Breve introdução ao Feminismo Radical

Jéssica Petit
11 min readJun 11, 2018

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Foto por Clem Onojeghuo em Unsplash

A representação social do feminismo radical nas redes sociais é associada ao “extremismo”, “mulheres raivosas”, “transfóbicas” e “intolerantes”, e tal representação negativa tem contribuído para a estigmatização do movimento, sua criminalização e termina inibindo muitas mulheres à procura do aprofundamento teórico a respeito da vertente. Mas o que é de fato o feminismo radical e por que ele tem incomodado tanto a classe masculina? De que maneira o feminismo radical pode contribuir para a liberação das mulheres das imposições do sistema patriarcal?

Nessa breve introdução sobre a vertente, falaremos um pouco sobre a gênese do movimento, as principais pautas do feminismo radical, a leitura dos principais conceitos e a estigmatização do movimento.

1. QUANDO NASCEU A VERTENTE DO FEMINISMO RADICAL?

A vertente do feminismo radical nasce influenciada pela luta pelos direitos civis e combate ao racismo nos Estados Unidos, nos anos 60, e pela luta do Movimento pela Libertação das Mulheres (MLM). O MLM tem início nos Estados Unidos (Women’s Liberation Movement) e se expande para a Europa, ganhando força na França (Mouvement de libération des femmes), entre os anos 60 e 70, juntamente com a famosa revolução social conhecida por Maio de 68. Podemos considerar que o Movimento de Libertação das Mulheres foi um marco importante para o surgimento da segunda onda do movimento feminista, que é tida como continuidade da primeira. Enquanto a primeira onda é marcada pela luta pelos direitos políticos, iniciados pelas “sufragistas”, a segunda onda é caracterizada pela busca da emancipação feminina em relação ao patriarcado. As pautas levantadas pelo movimento foram: direitos à contracepção, ao aborto, ao planejamento familiar, luta contra todas as diferentes formas de opressão e misoginia, reivindicação à igualdade de todos os direitos morais, sexuais, jurídicos, econômicos e simbólicos. A famosa frase “o pessoal é político” ecoada pela voz da feminista Carol Hanisch, fundadora do grupo Mulheres Radicais de Nova Iorque (New York Radical Women), foi um importante slogan do movimento, que induziu aos estudos da origem da opressão sofrida por mulheres. O feminismo radical pode ser considerado como uma vertente do feminismo que utiliza o método dialético e materialista para analisar as origens de opressão contra os corpos femininos. Dessa forma, investiga as origens sociais das ferramentas utilizadas pelo sistema patriarcal para oprimir e dominar as mulheres com o objetivo de controlar a sexualidade e a reprodução femininas. Logo, é na análise do gênero enquanto sistema de opressão hierárquico e ferramenta patriarcal que o feminismo radical discute a opressão sofrida por mulheres. A respeito, Morgan Robin esclarece:

“Eu me intitulo Feminista Radical, e isso significa coisas específicas para mim. A etimologia da palavra “radical” se refere a “algo que vai à raiz”. Eu acredito que o sexismo é a raiz da opressão, aquela que, até e a não ser que extirpemos, continuará a se estender nos ramos do racismo, do ódio de classe, etarismo, competição, desastre ecológico e exploração econômica. Isso significa, para mim, que as assim chamadas revoluções até a data foram golpes de estado entre homens, em uma tépida tentativa de podar os galhos, mas deixando a raiz cravada no propósito de preservar seu próprio privilégio masculino” (ROBIN, 1978, p. 9)

2. O QUE SIGNIFICA DIZER QUE SER MULHER É UMA REALIDADE MATERIAL?

Como já dito anteriormente, o feminismo radical enxerga no patriarcado o sistema responsável pela opressão sofrida por mulheres e, no gênero, a ferramenta dessa opressão.

A famosa frase dita por Simone de Beauvoir, “Não se nasce mulher, torna-se”, na sua clássica obra “O segundo sexo”, tem sido deturpada por outros movimentos, o que dificulta o entendimento do papel do feminismo enquanto movimento político emancipatório. Em sua obra, a filósofa e feminista francesa demonstra de maneira crítica e cirúrgica o processo de desumanização de fêmeas humanas a partir da socialização feminina. Segundo a autora, para que fôssemos consideradas mulheres ou mulheres de verdade precisaríamos reproduzir todos estereótipos de feminilidade adquiridos na nossa socialização que nos foram impostos desde o momento em que nascemos, ou até mesmo antes deles (ex: chá de bebês, descoberta do sexo das crianças associando meninas à cor rosa e meninos à cor azul), sendo eles: rituais de beleza, de comportamento, de maternidade compulsória, de temperamento, de sensualidade, de sexualidade reprimida, responsabilidade exclusiva pelo lar etc. Tais estereótipos fazem parte da construção da representação social do gênero feminino. De acordo com Beauvoir, a reprodução e a imposição de estereótipos do gênero feminino limitam as mulheres às conquistas dos seus direitos políticos, sociais e humanos, sendo eles “os gêneros” os responsáveis pela hierarquia sexual existente entre os sexos. Sobre a negação da humanidade à mulher, Beauvoir discute:

O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem. Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o “sexo” para dizer que ela se apresenta diante do macho como um ser sexuado: para êle, a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro (BEAUVOIR, p .10)

Afirmar que ser mulher é uma realidade material possui um duplo aspecto. O primeiro aspecto diz respeito a defender o direito de que as únicas diferenças que existam entre homens e mulheres sejam seus corpos biológicos. O feminismo radical reivindica o direito de que mulheres não precisem (e não devam) reproduzir os estereótipos de gênero para que sejam reconhecidas enquanto mulheres (“que nada nos defina, que a liberdade seja a nossa única substância”), pois, segundo a feminista francesa, é a reprodução dos aspectos do gênero feminino a responsável pela submissão feminina e pelo nosso apagamento social e histórico. O segundo aspecto está relacionado à socialização feminina. O objetivo do patriarcado é o controle dos corpos femininos, da sua sexualidade e reprodução. É na socialização feminina no gênero feminino que os corpos, a reprodução e a sexualidade passam a ser controlados por homens. Logo, a realidade sexista e misógina vivida por uma mulher é particular e ligada à realidade material que apenas sujeitos nascidos do sexo feminino vivem. Assim, na singularidade vivida por mulheres, apenas uma corrente teórica e um movimento político pensado e protagonizado exclusivamente por mulheres são capazes de libertá-las.

3. SEXO E GÊNERO: DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS PARA ENTENDER O FEMINISMO RADICAL

A primeira grande diferença que aqui deve ser abordada é entre sexo e gênero. O sexo é algo material, visível, palpável; biologicamente falando, a diferença entre o sexo feminino e o sexo masculino é a aquisição de propriedades funcionais diferentes por células semelhantes, eles cumprem funções específicas no corpo, relacionadas à reprodução sexual dos seres. O sexo biológico, apesar de ter uma importância na diferenciação morfológica dos seres, não cumpre uma função na produção cognitiva do pensamento social, embora, obviamente, as variações hormonais possam interferir nas emoções em ambos os sexos. No século 18 os iluministas acreditavam que existiam um cérebro feminino e um cérebro masculino; atualmente, esse pensamento é ultrapassado. Cientistas da universidade de Rockefeller, em Nova York, publicaram em 2013 um estudo intulado “Sex beyond the genitalia: The human brain mosaic”, comprovando não haver diferenças entre os cérebros feminino e masculino, embora existam algumas diferenças anatômicas em determinadas áreas, em funções relacionadas ao sexo biológico, mas estas não permitem dividir os humanos em duas categorias. O estudo demonstra que o cérebro de cada um é um mosaico com elementos que são socialmente direcionados aos aspectos tanto femininos quanto masculinos. Joel Daphna (2013) afirma que “o hermafroditismo cerebral é a norma, e os cérebros 100% masculinos ou femininos são a exceção. (…) Além disso, o tipo de cérebro que só apresenta características mais prevalentes nos homens do que nas mulheres é muito raro, tão raro como o tipo de cérebro com um perfil em que predomine entre as mulheres”. Simone de Beauvoir também discute a falsa ideia de que mentes femininas eram inferiores às mentes masculinas por influência do corpo biológico feminino, assim, ela expõe:

Agastou-me, por vezes, no curso de conversações abstratas, ouvir os homens dizerem-se: “Você pensa assim porque é uma mulher”. Mas eu sabia que minha única defesa era responder: “penso-o porque é verdadeiro”, eliminando assim minha subjetividade. Não se tratava, em hipótese alguma, de replicar: “E você pensa o contrário porque é um homem”, pois está subentendido que o fato de ser um homem não é uma singularidade; um homem está em seu direito sendo homem, é a mulher que está errada. […] A mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjetividade; diz-se de bom grado que ela pensa com suas glândulas. O homem esquece soberbamente que sua anatomia também comporta hormônios e testículos. Encara o corpo como uma relação direta e normal com o mundo que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo, uma prisão. “A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de qualidades” (BEAUVOIR, p. 10-11)

É a partir da fala de Beauvoir que analisaremos aqui as diferenças sociais entre os sexos. Se a condição biológica não é cientificamente suficiente para tornar mulheres humanamente inferiores aos homens, então, é importante analisar as diferenças sociais entre os sexos.

Em geral, “todas as sociedades humanas, com uma notável monotonia, sobrevalorizam a diferenciação biológica, atribuindo aos dois sexos funções diferentes (divididas, separadas e geralmente hierarquizadas) no corpo social como um todo. Elas lhe aplicam uma “gramática”: um gênero (um tipo) “feminino” é culturalmente imposto à fêmea para que se torne uma mulher social, e um gênero “masculino” ao macho, para que se torne um homem social.”

[1] O gênero se manifesta materialmente em duas áreas fundamentais: 1) na divisão sociossexual do trabalho e dos meios de produção, 2) na organização social do trabalho de procriação, em que as capacidades reprodutivas das mulheres são transformadas e mais frequentemente exacerbadas por diversas intervenções sociais (Tabet, 1985/1998). Outros aspectos do gênero — diferenciação da vestimenta, dos comportamentos e atitudes físicas e psicológicas, desigualdade de acesso aos recursos materiais (Tabet, 1979/1998) e mentais (Mathieu, 1985b/1991a) etc. — são marcas ou consequências dessa diferenciação social elementar.

Logo, é principalmente na diferenciação social dos sexos que se prevalecem as desigualdades entre homens e mulheres. O gênero é associado e imposto, de acordo com o sexo biológico dos indivíduos. Sendo assim, seria o gênero uma identidade, uma escolha? Não para mulheres. O gênero feminino, como já citado, é ferramenta de opressão; a performance do gênero feminino nos limita, nos subtrai, nos desumaniza, nos violenta, nos impede o acesso aos direitos mais básicos existentes. Atualmente, segundo os dados divulgados pela Anistia Internacional do Uruguai, 70% das pessoas mais pobres do mundo são mulheres. Os estudos disponibilizados pela ONU demonstram igualmente as diferenças sociais e econômicas entre os sexos. As diferenças hierárquicas entre os papeis de gênero é responsável pelo impedimento do acesso de mulheres à educação, limita bilhões delas em todos continentes à reprodução do trabalho reprodutivo do lar, à dependência financeira e afetiva, à submissão, induz à ideia errônea de que corpos femininos existem para satisfazer os prazeres sexuais masculinos mesmo sem consentimento, à objetificação dos corpos femininos através da cultura pornográfica, às desigualdades socioeconômicas e raciais, maternidade e heterossexualidade compulsória etc. Heleieth Saffioti define o gênero como:

“(…) a divisão criada para determinar quais membros são de uma casta ou outra, a privilegiada e humana, e a desumanizada e violentada, apropriada. Gênero não é identidade. Não existe um ‘ser mulher’ imanente e transcendental, patriarcado é regime de escravidão, e determina que escravizadas e subordinadas cheguem a crer que nasceram e morrerão no ‘ser escravo’. Se alguém se identifica com o ‘ser mulher’ como algo inerente está se identificando com um ‘ser escrava’, a feminilidade. E isso foi imposto pelo opressor”

Por isso, o combate ao gênero e suas ferramentas (a prostituição e a pornografia) é uma das principais bandeiras do feminismo radical. É necessário desconstruir a ideia de que devam existir diferenças sociais entre homens e mulheres. Não há um se sentir enquanto mulher, não há coisas de homens ou de mulheres, não há um se vestir como mulher, não há uma maneira de se expressar e pensar como mulher. Tudo isso que relacionam ao sexo feminino nada mais é do que uma construção social, patriarcal e violenta da representação social do sexo feminino.

4. A ESTIGMATIZAÇÃO DO FEMINISMO RADICAL

Por que as feministas radicais (RADFEM) têm sido tão atacadas, chamadas de “TERF” (Trans-exclusionary radical feminism) e criminalizadas pelos seus posicionamentos? Por que a teoria do feminismo radical é essencialmente o oposto da teoria defendida por transativistas? Ora, ao longo do texto nós conceituamos o gênero enquanto sistema hierárquico e ferramenta de opressão do patriarcado, assim, sabemos que o sistema social patriarcal associa sexo ao gênero. O feminismo radical assume uma posição abolicionista, quer dizer, para as feministas radicais o sexo não deve ser um atributo da personalidade, logo não existiria um “se portar como uma mulher”, como também não existiria um “se portar como um homem”, caso contrário, as teóricas críticas do gênero seriam forçadas a acreditar que ser mulher é exatamente aquilo que negam e as desumaniza: a reprodução de estereótipos de feminilidade. Tal postura adotada pelas feministas radicais vai contra os ideais da teoria transativista, que também enxerga a relação intrínseca entre sexo e gênero, mas, ao invés de abolir o gênero, procura adaptar o sexo ao gênero com o qual escolheram se identificar, reproduzindo assim uma lógica sexista. Ex: pessoas do sexo masculino que se identificam com a feminilidade e tentam adaptar seu sexo ao sexo corresponde ao gênero feminino, passando a se identificar como mulher, graças à performance da feminilidade. As feministas radicais enxergam nesse tipo de comportamento a reprodução da lógica patriarcal.

A teoria do feminismo radical acredita que todo Ser deve ser livre das imposições dos estereótipos de comportamento, que nada, nenhum padrão social deva definir os seres, nem seus papéis sociais, nem seus temperamentos, nem seus comportamentos, nem influenciar na maneira como eles se apresentam socialmente, contribuindo assim para o fim da hierarquia entre os sexos. Para finalizar, concluiremos o texto com a frase da feminista marxista Heleieth Saffioti:

“(…) ser mulher significa ser membro duma classe, duma casta, ‘portar a estrela de Davi’. Não é sensação, nem sentimento, nem performance, nem decisão. É apartheid. É ser parte daquelas pessoas que, como dito, foram designadas como estupráveis, e são mantidas nessa classe por meio disso, de estupro e pela força, pelo terror, para que não se sublevem. Identificar-se com uma classe seria o mesmo que dizer que proletariado e pobreza são uma performance e uma identificação e algo a ser celebrado”

“Que nada nos defina, que a liberdade seja a nossa única substância”

Simone de Beauvoir

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone. O SEGUNDO SEXO, Librarie Gallimard, Paris, 1970.

Mathieu, Nicole-Claude. Identité sexuelle/sexuée/de sexe? Trois modes de conceptualisation du rapport entre sexe et genre, in Anne-Marie Daune-Richard, Marie-Claude Hurtig, Marie-France Pichevin (Ed.). Catégorisation de sexe et constructions scientifiques, Aix-en-Provence, Université de Provence “Petite collection CEFUP”, 1989. [Republicado in Mathieu, Nicole-Claude, L’Anatomie politique. Catégorisations et idéologies du sexe, 1991a].

ROWLAND, Robyn; KLEIN, Renate. Radical Feminism: History, Politics, Action. In: Radically Speaking: Feminism Reclaimed. North Melbourne, Victoria: Spinifex Press, 1997. p. 9-17.

SAFFIOTI, Heleieth. SEXO, PATRIARCADO E VIOLÊNCIA. Fundação Perseu Abramo, 2014.

Tabet, Paola. La construction sociale de l’inégalité des sexes. Des outils et des corps, Paris, L’Harmattan “Bibliothèque du féminisme”, 1998, 206 p. [Textos de 1979 e 1985].

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Jéssica Petit

Socióloga política e filósofa falando de coisa séria e analisando de maneira crítica a realidade social.