Coletivo Decolonial
4 min readMay 11, 2020

Decolonizando, por Thyago Nunes

Descolonização, decolonialidade, pós-colonialismo, contra-colonialidade. Estética decolonial, filosofia decolonial, decolonização de gênero, de raça e de classe. O “giro decolonial” — ou seja, a introdução da abordagem decolonial nas ciências sociais — ainda é um fenômeno recente e vem alcançando diversas áreas de pesquisa e praxis de forma irrefreável. Mas afinal, o que caracteriza um processo, teoria ou ação como decolonial? Existiria de fato um “modelo de decolonização” que nos garantisse, objetiva e universalmente, o uso do decolonial como qualificador? Será que o MEU movimento, individual ou coletivo, de pequena ou larga escala, é ou pode ser decolonial?

Para responder essas perguntas é necessário, primeiramente, entender que o que centraliza todas esses questionamentos é a própria experiência da colonização. Ainda que as propostas, conceitos e até mesmo os pressupostos variem entre as diferentes abordagens, o impacto da realidade material de 300 a 400 anos de dominação e imposição cultural é unanimidade entre os acadêmicos da área. Seus efeitos ainda são desconhecidos em sua real dimensão, mas é inegável seu impacto na constituição do mundo contemporâneo.

Dentro da proposta Decolonial, o início da “era colonial” se dá nas invasões do “Novo Mundo”, o território que viria a ser chamado de “América” (apagando, nesse processo, nomes mais antigos, como Pindorama, da Nação Tupinambá e Abya Yala, nome de origem andina que atualmente é usado pelos povos indígenas para denominar o continente). A escala do genocídio e da opressão perpetrados por todo o continente é inédita na história do mundo, incluindo o maior e mais invisibilizado genocídio da história, com estimativas que variam de 50 a 80 milhões de mortos por todo o continente. Aliado ao genocídio físico, Quijano (1992), Mignolo (2017) e outros intelectuais falam também do genocídio cultural, como um movimento deliberado de redução das culturais locais a um paradigma camponês através da eliminação de elites culturais, registros e referenciais. O violento extermínio cultural é uma das armas no processo de enquadramento — como cidadãos de segunda categoria, desumanizados — dos nativos no sistema global desenhado pelo poder colonial europeu.

Dois momentos diferentes podem ser identificados dentro da história colonial: primeiro, a colonização, o processo concreto de gestão administrativa, econômica e política dos territórios por povos não nativos; segunda, a colonialidade, ou seja, a influência política, cultural, econômica que se estende para além da independência formal dos territórios. Através dos séculos, essas matrizes caracterizam agentes de estabelecimento de uma nova ordem mundial, que relocaliza os seres humanos do mundo inteiro a partir do eurocentrismo.

A colonização cultural e intelectual foi, em sua essência, um processo de homogeneização forçada das compreensões e sobre experiências dos seres humanos na sociedade. Ela operou apagando — com a violência, física e simbólica, como seus principais agentes — modelos de entendimento do mundo, epistemologias e ontologias, e promovendo um específico para substituir todos os outros. Categorias como raça, gênero, conhecimento, cultura, religião, economia e trabalho foram reescritas de acordo com uma lógica imperialista, privilegiando as experiências e teorias dos povos do continente europeu numa hierarquia absoluta com os conhecimentos e estruturas de todos os povos dominados. Assim, por exemplo, instituições de molde europeu são exportadas para povos do mundo inteiro: o Estado-Nação, a hierarquia de gênero, o trabalho escravo/assalariado, o cientificismo cartesiano, etc.

Importante demarcar que o processo colonial afetou profundamente a própria Europa, que desenvolveu muitas das metodologias de controle e opressão à medida que estendiam seu domínio a uma quantidade maior de sujeitos e territórios. O racismo biológico, por exemplo, é fruto da necessidade européia de conciliar a demanda por trabalho escravo com a religiosidade cristã, sendo desenvolvido em sua profundidade durantes os séculos XVI e XVII.

Entendendo o significado da colonização como um extermínio da diversidade epistemológica — ou seja, da diversidade de “possíveis” — os processos decoloniais, anti-coloniais, contra-coloniais, pós-coloniais, etc., são aqueles que procuram, primeiro, entender como esse processo histórico de mais de 500 anos afetou a construção das estruturas contemporâneas, uma vez que negá-lo ou tentar reverter a um estado pré-colonial é improdutivo ou mesmo impossível; e, segundo, pensar quais novas alternativas são possíveis a partir da realidade material estruturada a partir da colonização.

Combater a homogenia cultural e intelectual é um dos antídotos contra o veneno colonial, e esse embate se dá em diversas trincheiras: quando buscamos soluções locais para nossos problemas (alimentação, moradia, produção de energia, organização política), quando percebemos a influência colonial na relação com nosso corpo (racismo internalizado, adaptação a padrões de vestimenta e adorno eurocêntricos, busca por parceiros europeizados), quando optamos por cooperação e coletividade ao invés de competição e individualismo (sistemas comunais, esquema de trocas, mutirões, sindicatos). Uma vez que a decolonialidade almeja a superação da autoridade vertical e centralizada, cabe a nós integrarmos esse ethos em nossas ações e teorias, entendendo que o processo é contínuo e complexo.

Embora a matriz intelectual seja fundamental para o desenvolvimento consciente e para a expansão dos mundos possíveis, a decolonialidade rejeita a primazia da mente sobre o corpo pregada pela ciência eurocêntrica e assim se coloca como uma matriz de AÇÃO. Se entendo os efeitos da colonialidade no meu corpo na minha mente; se os questiono enquanto ubíquos e os rejeito enquanto invasores, minhas ações são e podem ser decoloniais, a despeito de validações “tradicionais” e ou herdeiras coloniais.

REFERÊNCIAS

MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.32, n.94, janeiro de 2017

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y Modernidad/Racionalidad. Perú Indígena, v. 13, no 29, p.11–20, 1992.

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