Entrelinhas Pontilhadas: reflexões filosóficas, amizade, o peso do mundo e o humor ácido de um tatu bola
Entrelinhas Pontilhadas é uma série animada e desenvolvida pelo cartunista italiano Zero (zerocalcare) e lançada em 2021. A história é autobiográfica, mas também consegue dizer um pouco sobre cada um que a assiste. O principal foco narrativo é o desenvolvimento da amizade entre Zero e Alice, uma amiga que ele nutre sentimentos bem profundos. Nesse quesito, o humor é o que predomina. O tema é abordado com um prato cheio de reflexões e fugas de cenário bem viajadas, dando vida (ou melhor: animando) os pensamentos e sentimentos do autor. Tipo assim: as próprias histórias dos episódios não são lineares e se intercalam com as adversidades paralelas que nossa mente gera. E quando falo em dar vida, isso ocorre quase que literalmente, já que o subconsciente do protagonista é um próprio personagem do seriado. O querido armadillo é quem faz essa representação na forma de um tatu bola bem-humorado e de soluções duvidosas. Agora imagine só se sua mente ganhasse vida em forma humana que loucura seria. Não menos importante, estão também muito presentes na narrativa dois de seus melhores amigos: o Secco (o nome dele diz muita coisa) e a Sarah.
E o melhor é que, além do carisma desse universo criado, a própria narrativa é tão contagiante que consegue fazer qualquer tema e aleatoriedade se tornar interessante e engraçada, mesmo que seja uma discussão sobre as nojeiras de se usar um banheiro público masculino ou feminino. Os apenas 6 episódios de menos de 20 minutos te prendem do início ao fim e te fazem dialogar com as ideias da própria obra. E eu acho que um dos motivos disso acontecer é pela forma como tudo é representado e, sobretudo, o lance não só dos eventos serem narrados, mas também os pensamentos. Porque, vamos ser sinceros, nossa mente é quase uma entidade separada da forma como realmente agimos e fazemos as coisas. Toda uma imersão é criada a partir do momento que você também acompanha as neuroses, pensamentos intrusivos e esquizofrenias do personagem e seu tatu bola representadas em tempo real. Tudo ganha mais vida e pontos para se identificar, porque é exatamente dessa forma que vivemos a cada momento de nossa vida: sempre acompanhados de milhares de contradições, neuroses e loucuras em forma de pensamentos e de atitudes.
Entrelinhas Pontilhadas é uma mistura de desabafos sociais e existenciais com um humor ácido e dramático que se mistura com diversas referências da cultura pop. E a sua indicação faixa etária não é justificada por palavrões ou qualquer conteúdo sexual, mas, sobretudo, por ela conseguir tratar de tópicos sensíveis e complexos de forma leve, sem que você se sinta angustiado ou ative gatilhos. Você se reconhece naquilo e consegue se sentir abraçado ao mesmo que dá risada e chora. A série consegue, ao mesmo tempo, confortar e expor angústias muito difíceis de não se identificar. E eu acho mágico a forma como ele faz isso, tocando até mesmo em temas como o luto sem te joga pro fundo do poço ao mesmo que não te força a uma risada apelativa no momento errado.
O próprio nome do seriado já mostra muita coisa, uma vez que a própria vida é uma entrelinha pontilhada: um caminho estreito e duvidoso a se seguir. Aquele que você pode até planejar seguir de certo modo, assim como os pontilhados da folha, mas que muito dificilmente vai sair do jeitinho que queríamos e que provavelmente terá rasgos. De qualquer forma, não temos como controlar nada disso, muito menos quando diz respeito a quem está ao nosso redor. Mas, pelo menos, a gente ainda pode usar esses rasgos de papel para criar outras coisas: novos planos, novas metas, novas memórias ou apenas um rascunho de uma série da qual você ama de paixão e não tem ideia de como expressar tudo aquilo que sente em palavras (e como isso é clichê!)
Entrelinhas Pontilhadas está disponível na Netflix :)
