O incrível dia em que fui demitido

Cléber Zavadniak
A Vida de Cléber
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10 min readAug 12, 2016

[Publicado, originalmente, em 21/12/2015]

Dos bueiros de Curitiba subia um repunante vapor que cobria a rua pela manhã mal iluminada pelas velhas e amareladas lâmpadas a gás, excessivamente distantes umas das outras, que ainda estavam acesas devido à típica falta de sol da cidade. Eu caminhava tranquilo, com a gola do sobretudo erguida para proteger meu pescoço do vento gélido que assobiava nas janelas dos velhos sobrados do Centro.

Chegando na firma, penduro o chapéu e aguardo uns minutos, sentado, esperando dar a hora em que poderia bater meu cartão-ponto. No teto, o lento ventilador com pás de madeira clara, de pontas manchadas, fazia seu ciclo aparentemente eterno sobre minha cabeça, enquanto, ao longe, o som de algum dos enormes arquivos de ferro sendo abertos iniciava o aquecimento do que seria aquela sinfonia estranha que era o dia-a-dia na empresa, repleto de abres-e-fechas metálicos, papéis sendo folheados, grampos sendo violentamente atirados contra a base de metal dos grampeadores e canetas preenchendo formulários.

O tempo entre a máquina mordendo o meu cartão e a hora de tomar café passam voando. Talvez minha mente tenha dado seu jeito de absorver, de forma meio esquecidiça, a rotina massacrante presente, já desde alguns meses, naquele Centro de Processamento de Dados empoeirado no qual, dia após dia, eu aplicava minhas energias.

“Só não queria trabalhar dia 24. Por favor, é quase Natal!”, eu pensava, enquanto planejava trazer um pisca-pisca enorme para pendurar em volta da baia, apenas para demonstrar mais explicitamente — não sei bem para quem — o quão ridícula aquela situação era: 24/12 e pessoas trabalhando no CPD.

Faltando trinta meros minutos para aquele dia escuro terminar, o velho senhor Nagashi, um velhinho japonês, com bigodes finos e barba de mais de dois palmos, chegando a quase tocar a fivela de seu cinto (embora isso fosse muito difícil, já que o velho era muito corcunda, com a cabeça bem projetada para a frente), me chama para “conversar” na sua sala.

E é claro que eu já sabia qual seria o teor da conversa. Não poderia ser diferente. Já fazia um mês que eu e o restante do meu departamento éramos tratados como verdadeiros fantasmas. Alguns transeuntes fingiam que não nos viam. Outros já começavam a partilhar nossas posses, como urubus que não esperam a presa terminar de morrer com um mínimo de decência. Meios olhares e meias palavras era tudo o que recebíamos até então.

“Eu pensei que duraria até janeiro…”, refleti, um tanto atônito.

Todavia, embora o conteúdo fosse já conhecido, a forma foi surpreendente. O senhor Nagashi sentou-se em sua enorme poltrona, apoiou a bengala do seu lado direito e suspirou.

“Meu filho…”, ele disse, quase sussurrando. “Você já deve saber o motivo de ter sido chamado aqui.”

“Imagino que você vá me demitir, senhor Nagashi”, eu respondi, ingenuamente.

O senhor Nagashi pareceu chocado. Ele estalou os olhos e foi atacado subitamente por uma tosse seca.

“Não…”, ele disse, após uma última tosse. “A empresa é que está se demitindo de você!”, ele quase gritou, com os olhos mais esbugalhados do que antes.

Fiquei em silêncio e aguardei, pois me pareceu a atitude mais sábia a ser tomada. Ele se recompôs e prosseguiu:

“Há duas semanas eu peguei um vôo até Londres. Eu iria me encontrar com o professor Jamal Hitam, para meditar e aprender mais sobre o Zensunni. Nós conversamos muito tempo sobre o alcance da iluminação última e, durante oito dias, eu meditei, buscando organizar minha mente para prepará-la para tal acontecimento.

Conforme os minutos viravam horas e as horas viravam dias, minha alma angustiava-se, acreditando que a decrepitude deste velho corpo e mente seria uma barreira intransponível. Porém, no último dia, sofrendo em agonia não expressa para nenhum outro ser humano, um lampejo atravessou meu cérebro em meio a uma visão.

Vou contar sobre a minha visão.

Eu estava em uma cozinha, mexendo mingau com uma velha colher de pau. Eu estava insatisfeito, irado e, ao mesmo tempo, temeroso, pois a velha colher de pau não era adequada. Parecia que ela liberaria horríveis farpas no mingau.

Então, observando bem a colher, cheguei à conclusão suprema e, assim, vi um pequeno, mas surpreendente, feixe de luz branca, quase cegando meus olhos.

Ao abri-los, vi o professor Jamal, que me disse calmamente: “there is no spoon”.

Jamais esquecerei essa experiência.”

A essa altura, eu imaginava o que tudo aquilo teria a ver comigo.

Ao ver minha expressão facial, o senhor Nagashi explicou: “eu era cego, Cléber, mas agora vejo. Veja você também!”.

Dizendo isso, ele abriu uma gaveta e tirou de lá um grande espelho, que colocou apontou para mim enquanto dizia: “contemple… a grandiosidade!”.

Agora tudo era óbvio. Finalmente ele havia compreendido que eu era um conhecedor dO Caminho da Programação. Ele se arrependeu dos seus pecados como chefe e, agora, sentia-se indigno da minha presença.

“Seu talento, Cléber… é grande demais!”. Ele já estava em lágrimas.

Eu precisava me posicionar. Não poderia ver tal atitude sem colaborar para o crescimento daquela alma. Então abri minha boca e disse, propositalmente no mesmo idioma usado pelo professor Jamal:

“Size matters not! Look at me. Judge me by my size, do you? [Eu tenho menos que 1,70 de altura]. Hmm? Hmm. And well you should not.”

Ele, atônito, apenas balbuciava: “mas eu, eu…”.

“Luminous beings are we!”, eu disse. “Not this crude matter.”

“Mas Cléber, nossa empresa ainda vive nos anos 50! Nós batemos ponto, nós não temos nenhum funcionário remoto, nós usamos SCRUM só para gerar ‘indicadores’ e poder botar culpa nas pessoas, e ainda obrigamos todo mundo a vir trabalhar no dia 24 de dezembro, assim como no dia 31!”.

Diante do meu olhar de reprovação, ele encolheu-se ainda mais e disse: “Talvez eu possa tentar melhorar tudo isso…”.

“Do or do not!”, respondi. “There is no try!”

Ele entrou em uma espécie de transe, como se todo o complexo emaranhado de problemas da empresa passasse por sua cabeça. Parecia que, para ele, não havia solução.

Levantei-me. Ele olhava para o tampo da antiga mesa de cerejeira e, triste, disse sussurrando: “I can’t belive it…”. Então caminhei até a porta e, antes de sair, já resignado com o fato de a empresa demitir-se de mim, apenas lhe respondi:

That is why you failed.

Botei o casaco e enfiei nos bolsos meus poucos pertences. Peguei meu chapéu e olhei para trás, para o lugar onde trabalhei por tantos anos.

Meu trabalho ali estava feito.

Pra falar a verdade, não lembro ao certo se foi bem assim ou se foi só uma conversa amigável sobre o projeto ser cancelado, troca de linguagem de programação e meus serviços não serem mais requeridos.

De qualquer forma, nesses últimos 2 anos e 3 meses aprendi coisas incríveis e conheci pessoas excelentes. Eis algumas coisas que aprendi:

Eu não sabia nada sobre devops

Devops é uma cultura, não um cargo. Isso eu até sabia. O que eu não fazia ideia é que o bom “devops” se define pelo seguinte: ele gerencia 10 máquinas (físicas ou virtuais) do mesmo jeito que administraria 10 mil. E se, da noite para o dia, ele tiver que gerenciar, mesmo, 10 mil máquinas, pouca coisa vai mudar na rotina dele.

Entrega contínua não costuma ser opcional

Se você desenvolve software sem um plano decente de entrega, você está em maus lençóis. Sério. Integração e entrega contínua são vitais.

Nem todos enxergam o excelente como excelência

Muitas vezes ideias que são excelentes podem ser justamente motivos para você ser mandado embora. Às vezes fazer o certo pode parecer óbvio para você, mas é sempre bom conversar bem com todos os envolvidos para garantir que todos entendem que suas propostas são boas e positivas.

E, se for o caso, é bom admitir que, talvez, as suas propostas podem nem ser tão boas assim…

Apresentações: chatas, mas fundamentais

Eu até que sou bom em fazer apresentações, mas é frustrante passar 50% do tempo do projeto tendo que vender o peixe ao invés de trabalhar no projeto em si. Se você puder conseguir alguém que possa focar nisso no seu lugar, consiga. Se não, faça as apresentações mesmo assim.

Escritório???

Por que você obriga a sua equipe de desenvolvimento a estar fisicamente unida o tempo todo? Precisa mesmo disso? Curitiba já faz um bom tempo que não tem um trânsito tranquilo, e fica pior se você sai do serviço, como quase todo mundo, às dezoito horas. E trabalha no Centro.

Home office é uma benção. Pelo menos para equipes de desenvolvimento (programadores, infra, gerentes de projeto, design, etc). Exige um jeito diferente de gerenciar, mas é bom demais para quem sabe trabalhar direito.

Proxy é um tiro no pé

Se você não confia nos seus funcionários, mande-os embora, simplesmente. Se eu não burlasse o proxy tão facilmente, seria praticamente impossível trabalhar. Já pensou? Ter que pedir para trabalhar em horário de expediente?

Proxy que bloqueia conteúdo é punir os bons por causa dos ruins. Os que são muito bons burlam o proxy. Os que são bons ou quase bons não conseguem trabalhar. E os ruins sempre serão ruins. Ou seja: não se melhora nada.

24 de dezembro? Sem trabalho!

Jamais, jamais, jamais obrigue uma equipe que não precisa trabalhar dia 24 de dezembro a trabalhar dia 24 de dezembro. A única exceção a essa regra é no caso de você ser um chefe tão trabalhador, mas tão trabalhador, que você estará presente no dia 24 de dezembro e considera isso muito normal. Se você é inspirador nessa questão, talvez você possa obrigar todo mundo a trabalhar. Se não, sinceramente, você comete um erro terrível.

No dia 24 de dezembro os funcionários se reúnem para fazer duas coisas: coçar uma parte específica do corpo e falar mau do chefe. Sorry. Essa é a verdade. O vento leva uma ou outra bola de feno pela rua enquanto sua equipe está toda reunida desejando uma morte lenta e dolorida para você, “querido chefinho”.

Nesse dia a cidade inteira está deserta e os motoristas de ônibus ainda olham a gente com cara feia, como que dizendo “sou obrigado a trabalhar hoje só por tua causa, seu inútil!”.

E não venha dizer que é possível sair mais cedo e compensar no banco de horas. Isso é outro crime, que tratarei depois.

E o mesmo vale para o dia 31/12.

Banco de horas não é banco comercial

Eu costumava dizer que o banco de horas era levado tão a sério que em breve teríamos o “cheque de horas”. Tudo se resolvia à base de banco de horas. E, novamente, era mais questão de punir os ruins, o que acabava punindo a todos.

A “questã” do banco de horas chegava a ser cômica, especialmente quando o RH mandava e-mails vendendo a coisa como um grande benefício dado aos “colaboradores” (eufemismo para “funcionários”) da empresa.

Uh! Olha que legal! Você pode sair depois das 13:00 no dia 24/12, contanto que pague as horas! Mais um benefício para vocês, tchurminha bacana!

Lambancinhas de Natal?

A lembrança de natal que eu mais lembro foi um peru congelado enorme e um espumante. A ave era tão grande que ninguém encarou o desafio de levar a dita cuja no ônibus. Todos precisaram levar no porta-malas de algum carro.

A outra que mais lembro foi uma cesta de natal tão vagabunda (perdoe meu palavreado) que, dias depois, quando fui comprar outra para doar para uma família pobre, eu absolutamente ignorei aquele “modelo” específico porque teria vergonha de dar um troço daqueles para quem quer que fosse.

Sério: o budget tá baixo? Me dá “déizão” num envelopinho com um cartão que eu já fico contente.

Ademais, se você vai obrigar a equipe a trabalhar no dia 24/12 e 31/12 (o que é errado e você não deve fazer), pelo menos dê uma lembrança bacana.

Incentive as pessoas a irem no médico

É um contra-senso dar benefícios como plano de saúde se você só abona faltas quando a lei te obriga. É bom que as pessoas vão ao dentista de vez em quando, e sábado não é um bom dia. É bom que os funcionários vão no médico checar “qualé” a daquela dor estranha no peito ou daquela bolota embaixo do pé. Crie uma política que contemple isso. As pessoas não irão ao médico se forem pagar 8 horas de trabalho (em dinheiros) por isso.

Sometimes, play it safe

Eu gosto (muito) da ideia de “empreender dentro da empresa”. Mas nem todas as empresas estão preparadas para isso. Às vezes, o melhor a fazer é simplesmente ficar quieto e observar, trabalhar em soluções por conta própria e depois vendê-las para a empresa.

Parece egoísta? Longe disso! Em muitas ocasiões os diretores vão até preferir essa segunda abordagem, já que é “segura” para eles, também. O que a diretoria quer, pelo menos em empresas como a que eu estava, é que você seja “gerenciável”, ou seja, que faça aquilo para o que foi contratado e não abra muito suas “asas”.

Então, meu conselho é: não abra muito a boca. Seja um bom funcionário, seja criativo, mas se a empresa não é bem daqueles ambientes que realmente te incentivam a empreender, siga pelo caminho seguro.

Não há lugar para os tecnocratas

Há, basicamente, quatro tipos de pessoas dentro das empresas: perdedores, sem-noção, sociopatas e tecnocratas. Procura isso no Google, depois. Basicamente, se você é um tecnocrata (que acredita em trabalhar duro e em crescer junto com as pessoas à sua volta), [praticamente] não há lugar para você no mundo empresarial tradicional. Comece cedo a tentar abrir sua empresa ou seguir, sei lá, no campo das artes

Não queime pontes

Jamais. E não faça inimigos. Seja amigo de todos. A gente nunca sabe o dia que vai precisar. Mesmo que você saiba que o chefe te chamou na sala dele para você assinar o termo de dispensa, não largue os bets. Essa é a hora de ser mais simpático e “profissional” do que nunca, mesmo que seja puro fingimento (afinal, não costuma ser uma situação muito feliz).

O grande segredo dessa vida são as pessoas e como você se relaciona com elas. Ter muitos aliados é a receita para a tranquilidade. E uns poucos inimigos podem tirar o teu sossego.

E é bom ter sossego e tranquilidade…

Em resumo

Me arrependo de algumas coisas, mas fico feliz porque aprendi muito, muito mesmo. O Cléber de 2013 era uma pessoa muito diferente. E espero que o do ano que vem também o seja.

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