A incrível noite em que fui demitido

Cléber Zavadniak
A Vida de Cléber
Published in
5 min readSep 5, 2016

No bolso interno do casaco, junto ao peito, o velho Moleskine, de páginas amareladas, dormia tranquilo. Minha mente, por sua vez, estava irriquieta, revolvendo-se nos vagalhões de uma noite procelosa interior. Eu caminhava em uma espécie de marcha a caminho do trem que me levaria de volta para casa, enquanto, à minha volta, via as janelas dos velhos sobrados acenderem-se e a rua começar a ganhar vida novamente, repleta das gentes que saíam dos seus serviços no mesmo horário — e dos que começavam seu serviço justo àquela hora.

Na Rua 24 Horas a agitação da noite de sexta-feira começava a emitir seus típicos ruídos. Dentre eles, um riso estridente de uma adolescente destacava-se, feliz, provavelmente resultado de algum gracejo do mancebo que a cortejava.

O que quer que restasse do sol já estava indo embora, e o frio começava, novamente, a reinar, amenizando, de alguma forma, o odor de urina presente em cada pequeno recôndito que havia no emaranhado de paredes e muros de concreto que bordeava a calçada quebrada em que caminhava.

Chegando na estação, tiro o relógio do bolso. O trem já deveria estar ali. Fugindo do costume, sento-me no banco — que alguém ainda tenta manter branco, mas só consegue deixar “encardido” — enquanto levo a mão ao bolso, sacando o caderninho de anotações. Uma das beiradas já estava roída e o elástico já parecia começar a afrouxar.

“Velho companheiro, você”, falo mentalmente.

Manuseei com cuidado as folhas, sem prestar muita atenção ao conteúdo, até chegar em uma frase escrita, aparentemente, com força e sem o capricho típico das outras anotações:

There must be some way out of here…

[Deve haver algum jeito de sair daqui…]

“Disse o piadista ao ladrão”, eu sussurrei, novamente como que por reflexo.

Estático, olhando distraído para o chão sujo da estação, lembrei-me da forma desanimada que meu colega, Johnny, havia falado isso pouco antes de eu fazer a nota. E minha mente, como que ganhando asas, voou até aquele local e aquele dia no empoeirado e barulhento CPD em que trabalhávamos.

Naquela manhã, o gerente de projetos (curiosamente, 80% do pessoal da firma tinha esse título) Ferdinando havia-nos entregue o fatídico memorando: o senhor Nagashi não havia gostado nada do Projeto Jarvis. “Inovador demais”, ele chegou a escrever, indicando que preferia “aproveitar” nosso talento remendando, de alguma forma, a plataforma que já estava em produção — codinome “Gisele” [esse era o apelido real do projeto real da empresa real em que eu trabalhava].

Eu bem que gostaria de dizer que botar a Gisele nos eixos não seria fácil. Mas não, não se tratava disso. Ela era incorrigível. O que nos era pedido era que colocássemos uma saia longa numa meretriz e lavássemos seu rosto para dizer que, agora, ela era uma santa. Bullshit [besteira]! Sua alma já estava condenada havia anos.

Entretanto, não tínhamos outra opção. Já havíamos feito de tudo para convencer o senhor Nagashi, mas nada havia adiantado, nem o confronto direto, nem os estratagemas mais sutis e ardilosos.

Em um breve lapso de realidade, reparei que meu pé direito começou a bater em determinado ritmo. Nos alto-falantes repletos de chiado da estação, tocava uma música até que bem animadinha.

A tarefa do Johnny, agora, era “envelopar” o banco de dados — ou seja: lavar a cara da meretriz, para torná-la mais aceitável. O “Pássaro de Fogo” [Firebird], uma relíquia em extremo antiquada, apresentava a cada minuto uma nova surpresa para ele.

E não eram surpresas boas.

Ao descobrir que as senhas dos usuários eram salvas direto no banco, sem criptografia alguma, exclamou, atônito: “there’s too much confusion!” [há confusão demais]. Horas depois, ao ver a coluna “equipamento conectado” no banco (coisa que jamais um conhecedor dO Caminho da Programação faria), começou a bater com a cabeça na mesa.

Perguntei-lhe, com o máximo de camaradagem que consegui: “ei, o que é que há?”. Ao que ele respondeu: “I can’t get no relief” [não consigo ter sossego].

Tentei acalmá-lo e aconselhei-o a tomar outro café. Meia hora depois ele me chama e aponta para o monitor esverdeado, mostrando nele a mensagem de correio eletrônico enviada pela equipe de infraestrutura, pedindo as senhas de root [administrador] da máquina dele. Ele quase chora com tamanho descaso e desrespeito, dizendo:

Business men they drink my wine
[Negociantes bebem meu vinho]
Plowmen dig my earth
[Aradores cavam minha terra]
None of them along the line
[Mas nenhum deles]
Know what any of it is worth
[Sabe o quanto nada disso realmente vale]

Eu bem sabia quão terrível isso é. Por que alguém precisa ter acesso privilegiado aos computadores de profissionais competentes como nós? Todo o nosso trabalho sempre foi devidamente gravado no mainframe principal. Nenhum arquivo realmente imprescindível era mantido fora do acesso das pessoas certas. É claro que não! Qualquer profissional que seja, bem… profissional sabe o jeito certo de manusear informação. E, afinal, o que a equipe de infra, repleta de “entendedores de Windows” faria nos nossos computadores que rodavam Linux? Instalar um “antivírus”?

Suspirei. “No reason to get excited” [não há por que se inquietar], eu disse, gentilmente. E continuei:

There are many here among us
[Há muitos entre nós]
Who feel that life is but a joke
[Que sentem que a vida não passa de uma piada]
But you and I, we’ve been through that
[Mas você e eu, nós passamos por isso]
And this is not our fate
[E esse não é nosso destino]
So let us not talk falsely now
[Então, não vamos ficar de conversa, agora]
The hour’s getting late
[Que a hora já vai-se indo]

Levantamo-nos e começamos, cada um, seu ritual de saída. Diretamente atrás de nós ficava o “palacete” do senhor Nagashi, uma enorme sala com a lateral toda envidraçada, como se fosse uma “torre de vigia”.

Enquanto saíamos, olhei para trás. Na torre, o senhor Nagashi mantinha-se atento a tudo o que fazíamos, enquanto secretárias iam e vinham, e também estagiários.

Puxei o elástico velho do Moleskine com precisão e naturalidade, fechando-o e colocando-o novamente no bolso. O trem estava quase partindo. Nas velhas caixas de som da estação, a música chegava ao seu ápice, que também era seu final:

Outside, in the distance
[Lá fora, à distância]
A wildcat did growl
[Um gato selvagem rosnou]
Two riders were approaching
[Dois cavaleiros vinham se aproximando]
The wind began to howl
[E o vento começou a assoviar]

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