ACEITAMOS DOAÇÕES
Ver aquele amontoado de livros sempre me trazia uma calma que eu jamais conseguia entender. Do pó que cobria, como uma jaula protetora, todas aquelas folhas, à imaginação que trabalhava dentro de minha cabeça sobre o tempo que eu nunca teria para ler tudo aquilo; para aprender o que cada mente tanto quis dizer.
Eu andava entre as estantes com o íntimo desejo de passar minhas mãos em cada livro, na fantasia de um campo de flores, sentindo cada palavra na ponta de meus dedos, aspirando a poeira de dias, meses, talvez décadas, mas não por conta do descuido do senhor dono deste sebo de livros e sim pela falta de ventilação. Não havia janelas nesse lugar fora aquelas da frente, e permaneciam fechadas servindo apenas de vitrine para o conteúdo pouco interessante em um mundo tomado pelos engarrafamentos de celulares e suas informações a cada milissegundos.
“O senhor trabalha com trocas?” Perguntei ao homem, dono do pequeno estabelecimento, assim que me aproximei.
Ele virou um de seus ouvidos na minha direção e me pediu para repetir, pois uma moto passou rasgando todas as minhas palavras. E assim que eu fiz a mesma pergunta, sem tirar nem pôr uma palavra sequer, ele me respondeu tranquilamente: “Não,”enquanto que ao mesmo tempo balançava sua cabeça.
“Mas aceita doações?”
Sua resposta foi oposta à anterior, mas não pronunciou a palavra, apenas assentiu com a cabeça.
“Obrigado,” eu concluí me afastando e tomando o rumo de casa, atravessando a turbulenta rua na primeira chance que tive.
No trajeto pensava nos livros que poderia doar, caso fosse de fato o fazê-lo. Minha estante estava expulsando as obras, como feras saltando através do tempo. Mas a doação, por mais que fosse uma forma nobre de se desfazer de algum bem, ainda me doía os sentimentos dentro do peito. Pois não foram apenas personagens-quase-pessoas e suas estórias-quase-histórias que conheci e vivenciei, mas o meu próprio aprendizado, significância nos relacionamentos que cultivei a cada folha passada por minhas mãos e cada palavra beijada por meus olhos nos silêncios que sozinho, mas tão bem acompanhado no universo, que passei. E nisso também pensei nos livros que me desfiz.
Eu e Kelly já conversávamos antes de nossa primeira e última noite juntos. Nos conhecemos há uns dias, no auge de minha recém vida de solteiro, e nesses dias antecedentes à nossa rendição carnal ela me falava o quanto gostava de ler e amava Stephen King, e também de escrever, embora não tivesse o mínimo conhecimento gramatical e lírico para a coisa. Ela escrevia suas fantasias, sem pudor com o realismo, sobre os membros de sua boyband favorita, o que me parecia fora da caixinha o suficiente à minha altura. Não omitirei que a julguei estranha, sobretudo pelo fato de ter quase trinta anos e fazer algo que eu já cansei de ler em minha juventude quando me encontrava entediado ou apenas querendo me sentir bem; por saber que outras pessoas eram piores que eu em seus passatempos. Mas seu jeito de falar me trazia um incômodo inexplicável, e por conta dessa angústia eu resolvi convidá-la para sair e descobrir o que a noite nos aguardava.
Bebemos em um bar perto de minha casa. Depois da primeira dose de vodca ela gargalhou jovialmente, como se molhasse os lábios com a coragem líquida para uma aventura em terras distantes. Não me recordo das primeiras palavras que trocamos, dos primeiros assuntos presenciais, olho-no-olho, mas lembro da roupa que usava. Uma camisa de flanela vermelha e outra camiseta preta, sem estampa, por baixo desta, shorts jeans curto, meias arrastão e botas de couro. Sua maquiagem era leve, mas talvez fosse o batom vermelho me chamando atenção. Foi logo após a segunda dose que começou a falar sobre o passado, presente e futuro. Falou da filha que tinha, que mesmo tendo engravidado cedo ainda conseguia se divertir de vez em quando, e quando disse isso abaixou a cabeça e se desculpou, pois havia jurado a si mesma, anos atrás, que não se sentiria assim. Falou do atual emprego, em um salão de beleza na zona sul do Rio, e como mulheres ricas lotavam aquele lugar pra receber um serviço mais ou menos bem mais pra menos. Falou que sonhava em sair do país e visitar a Coreia do Sul, que até começou a estudar o idioma, mas era muito difícil. Dito isso, também falou que demorava pra aprender algumas coisas, pois na infância seu pai, em um dos atos de fúria que repetidas vezes tinha, resolveu que bater sua cabeça na parede a ajudaria a estudar e assimilar o conteúdo, e logo depois falou que tinha o costume de falar demais sobre a própria vida. Eu a tranquilizei com isso, dizendo que não precisava se preocupar com qualquer coisa, porque naquela noite, diante de mim naquela mesa, eu fazia o papel de um padre, e que seus pecados estariam seguros comigo. Mas foi na terceira dose daquela vodca que ela se levantou da cadeira, sentou-se minha perna direita, colocou as mãos em meu rosto e me beijou um beijo longo de conseguir tempo o suficiente para roçar sua virilha em mim. E nisso me vi obrigado a chamar um táxi, que na ida para minha casa ela achou que ainda deveria esclarecer suas intenções com uma das mãos dentro de minha calça.
Entramos em minha casa e apaguei as luzes de fora. Abri a porta do meu quarto para ligar a luz e disse que iria à cozinha pegar água. E assim que voltei ela estava sentada em minha cama, com suas roupas no chão, e uma lingerie preta provocadora, de cinta liga com as meias arrastão que eu hora antes vi. Me surpreendi vendo essa cena, confesso, e sorri antes da única coisa que poderia fazer; me virar para fechar a porta e apagar as luzes. Tirei a camisa, me aproximei de Kelly e dessa vez foi o seu rosto que foi segurado para sua boca ser beijada; e enquanto isso acontecia ela tirou o cinto de minha calça. Por fim, ela subiu à cabeceira engatinhando e se virou para mim, me chamando com o dedo. E eu fui, iluminado pela luz do poste da rua que entrava pelas frestas da cortina, voltando a beijar sua boca assim que me aproximei. Nos deitados e continuei seguindo beijando seu pescoço, beijando entre seus seios, beijando sua barriga, e prestes a beijar suas coxas acabei notando cicatrizes de cortes, o que me fez lembrar daquela história sobre seu pai. Me ergui o suficiente para ver seu rosto; ela estava de olhos fechados e mordendo os lábios. Senti uma súbita vontade em beijá-la onde mais doía, porém me contentei em tirar sua calcinha e beijá-la ali mesmo.
Infelizmente eu não dormi depois que transamos. Algo me incomodava demais além do cansaço. E no que o despertador de seu celular tocou eu já estava de pé, passando o café e olhando janela afora. Comemos juntos nessa manhã estranha, e antes que ela fosse embora eu fui à minha estante e peguei o único livro que tinha do Stephen King, que minha primeira namorada havia roubado da biblioteca da escola em seu último ano para enfim me presentear.
“É sério?” Eu lembro que suas palavras foram de tamanha incredulidade. “Você tá me dando mesmo?”
“Sim,” eu disse. “Pode ficar. Eu odeio esse cara,” e também lembro que disse isso sorrindo.
Não me arrependo desse livro. Sequer o li. E também me pareceu certo fazer aquilo, visto as noites que passei acordado querendo me desfazer daquele enorme livro em minha estante. Talvez algumas histórias sejam mesmo tão pesadas; de um peso incabível dentro de nós. Mas houveram outros dois livros cuja inocência me tiraram proveito.
Paloma foi expulsa de casa há um ano.
Nos conhecíamos há um mês, mas essa foi a segunda coisa que me disse. A primeira foi que tinha um namorado, assim cortando qualquer possibilidade de flerte comigo. Embora o sujeito dono de seu coração e orgasmos fosse de outro estado; do litoral de São Paulo, pra ser mais preciso. E essa amizade que durou tão pouco pode ser resumida em esporádicos encontros, tanto em suas casas–no plural devido às constantes mudanças–como na minha, para reclamar de seu namorado e chorar um amor enganoso.
Ela era uma mulher insegura de si, com as complicações da vida tão à flor da pele ao ponto de qualquer um entender suas olheiras, mas se até adultos de meia idade são, por que uma jovem de vinte anos que foi exilada de seu lar por seu próprio pai por conta do crime passional de amar um homem de outro estado também não seria? O que mais me chamava atenção era como todos os relacionamentos que tinha flutuavam em sua vida. O pai queria de volta a garotinha que criou com tanto amor e carinho. As amigas, e a irmã que pouco contato tinha, queriam vê-la bem, saudável, e ainda mais longe do namorado; tanto no sentido geográfico quanto emocional. E o dito, amaldiçoado por todos esses, só queria foder com sua cabeça.
Era ela, somente ela, quem se desdobrava para fazer o relacionamento funcionar. Era ela, somente ela, quem cruzava a Dutra em sacrifício do amor que somente ela, ao que tudo indicava, sentia. Era ela, somente ela, quem aguentava os desaforos de uma família rica, abastada em dinheiro, e sendo tratada tão pior quanto a empregada doméstica. Era ela, somente ela, que mesmo sendo pobre ainda conseguia presentear o namorado, fosse com um colar e um pingente de anel prateado de dois reais comprado no camelô do calçadão de Bangu.
Quando ele finalmente a visitou, resolveu jogar fora toda a dedicação de sua parceira.
Confessou ter traído sua confiança inúmeras vezes, justificando a distância com necessidades biológicas de carinho e afeto. E só o fez pois, na sua primeira noite na capital fluminense, Paloma testemunhou uma dessas traições a menos de dois metros de distância. E então muitas coisas chamaram sua atenção para a conclusão desse relacionamento; tal como, em uma pesquisa que fizera no perfil do traíra quando ainda suspeitava de sua infidelidade, ter encontrado uma outra garota com uma vasta publicação de fotos com o, carinhosamente apelidado por mim, otário. Em uma das fotos ela notou o mesmo colar e pingente que o dera no pescoço dessa garota. E o otário, ao fim de sua confissão,
Seus prantos duraram uma semana, o tempo que tomou a maior decisão de sua vida até aquele momento: se mudar para perto de quem amava.
Minha opinião sobre isso não foi perguntada, mas minha resposta já tinha se assentado nos cantos de minha mente sem ensaio algum para ser ditada. Eu não me sentia íntimo o suficiente para alertar ou aconselhá-la, entretanto suas amigas já tinham feito. E foram meses depois que descobri, da boca de uma de suas pessoas mais próximas, da grosseria que Paloma acabou fazendo por conta da certeza que ela tinha dentro de si mesma que tudo daria certo. O diálogo foi do jeito perfeito que agimos na sua idade.
“Se as coisas derem errado lá, como você vai ficar?” A amiga perguntou. “Você tem algum lugar pra ficar aqui se voltar?”
E Paloma respondeu: “Eu já tenho vinte anos! Não preciso que você fique preocupada comigo, sei me virar sozinha muito bem.”
Brutal, eu lembro de ter sido o que respondi à amiga ao ouvi-la.
Infelizmente Paloma acabou levando dois livros meus. Um de estudos gramaticais para concursos e provas, e outro, em inglês, sobre a vida do frontman de uma de minhas bandas de pós-punk favoritas. E eu só lembrei disso quando ela me enviou uma foto de ambos, já instalada numa casa alugada assim que chegou àquela cidade.
Já em casa a primeira coisa que fiz foi parar diante de minha estante e analisar o que eu poderia doar ao sebo. Diferente daquele estabelecimento, meus livros estavam livres da poeira. Bem cuidados e posicionados, ao contrário das ideias que perturbavam minha cabeça na maioria das minhas noites. Meus olhos pulavam entre as lombadas dos livros. Muitas obras antigas, compradas em aventuras em outras livrarias antigas que visitei. Resolvi então tirar livro por livro e analisar qual que a perda não seria tão importante, mas acabei falhando devido a tanto sentimentalismo carregado dentro de mim. Livros, discos, pinturas, acredito que essas coisas realmente importam. Pode me chamar do que quiser.
E no meio das capas duras e moles; dos sacrifícios de autores malditos jogados na sarjeta da humanidade, me deparei com cartas antigas de uma época atribulada. Senti a vontade de doá-las, tão perdidas e deslocadas ali, longe do que hoje eu sou e ainda mais do que amanhã eu serei. Os livros ainda continham minha personalidade, meus gostos, e os sentimentos que eu nunca contei a alguém. Mas as lembranças das cartas eram fortes, e por conta disso acabei pressionando em meus lábios uma por uma, apreciando o sabor das palavras que não alcançaram meus ouvidos, mas minha alma.
Quantos anos se passaram desde a última vez que a toquei? Em minha solidão aprendi a me desfazer do ódio que nasceu devido ao abandono; ocorrido para que ela pudesse se salvar de si mesma, e a encarar a vida sem sua luz, embora nunca tenha me alegado como santo. Hoje eu entendi que foi o seu amor quem me abandonou, e merecimento nada tinha a ver com isso. E por conta disso eu nunca mais soube de sua importância.