filosofia cínica que é bastante comum entre certos intelectuais e que se projeta sobre o passado. Há, por outro lado, intelectuais muito tristes com o fim dos antigos comunistas, de gente que, de boa ­fé, foi comunista, que foi enganada, e que estão muito desconfiados.

Recentemente estive falando com um estudioso de Alexandre, o Grande, que me dissera que foi comunista, continuou na esquerda, mas não votava mais, em uma espécie de desesperança. Há uma parcela importante, em todos os países, de intelectuais sinceramente progressistas, nacionalistas e críticos que estão um pouco neutralizados pelo que se passou na história recente.

É verdade que não é fácil se sentir só nesta luta, mas sempre encontramos muitas pessoas que querem nos ouvir. Em Zurique, falei para 100 mil pessoas. Mas no meio jornalístico-­político-­intelectual há muito pouca gente interessada.

Alguém já disse que o jornal é a bíblia do homem moderno. O senhor acredita que os cidadãos seriam seres mais autônomos se a sociologia fosse o seu catecismo?

Não ousaria dizer isso, porque infelizmente o mundo do catecismo me dá medo (risos). Há um grupo de uma jovem que trabalha aqui na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais que prepara um número da nossa revista Actesde la Recherche em Sciences Sociales sobre o tema do ódio da sociologia, que é algo bastante antigo. O sociólogo Emile Durkheim era alvo de um ódio muito maior do que o destinado à Karl Marx. Ele foi denunciado, sofreu ataques anti­ssemitas. Então o ódio à sociologia é algo de muito antigo e profundo. Os sociólogos têm um sonho de doutrinar as massas, mas, para denegrir Durkheim, diziam que ele ia transformar os professores primários em pastores que iam ensinar o catecismo sociológico. Por isso convém ter cautela com estas comparações como a de sua pergunta.

Mas, penso que a sociologia não é uma série de dogmas, mas sim um conjunto de instrumentos de defesa contra a dominação e em particular contra a dominação simbólica. A sociologia é como um esporte de combate que se utiliza somente para se defender. Não devemos nos servir dela para atacar. Mesmo o caratê, que é um esporte violento, só é usado como instrumento de defesa.

Penso que a sociologia é isso, uma ciência que fornece armas de defesa contra a violência simbólica, essencialmente. Contra as outras violências, ela é útil também, mas não tão eficaz. Mas contra a violência simbólica, ela tem uma eficácia real. Se você olha a televisão com um certa cultura sociológica, você será menos inoculado. Se você escuta os discursos políticos com a ajuda da sociologia, você estará mais protegido. O que não quer dizer que se fique cético ou se transforme em uma espécie de cínico ou indiferente.

Como o senhor definiria o intelectual para os dias de hoje?

A degradação de Dreyfus

Penso que uma boa definição é a que vem do trabalho de Christophe Charle. É a definição originária, que se constituiu no momento do Caso Dreyfus. O intelectual é um escritor ou estudioso (Durkheim por exemplo que assinou o documento em favor de Dreyfus) que, amparado em sua notoriedade intelectual e em sua competência intelectual, intervém na política. Não é alguém que faça política, mas sim alguém que vai ao terreno político para dizer coisas com a sua competência e sua notoriedade. É alguém que vai dizer: “Falsificaram a assinatura de Dreyfus!”. E faz um trabalho de impor sobre o terreno do político um nome que já se impôe sobre o terreno da ciência. Não é um intelectual que se torna um político e não é alguém que escreve em seu gabinete sobre a política, mas é alguém que, com sua notoriedade de intelectual, vai ao terreno da política para uma ação e retorna depois à sua “torre de marfim”.

Mas esta definição a qual o senhor se filia tem lhe custado uma crítica violenta dos jornalistas.

Isto é normal, no sentido de que sociologicamente é bem compreensível que eu seja atacado, porque eu cometi uma espécie de transgressão do ponto de vista das relações tácitas entre o intelectual e o jornalista. O estudioso despreza o jornalista e vice-­versa. Ambos são hipócritas. Os estudiosos desprezam os jornalistas porque pensam que estes são incapazes de compreender qualquer coisa. Por outro lado, os jornalistas desprezam os intelectuais que estão dispostos a tudo para fazer sua autopromoção e que são capazes de coisas incríveis, que justificam o desprezo dos jornalistas. Eu afirmo que não desprezo os jornalistas, mas bem o contrário.

Acredito que esta é uma atividade muito importante e séria. É em nome do respeito que tenho por esta profissão, tal como deveria ser exercida, que digo que este ofício, da maneira como hoje é exercido, não vai bem. É um ofício que foi relegado a intelectuais que se passam por jornalistas e vice-­versa. Os intelectuais destroem a profissão do jornalista porque não fazem jornalismo. Escrevem colunas ou artigos de opinião, mas isto não é jornalismo. O trabalho de reportagem exige ir aos locais, investigar, fazer entrevistas. Com meus artigos e livros, descrevi algo na origem deste furor. Adverti: “Atenção, há intelectuais-­jornalistas!” E todos os intelectuais que se fazem de jornalistas e todos os jornalistas que se acreditam intelectuais, que são muitos, ficaram furiosos. Eu poderia te dar uma lista dos furiosos só porque eu disse que não cuidavam de seu ofício.

Penso que o trabalho do jornalista é muito sério. Não os chamei de medíocres, de vendidos ou relapsos. O que eu disse foi que vocês têm uma profissão que é uma das mais importantes da atualidade. E o jornalista vive sob o mito do quarto poder, poder crítico, que sem ela a democracia é morta. É também um poder de vida ou morte sobre as idéias. O que digo hoje depende completamente do que você vai escrever. Minhas experiências são terríveis com repórteres que disseram o contrário do que eu disse, ou cortaram o que falei.

Este é um poder enorme de censura, de seleção e de orientação. Atualmente, sou um dos intelectuais franceses mais conhecidos internacionalmente e posso lhe garantir que tenho uma grande dificuldade em falar em um espaço público. Quando quero falar sobre algo, não me dão a palavra. E pedem minha palavra quando não quero falar. Se digo que quero conceder uma entrevista amanhã na emissora TF­1, serei logo atendido porque a audiência no horário subirá. Mas terei de responder a perguntas idiotas do tipo: “Como vê o encontro entre o presidente Chirac e o primeiro-­ministro Jospin?”. Perguntas sobre coisas que me são indiferentes. Mas se quero ir à televisão para falar de assuntos importantes, sobre os riscos do mundo em termos ecológicos, devido à concentração capitalista, não vão me receber.

A recepção da imprensa estrangeira a seu trabalho é melhor do que a da imprensa francesa?

Muito melhor. Na Alemanha , quando é dia de meu aniversário, é comum saírem matérias em todos os jornais. Ultimamente o historiador inglês Eric Hobsbawm ganhou um prêmio Ernst Bloch,muito importante na Alemanha, que é dado a intelectuais críticos e de esquerda e o LeMonde menciona en passant que Hobsbawm ganhou o prêmio que foi dado ao intelectual Pierre Bourdieu. Mais não disseram. Por que esta situação? Mesmo meus artigos sobre jornalistas estão em todos os lugares. Eu li um enorme artigo em OGlobo que podia discordar de minhas teses, mas que as discutia. Mas, na França, os argumentos eram de caráter pessoal, sem a menor discussão. Disseram somente que era falsa minha argumentação. Eu digo: ‘Não. É verdadeira!’. Temos pessoas que reproduziram todas as matérias jornalísticas publicadas sobre o assunto e vão estudar o material porque esta é uma espécie de situação experimental. Então, temos uma diferença enorme entre a situação na França e no estrangeiro.

Como vê os movimentos sociais, como o dos Sem Terra, porque algumas pessoas lhe acusam de ser um tanto cético ao não oferecer uma solução utópica para a democracia.

A verdade é que há limites sobre perguntas que posso responder. Tenho aqui impressões e isto não é um julgamento. Não fiz pesquisas ou enquetes, mas me parece um movimento interessante politicamente, que estaria talvez na base de um novo internacionalismo que defendemos como movimento social. Vejo uma certa solidariedade que pode ser desenhada entre camponeses europeus, latino-­americanos e coreanos que me parece revelar que a nova forma de dominação que leva o nome de mundialização toca talvez prioritariamente o estrato camponês.

Devido à grande concentração do capital econômico e da potência de empresas multinacionais, todo o campesinato tradicional se encontra em situação de quase miséria. Um exemplo é a Costa de Marfim, que vive um clima de guerra tribal e que era um país relativamente próspero, um dos mais desenvolvidos da África. Houve decisões sobre o cacau e uma intervenção do FMI que arruinaram o campesinato tradicional. Penso que estes movimentos sociais são de reação aos efeitos invisíveis do neoliberalismo e da política de globalização, que não é uma fatalidade inexorável, mas uma política.

Neste sentido, nos parece que os movimentos de camponeses são muito ambíguos porque estão entre o milenarismo, o radicalismo e a luta revolucionária. Mas o que me parece interessante é que ele anuncia um despertar do Sul. Mas eu deveria estudar melhor o assunto.

O senhor acredita em um potencial libertário da Internet? O que pensa de sua utilização em protestos recentes em Seattle e Washington? Acredita que ela possa inspirar uma nova forma de fazer política ?

Eu penso que se supervaloriza um pouco isso. É importante destacar que isto é uma ilusão de jornalista. É um meio no qual a Internet é bastante presente . É uma categoria profissional bastante aberta a esta mídia. Estatisticamente, é a primeira categoria profissional a viver esta cultura Internet. O fato é que o jornalista tem simpatia por tudo isso e, seja ele de direita ou de esquerda, ele a superestima. Eu penso que esta rede que pode se constituir a partir da Internet tem sua importância e pode favorecer mobilizações do tipo Seattle, mas acredito que isto não é suficiente para promover um verdadeiro movimento social. Não se faz uma revolução com um site na lnternet.

O livro de minha autoria que esta em vias de ser publicado que se chama Porum movimento social europeu éuma tentativa de responder a esta questão: Podemos nos contentar com movimentos do tipo Seattle, Nice, Praga, de indivíduos, de coletivos não politizados, de associações em uma espécie de nebulosa de não-­organizados? São um pouco imperativos para mudar radicalmente a sociedade, mas não acredito. Devemos organizar gente já organizada, como associações e sindicatos. É o que penso para a Europa.

Como vê as críticas de adversários que constatam “a fuga militante do sábio que passou da sociologia da dominação ao discurso populista da revolta”?

Não tomo conhecimento das coisas que falam sobre mim em geral. São meus amigos que me informam dos comentários. Parece­-me que a maior parte de coisas que são ditas, que foram ditas, não têm interesse. São afirmações que não dizem nada de importante ou crítico. São ataques pessoais. Estes ataques são em grande parte produto da incompreensão. Provêm de pequenos intelectuais fracassados e incultos. Os pequenos intelectuais são agentes da repressão, são eles que guilhotinam, são eles que enviam para os campos de concentração. Costumo chamá-­los de filhos de Zdanov, que foi um péssimo escritor que se serviu do estalinismo para esmagar bons escritores. Um estudioso da Revolução Francesa, Robert Darnton, investigou o perfil de grandes revolucionários como Marat e constatou que uma boa parte destes revolucionários eram os fracassados na ciência. Marat era um médico inábil que guilhotinou Condorcet, que era um grande sábio.

Pode parecer uma simplificação o que eu digo, mas é recorrente na vida intelectual. Há lutas internas no meio intelectual e os pequenos, no sentido de fracos, medíocres, ruins e malvados, se servem de poderes exteriores, como o Partido Comunista da União Soviética, a Igreja e o jornalismo, atualmente, para atuar relações de forças que não conseguem arregimentar com as forças internas do campo intelectual. Se tentarem lutar comigo num terreno de igualdade, de homem para homem, sabem que não têm saída. Mas esta é uma lei geral. Receio que involuntariamente o jornalismo seja uma ferramenta desta lei geral.

Há muitos intelectuais medíocres que se servem do poder jornalístico para cortar cabeças. Marat não discutia a matemática de Condorcet e sequer tinha capacidade para isso, mas tinha o firme propósito de cortar sua cabeça. Neste ponto de nossa conversa, poderia entrar em detalhes e dar uma lista pormenorizada destes intelectuais, mas seria mesquinho de minha parte.

Em recente artigo no Le Monde Diplomatique o senhor definiu os contornos de uma nova bíblia planetária, como resistir a esta nova língua que é repleta de vocábulos como ‘flexibilização’, ‘globalização’, ‘ajustes estruturais’ e etc?

É bastante difícil, este é um grande problema, mas penso que a força da nova visão dominante é que ela penetra em tudo, como acontece com o vento siroco na África, que levanta a areia do deserto e que invade tudo. Pode fechar as janelas e a areia invade sua casa. É bem parecido. Pequenas palavras como ‘flexibilidade’, ‘globalização’, começam a ser empregadas por todos e isto vai mudando pouco a pouco o cérebro das pessoas. Há profissionais que trabalham para produzir estas palavras e fazê-­las circular. São conformistas e bem acomodados nesta linguagem. Penso que isto é muito difícil de combater porque representam um discurso do tipo ‘os mais fortes são mais fortes’ ou que ‘os mais fortes são os melhores’. E, nestas bases, não há o que discutir. Seria por exemplo bastante inusitado que um veículo como o seu dissesse que a partir de agora estas palavras estariam proibidas. Haveria pessoas que não poderiam dizer mais nada (risos). A verdade é que estas palavras são neologismos malformados e bárbaros que condicionam a realidade social.

Tenho um bom amigo que foi comunista e sectário e que me questionava sobre a minha filiação à esquerda. Há dois meses ele me deu um pequeno texto de sua autoria para ler, dizendo que ia para Seul participar de um encontro sobre a globalização. Como um documento, era extraordinário. Continha todas as palavras desta bíblia planetária e não queria dizer nada. Você poderia até trocar as palavras de posição sem mudar o conteúdo. Este pobre homem teve o cérebro lavado e hoje não pode pensar mais nada. E o pior é que acredito que ele não esteja percebendo o que se passa com ele, pois me deu este texto com o maior orgulho.

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Claudio Cordovil
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🦉Pesquisador em Saúde Pública (Fiocruz), foco em doenças raras🎤 Jornalista investigativo, 🥇Prêmio José Reis de Jornalismo Científico (CNPq)