O que é e como opera o Realismo Capitalista: discutindo a obra de Mark Fisher (2009)

coelhoart
8 min readSep 6, 2023

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Nossa dívida a Mark Fisher — Alex Niven — Zero à Esquerda (zeroaesquerda.com.br)

Em tempos atuais, o “Realismo Capitalista”, de Mark Fisher, se faz um ensaio cada vez mais atualizado e necessário, colocando em ponto de questionamento o que muitos aclamam por chamar de Realismo. Mas bem, o que seria esse real? O realista é quem realmente trabalha com a realidade ou alguém que meramente aceita as condições do momento? É possível promover mudanças sendo realista? Ou apenas aceitar uma condição fatalista?

Ao trazer o conceito de realismo capitalista, antes já tratado por outros autores, novamente para o debate, Fischer consegue reascender todas essas reflexões (que não exclui em nada os marxistas que confundem o conceito com materialismo histórico), além de expandir e descrever tudo aquilo que o compõe. O realismo capitalista é mais do que um pensamento, mas também é o que define nosso modo de agir. Ou melhor, é pela imposição da incapacitação que ele age, nos impedindo de pensar, agir e viver fora das suas condições. Ao mesmo tempo em que parece ser uma ideia abstrata, o mesmo também não existe sem nossa participação.

Mas, afinal, o que esse conceito significa?

Não há um único sentido, mas de forma resumida, gostaria de propor o realismo capitalista como a naturalização do capitalismo neoliberal como se fossem inatas à natureza do ser humano. Como se fosse parte da sua natureza axiológica. Do mesmo modo que uma posição é naturalizada, tratada como uma ordem natural, um fato, o contrário ocorre com o que vai contra essa ordem. O que ocorre é a ação de um discurso impossibilidade sobre aquilo que antes era possível. No caso, há a disseminação de uma suposta inviabilidade sobre alternativas ao capitalismo neoliberal.

Uma posição ideológica nunca é inteiramente bem-sucedida até que seja naturalizada e não pode ser naturalizada enquanto ainda for pensada como valor, e não como fato. Nesse ponto, Fischer elucida a filósofa Alenka Zupančič:

“(…) O princípio da realidade é ele mesmo ideologicamente mediado; pode-se até mesmo afirmar que constitui o grau mais elevado de ideologia, a ideologia que se apresente como fato empírico (ou biológico, econômico), necessidade (e que tendemos a perceber como não ideológica). É precisamente aqui que devemos ficar mais atentos ao funcionamento da ideologia”

O capitalismo se torna um fato, o ponto de partida para se pensar a resolução dos problemas, não a fonte deles. Desse modo, qualquer solução viável é constada dentro do capitalismo ou torná-lo “menor pior” por meio e políticas reformistas que tem como base a ideia de que indivíduos mais altruístas, filantropos, poderiam reduzir as mazelas sistêmicas. É um discurso muito similar, como apontado na obra, com o que a pauta ecológica é tratada. A responsabilidade sobre um caos ambiental é individualizada, como se bastasse você desligar a água antes de lavar as mãos ou economizar no chuveiro para que todos os problemas se resolvessem (como as propagandas globais reforçam). Enquanto isso, a causa estrutural e que realmente leva ao problema passa impune.

É com base nessa concepção que surgem ideias e teorias como a teoria do fim da história de Fukuyama, onde o fim da história aconteceria com a consolidação do “livre capitalismo” e das “democracias liberais”. É nesse estágio que a história teria sua máxima evolução, uma vez que o capitalismo se tornaria um fato e inegociável. Dominantemente, essa é a concepção do momento. Mesmo que mais críticas sejam direcionadas a essa ideia de fim da história (inclusive o próprio autor buscou reformular seu texto), é ainda com a base dela, o realismo capitalista, que continua a reinar de forma dominante.

E, justamente com isso, é que temos por consequência um sentimento geral de ausência do novo, onde a criação é substituída pela reciclagem do passado. Basta ver, por exemplo, tantas obras cinematográficas hollywoodianas que fizeram sucesso em décadas anteriores e são apenas relançadas sobre o nome de uma continuação, ou então as tentativas de moda e da indústria fonóloga de reviver estilos de algum período, apelando para reviver a identidade desses movimentos.

Fischer também fala diretamente de algo denominado de precorporação de ideias: a formatação e modelagem dos desejos e da própria esperança pelo capitalismo, agora representados por zonas alternativas que apenas repetiriam contestações realizadas no passado como se fossem uma novidade.

É também nessa parte que Fisher elucida muito bem um apontamento muito importante do filósofo Slavoj Žižek:

que o anticapitalismo está disseminado, inclusive, dentro do próprio capitalismo e pelos seus principais atores.

Nem mesmo o anticapitalismo, nem que apenas em ideia, consegue fugir da apropriação. O exemplo citado é sobre os já clichês roteiros de produções hollywoodianas onde a vilã é alguma grande corporação. O mesmo vale para a dualidade da Globo ao colocar em suas novelas algum vilão mega latifundiário enquanto passa a chamada do “agro é pop” ou para o que acontecia na relação Kurt-MTV. A crítica é apropriada e revendida, pois essas grandes corporações sabem que isso vai render ainda mais polêmica e audiência. Fisher inclusive pontua (p.19):

“Cobain sabia que ele era apenas mais uma peça do espetáculo, que nada funcionava melhor na MTV do que um protesto contra a MTV; sabia que cada gesto seu era um clichê, previamente roteirizado, e sabia que até mesmo saber disso era um clichê”.

Ainda nesse tema, é notado que os indivíduos se tornam cada vez mais reféns de um espaço nessas afiliações capitalistas para conseguirem divulgar ou alcançar um público mínimo. É claro que a área de atuação não deve ficar restrita a ambientes virtuais controlados por essas figuras, mas, numa disputa ideológica, será preciso agir num ambiente em que são eles que definem as regras do jogo. E é por isso que, nesse campo, a própria crítica anticapitalista é restrita e dependente da existência desses espaços controlados: do youtube, do twitter, do medium, entre outros. Se um desses veículos resolve derrubar qualquer canal por qualquer motivo para quem ele vai reclamar? Para que alternativa ele vai atingir seu público? Há uma obrigação em aceitar as condições definidas.

Mark também para a descrever e analisar as condições em que o realismo capitalista transforma as condições de mercado de trabalho, impondo não só o capitalismo como um fato, mas aliado a ele o neoliberalismo. É a partir do ano de 1979 que essas condições recebem a caracterização de “Pós-Fordismo” para demarcar uma nova dinâmica produtiva burocraticamente hierarquizada, mas que ao mesmo tempo é descentralizada e desregulamentada em diversos setores, o que, juntamente de políticas de curto prazo e trabalho temporário levam à precarização do próprio trabalho e, como consequência, da saúde física e mental. São nessas condições que a “Ontologia Empresarial” se expande para todas as áreas, incluindo a educação e a saúde, sobre uma proposição de que até mesmo esses direitos deveriam gerenciados sobre a lógica de uma empresa (ou supostamente igual a uma lógica empresarial), acompanhando, é claro, toda a sua burocracia e sendo pautadas na obtenção expansiva de lucro e da efetividade sem limite.

O trabalho pós-fordista funciona com dois pilares principais: uma alta burocracia de grande controle e a postergação indefinida.

A postergação indefinida é o modo pelo qual as sociedades de controle conseguem operar. A prorrogação de tempo indeterminado do trabalho anda de mãos dadas com um policiamento interno, de modo que não seja mais necessária a existência de uma figura ocupando a posição de vigilantes, uma vez que o indivíduo se torna o próprio policiador de suas ações. Tudo isso para que o lazer e tempo livre agora seja também redirecionado ao trabalho e o turno de trabalho estendido para casa. Essa autovigilância é complementada pela burocracia, de modo que o relatório do que foi produzido passa a ser inclusive mais importante do que o seu próprio trabalho, assim como os exaustivos processos de autoavaliação, em que o próprio avaliador (você) é sempre incentivado a se avaliar negativamente para apontar possibilidades de melhoras. A imagem, pelo que Fisher chama de O GRANDE OUTRO, passa a ocupar o topo da hierarquia não só no trabalho, mas em qualquer ambiente de competição forçada. Nas escolas, parecer estar aprendendo, com notas superficiais baseadas no estudar para passar e presença meramente para não estourar o limite, é muito mais importante do que realmente se engajar no aprendizado. O comportamento fica restrito a o que é avaliativo e vale nota. Da mesma forma que, similarmente, uma empresa tem seu valor no setor financeiro definido pelas especulações e expectativas, no pós-fordismo, você é definido pelo que aparenta ser, meramente pela imagem.

É nesse ponto que tudo se desmancha em relações públicas.

O Realismo Capitalismo e a psicologia

Como consequência de toda essa condição, eu gostaria de destacar da obra quando Fisher escreve acerca da saúde mental e de como o realismo capitalista opera sobre ela, dando ênfase em como a depressão e ansiedade coletiva são cada vez mais normalizadas socialmente, de modo que se torna até comum ter uma crise dessas pelas condições que vivemos. Os altos índices que crescem cada vez mais de ano para ano não é mais gatilho para denunciar a mercadorização da vida dentro do capitalismo, muito pelo contrário. O que acontece é a individualização desses transtornos, de modo que o próprio tratamento e estudo da psicologia se constrói em volta de um método que procura por problemas dentro do indivíduo, não fora dele. Apoiado nisso, a ideia que Fisher chama de “Voluntarismo Mágico (p.140)”: a falsa crença de que está dentro do poder de cada indivíduo se tornar o que deseja ser, ignorando qualquer condição estrutural e tratando as exceções como regras dadas. Como consequência, os sentimentos de: servidão produtiva, fácil substituição, de culpa por não estar sendo útil (para os padrões capitalistas), o sobrecarrego funcional e emocional e muitos outros são ignorados. Isso tudo culmina numa situação agravante geral da chamada “Submissão Fatalista”, isto é, a aceitação das condições atuais e a crença de que tudo pode ficar ainda pior do que já está. Ou seja, uma condição de desistência por cansaço sobre algo que você não consegue crer na mudança.

Por fim, podemos ressaltar a imensa contribuição de Fisher em reconstruir uma ponte de diálogo entre diversos autores (como Deleuze, Zizek, Foucault etc.) pela desconstrução de paradigmas impostos como reais, como a única solução viável, mostrando que o que é posto como necessidade é apenas contingente. Além de questionar esse projeto de um realismo capitalista, a obra vai muito além e busca articulações progressistas para a derrocada do neoliberalismo por meio de um projeto coletivo na tentativa de matar um zumbi, como diz seu artigo:

(Como matar um zumbi: elaborando estratégias para o fim do neoliberalismo | Jornalistas Livres).

Mais do que um ativista, professor, pesquisador e escritor, Mark Fisher foi um grande contribuinte para a democratização da educação e da formação de um pensamento crítico pela evidência das contradições capitalista e seus mentirosos pilares neoliberais.

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textos sobre obras artísticas e aleatoriedades de gosto duvidoso. tudo aqui pode ser repensado, criticado ou melhorado posteriormente.