O homem negro periférico.

Coletivo Sistema Negro
5 min readJul 19, 2016

O homem negro periférico nasce, cresce e quase sempre morre em meio a violência, seja ela física ou simbólica, é parte do seu modo existência. Ele com certeza já viu, pegou ou teve armas de fogo, já matou ou quis matar, já quase foi morto ou tem primos e amigos que foram mortos em situações violentas. Ele abusa psicologicamente de suas parceiras e é abusado psicologicamente pela sociedade branca que não entende o que é ser um homem negro e periférico.

O homem negro periférico não tem o privilégio de refletir sobre si mesmo, seus sentimentos, afetividade e emoções. A sobrevivência é sempre mais urgente! Ele é ensinado desde pequeno a ser forte e não choramingar pelos cantos, internaliza isso e vive assim todos os dias de sua vida.

O homem negro periférico não sabe muito sobre amor, ele apenas reconhece o amor materno como a expressão mais verdadeira desse sentimento. Não é por acaso que nas prisões, onde a maioria dos presidiários são negros, a frase “amor só de mãe” é sucesso entre as tatuagens dos detentos. O amor por uma outra mulher que não sua mãe, ele entende como vulnerabilidade, mas apesar disso, sempre espera ser amado por alguém. Ele aprende desde cedo que não se deve confiar em mulher e que são todas interesseiras. Ele não só acredita como vê isso em seu dia a dia nas periferias, em suas primeiras relações amorosas, observando as entradas e saídas das portas das escolas onde os malandros mais velhos com seus carros rebaixados acabam ficando com todas as garotas. Ele ouve, vê e internaliza, sem refletir o que está acontecendo, pois, não tem nem referências e nem ferramentas para isso.

O homem negro periférico tem problemas de autoestima e muitas vezes mascara esse problema usando a vaidade. Vaidade de alguns que saem das periferias e alcançam outro status social, vaidade dos que permanecem na periferia e também alcançam outro status social, vaidades que fazem com que ele pense que é o centro do universo e suas vontades devem ser sempre prioritárias. É uma forma que inconscientemente ele encontra de se tirar daquela posição subalterna de mão-de-obra barata e indivíduo sem valor. Ele facilmente transita entre as posições de oprimido e opressor.

Quando ele consegue sair da periferia para estudar e com sorte entram em uma dessas grandes universidades brasileiras, ele muitas vezes se depara com um universo que não compreende muito bem. Ele vê a professora fazendo uma análise de “Guernica” do Picasso e se vê perdido, pois, nunca tinha ouvido falar naquilo e 70% da sala dele composta por homens e mulheres brancas de classe média, já foram para a Espanha e viram o tal quadro ao vivo. Espanha?! Ele nunca imaginou sair dos limites de seu bairro ou sua cidade e seus colegas de sala, muitas vezes mais novos que ele, já viajaram o mundo inteiro.

Ele se depara com pessoas que tem barcos batizados com seus nomes, coberturas em bairros nobres, ganham automóveis dos pais por terem passado na faculdade, recebem mesada, são filhos de fazendeiros, diplomatas, juízes, grandes empresários, advogados bem sucedidos, políticos e todos os tipos de pessoas que corroboram para que ele continue sendo o homem negro de periferia. O homem negro periférico conhece o ódio. Ele odeia tudo e todos, e no fundo ele odeia a si mesmo.

O homem negro periférico gosta de mulheres brancas. Ele se relaciona com elas como se fossem um troféu e elas se relacionam com ele como se ele fosse um objeto sexual, o negro de pau grande que fode bem! Desde pequeno, na escola, ele vê e colabora com a humilhação das meninas negras, através de apelidos, piadas, e todos os tipos de violência psicológicas possíveis. Ele as violenta sem entender que violentá-las é violentar a si mesmo. Ele não se reconhece nelas, pois, a sociedade não as reconhece também, e para sair da posição subalterna e contemplar sua necessidade de aceitação, o caminho mais curto é o relacionamento com uma mulher branca e de preferência não periférica.

Muitos deles tem traumas relacionados às mulheres brancas, coisas que geralmente aconteceram na infância, como aquela menina branca que se recusou a dançar quadrilha com ele quando ele tinha 9 anos, dizendo que ele era negro e que negros fediam. Ou aquelas meninas que colocaram ele por último na famigerada lista dos meninos mais bonitos da sala, sendo ele o mais escuro da sala (preto demais pra ser bonito).

O homem negro periférico dificilmente é um bom pai, ele é ausente ou relapso, e em muitos casos, não se importa de ter mais de um filho com diferentes mulheres, deixando esses para serem criados apenas ou principalmente pelas mães. Ele, na maioria dos casos, não tem boas referências paternas ou masculinas, pois, assim como abandona, já foi abandonado antes ou teve que lidar com a ausência de seu pai que as vezes está em casa, mas tem que trabalhar duro para sustentar os filhos e não tem muita participação em sua educação. Outra vezes seu pai se encontra encarcerado, ou em dependência química ou simplesmente o abandonou mesmo. Sendo assim, a referência se torna a rua, cheia de outros homens negros e periféricos na mesma situação que ele.

O homem negro periférico geralmente começa a trabalhar muito cedo, aos 11, 12 anos de idade. Ele vende sorvete com os primos, ele é engraxate, ele pega latinhas, ele trabalha no mercado, na padaria, no ferro velho, em qualquer lugar em que ele possa conseguir alguns trocados para ajudar sua mãe a comprar pão. Ele flerta com o crime o tempo inteiro, e as vezes adere definitivamente ao crime, já que o dilema da sua vida é “viver pouco como um rei, ou viver muito como um zé?” Ele não entende muito esse senso de justiça que o movimento “Sou da Paz” fala no horário nobre da TV. A casa dele tem goteiras, enchente, ratos, baratas, falta descarga no banheiro e sobra mofo nas paredes. Ele nunca teve um quarto só pra ele, muitas vezes ele nunca teve sequer um quarto.

O homem negro periférico não deixa de ser um homem negro e periférico, mesmo quando consegue acesso ao estudo, pois, sua subjetividade é um misto de fascismo com solidariedade, de paixão com ausência de amor, ele está triste e feliz ao mesmo tempo na roda de samba, de capoeira, no rap ou em qualquer lugar.

O homem negro periférico sou eu, é você, são vários homens que eu conheço e convivo!

Precisamos conversar mais sobre o homem negro periférico.

Texto escrito por:

Viny Rodrigues

Mestre em Ciências Sociais, educador e integrante do Coletivo Sistema Negro.

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