Luana Muzille: sua trajetória na produção de eventos e seu olhar sobre as mulheres no ambiente fonográfico

Coletivo Vitamina
11 min readDec 9, 2018

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Texto: Yula Ribeiro

Luana Muzille no Estúdio da Fatec Tatuí (Foto: Lucas Meneguette)

Luana permeia o universo da produção de eventos desde criança. Formada em Artes Cênicas pela UEL, foi produtora do Conservatório de Tatuí e atualmente ministra as disciplinas de produção de eventos no curso de Produção Fonográfica da Fatec Tatuí. Entre uma aula e outra, é possível que você encontre com ela pelos corredores, sempre resolvendo algo ou atendendo algum aluno, sendo uma das engrenagens essenciais do curso, juntamente com o professor José Carlos Pires Junior (ou Zé), seu marido e coordenador do curso.

Além das aulas, Luana também está a frente de grande parte dos eventos que ocorrem não só no curso de produção fonográfica mas em toda Fatec. Ela coordena o FICA, Festival Interno de Composição Autoral, realizado anualmente, que já está na terceira edição. O objetivo do festival é revelar talentos da composição autoral e oferecer uma vivência prática para os alunos de produção fonográfica em todas as esferas que rodeiam a produção de um evento, desde a pré-produção e planejamento, engenharia de áudio, divulgação e marketing, entre outros.

No intervalo entre seus inúmeros compromissos, (ela tinha acabado de chegar de um evento que realizou para fazer a entrega solidária dos alimentos arrecadados no FICA), Luana conversou com a gente e falou sobre carreira, maternidade e como enxerga o cenário da produção fonográfica para as mulheres.

Coletivo Vitamina: Como começou sua trajetória e quando você percebeu que queria seguir essa carreira?

Luana Muzille: Eu sou filha de músicos, passei a minha infância toda dentro de estúdios ou na estrada, acompanhando os shows da banda dos meus pais. Também era a garota do colégio que gostava de organizar as festinhas e as gincanas da escola, mas eu percebi que gostava mesmo desse universo da produção durante a minha graduação. Eu sou formada em artes cênicas pela UEL e a cena cultural de Londrina é bem pujante. Por lá acontecem produções de diversos festivais: música, teatro, dança, circo, eu e meus amigos assistíamos aos eventos e, particularmente, eu ficava encantada com a força das produções que ali aconteciam, o intercambio que elas promoviam, enfim, eu sentia que de alguma forma eu queria trabalhar atrás das cortinas desses festivais, ajudando a fazer aquilo acontecer. Fui estagiária durante três anos na Casa de Cultura da UEL, que é um vínculo estabelecido entre a prefeitura e a universidade, e lá a gente fazia de tudo, do cafézinho para um oficineiro, passando pela catalogação do acervo de audiovisual, até atuar como assistente em produções maiores, como o FILO, que é um festival internacional de teatro muito importante que acontece em Londrina.

Ali eu percebi que estar em cena, atuando como atriz, não seria meu foco de trabalho. Quando eu me formei bateu aquela angustia natural de todo estudante recém-formado “com o que eu vou trabalhar?, “por onde eu começo?” “como eu junto todo esse currículo de faculdade e entro pro mercado?”. Bom, nesse momento eu fui morar em Campinas, eu e o Zé já estávamos juntos, abrimos um estúdio de fotografia com mais 2 sócios, cheguei a cursar duas disciplinas como aluna especial na Unicamp (essa era uma condição dos meus pais, que eu continuasse estudando pra eles continuarem me ajudando financeiramente até eu me colocar no mercado) e fiquei na cidade por três anos. Nesse período realizei diversos trabalhos ganhando muito pouco, mas montando meu portfolio e ganhando cada vez mais experiência: trabalhei numa empresa de moda, produzindo alguns vídeos e catálogos fotográficos, produzi alguns ensaios de moda pet pra uma revista chamada Petworld, trabalhei em exposição de cães de raça, produzi vídeos institucionais pra empresas de segmentos bem diversos, como fabricas de bicicletas, incorporadoras, empresas de logística, cerimonial de casamento, fazia tratamento de imagens dos ensaios que eram realizados no estúdio, enfim, foram esses trabalhos que efetivamente me encaminharam para o universo da produção de eventos. O começo é bastante duro pra todo mundo, mas é importante ficar atento a dinâmica do trabalho e se colocar a disposição das oportunidades que vão surgindo e continuar estudando.

Luana e equipe do FICA (Festival Interno da Composição Autoral)

Por conta do estúdio fotográfico, também tive a oportunidade de fazer alguns freelas de vídeos para uma empresa de São Paulo, a Divina Comédia, especializada em grandes eventos. Com eles fiz shows da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) no Parque Villa Lobos, da cantora Céu no shopping Dom Pedro/Campinas, Trio Tons/Telefônica, fizemos um evento da Gal Costa e outro da Mônica Salmaso e Pau Brasil no Bareto/Hotel Fasano, e cada vez mais eu sabia que era nessa área que queria realmente atuar. Então eu percebia que de alguma forma as coisas iam se encaixando mesmo pra aquela vocação natural que eu tinha, que era produção de eventos. Até que surge a oportunidade de fazer o processo seletivo para auxiliar de eventos no Conservatório de Tatuí. E essa instituição maravilhosa foi a minha grande escola. Eu mudei de Campinas para Tatuí em 2009, comecei como auxiliar de produção de eventos e seis meses depois passei a ocupar a vaga de produtora cultural, e esse foi um grande salto de experiência na minha vida, pois eu passei a realizar os diversos eventos que aconteciam nos espaços da instituição, dos grandes festivais e encontros internacionais das variadas áreas artísticas e pedagógicas do Conservatório, passando pelas centenas de viagens com orquestra e banda sinfônicas, camerata de violões, big band, companhia de teatro, coral, enfim, eu atuei na produção de todos os grupos artísticos do Conservatório. Bom, nesse interim nasceu o curso de Produção Fonográfica da Fatec, em 2010, mas eu me tornei professora da Fatec em 2012. No período de 2012 a 2014 eu estive como professora e produtora e em 2014 eu me desliguei do Conservatório para me dedicar somente à docência.

CV: Em um quadro majoritariamente de homens, você é a única mulher ministrando disciplinas específicas do curso de Produção Fonográfica. Como você se sente? Isso em algum momento interferiu em algo?

Luana: Eu venho percebendo e sentindo que, de alguma maneira, a minha presença nessa área pode contribuir pra que as alunas do curso entendam que esse é um espaço que podemos e devemos ocupar. Mas esse processo, essa tomada de consciência do que significa ser mulher nesse contexto, ocupar espaços onde majoritariamente são os homens que comandam, isso tudo foi sendo percebido e amadurecido ao longo desses seis anos em que estou ocupando a vaga de professora do curso. A gente não nasce feminista, eu não nasci feminista, eu fui me tornando feminista. E na medida em que vamos percebendo os desequilíbrios, o gap entre mulheres e homens no mercado de trabalho e no áudio, a gente vai entendendo a responsabilidade e a necessidade de tocar o dedo nesse ferida. Por isso, cada vez mais, eu tenho puxado esse assunto com os professores homens do curso. Mas eu nunca fui desrespeitada, não ali dentro do nosso curso, a gente tem um colegiado em produção fonográfica muito equilibrado e amistoso. Acho que eu sentiria mais esse peso se eu fosse a professora mulher na área do áudio, porque essa bolha do cuecão no áudio é mais difícil de romper, sem a menor dúvida.

CV: Como é equilibrar carreira, filho e ainda continuar incomodando?

Luana: É muito cansativo, mas necessário. Essa questão da maternidade veio num momento em que eu já me percebia mais amadurecida e melhor preparada para o que viria. Mas a verdade é: a gente acha que tá preparada, mas só depois que vive a experiência é que entende o que isso significa. O Benício nasceu e eu estava pra completar 34 anos. É uma outra experiência ter filho nessa idade, com carreira já consolidada, percebo que é muito diferente das minhas amigas, por exemplo, que tiveram filhos mais novas. Algumas amigas brincavam comigo, desde pequena, que eu era um pouco diferente daquilo que elas vislumbravam ou do que a sociedade impunha para elas, que eu não era o tipo de mulher que cumpria com o esteriótipo de quem nasceu para ser mãe e dona de casa. Isso não me incomodava, porque eu realmente queria ser uma mulher com independência financeira. Quando veio o filho, eu demorei pra entender como iria encaixar filho e carreira e ainda continuar olhando pra mim mesma, esse foi, de longe, o maior desafio da minha vida.

Benício e Luana na gravação do Soma Rock

Durante um tempo depois que o Benício nasceu, em alguns momentos eu achei que eu deveria abandonar a minha carreira. Hoje eu olho para isso e penso “Que ideia da década de 60 que eu tinha”.

A perda da vida pública, a solidão que a maternidade nos provoca no pós-parto, reforçada pelo fato de que a licença maternidade é de 4 meses (ou 6 meses) para a mãe e somente 5 dias para o pai, então isso reforça essa ideia de que a maternidade é um papel que deve ser desempenhado solitariamente e majoritariamente por nós, as mulheres. Quando nos tornamos mãe a gente acaba sendo encorajada, pela sociedade, pela família, por amigos, a acreditar na falácia de que nascemos para seguir a receita: cuidar da casa, cuidar do filho, cuidar do marido. Eu estou aqui hoje para dizer que é possível conciliar carreira e maternidade, ao tornar-se mãe, mas será preciso ter um parceiro que divida meio a meio todas as tarefas da casa e do filho contigo. Acho que é aí que reside o tal incomodo que eu quero provocar: é uma luta diária e que incomoda muito mesmo, marido, pai, mãe, sogro, sogra, a família e a sociedade como um todo, sobretudo incomoda a gente também e cansa pra caramba, porque quando assumimos um posicionamento diferente do “curso natural” e esperado pelas pessoas, para além de termos que lidar com as nossas próprias questões e desconstruções, ainda temos que dar conta de educar as pessoas. Eu só voltei a trabalhar e pensar a minha carreira porque eu vi outras mulheres fazendo, via que era possível. Um outro ponto é: tenho várias amigas que escolheram não ser mães e tá tudo bem, viu, a gente conversa sobre isso e caminha cada vez mais para esse entendimento de que a gente não se torna uma mulher melhor só porque é mãe, isso é apenas uma escolha dentre inúmeras outras que podemos querer escolher ou não para a nossa vida. Nesse processo venho entendendo o papel fundamental do feminismo, que é a busca por promover a igualdade de gênero, e, consequentemente, maior autonomia e consciência nas escolhas que fazemos para nossas vidas; a grande virada começa com a gente entendendo que não precisa depender de homem pra ser feliz e estar no mundo, mas a nossa libertação passa fundamentalmente pela questão econômica. Tenho percebido que muitas mulheres que dependem financeiramente dos seus maridos, perpetuam a ideia de que nascemos pra cuidar do cotidiano doméstico e privado do lar, não por escolha, mas por vocação. Acho isso tão triste. Quando conquistamos autonomia financeira enxergamos que somos “donas do nosso rolê”.

Benício, filho da Luana

Você está me perguntando sobre como é que concilio carreira e maternidade. Eu sou perguntada sobre quase que diariamente, mas eu nunca vejo o contrário acontecendo, a mesma pergunta sendo feita para os homens: como é que eles conciliam paternidade e carreira? Sobrecarregando suas esposas, é a resposta!

A gente precisa começar a fazer essa pergunta para a sociedade, para os papais. E cobrar que a cota de 50% dos homens seja cumprida, o grosso do cuidado não pode ser desempenhado exclusivamente e apenas pelas mulheres, senão de que forma teremos condições de estar no mercado de trabalho? A mulher tem exclusividade apenas no processo de gestação e amamentação, mas e todo o resto? Pediatra, colo, ninar pra dormir, vacinas, troca de fraldas, banho, escola, tudo isso os papais podem fazer, não é mesmo? Então por que ainda perguntamos apenas para as mulheres como é que elas equilibram todos esses pratinhos? Já passou da hora de cobrarmos que o constrangimento de ter que pedir autorização pro chefe pra voltar mais cedo pra casa ou mesmo faltar ao trabalho, seja pra socorrer filho doente, seja pra levar à uma consulta de rotina, seja realizado também pelos homens. Entendeu aqui os tais “incômodos”? (risos)

CV: Como você enxerga o universo das mulheres no áudio e na produção de eventos?

Luana: Se a gente ainda tem muitos homens dominando o segmento do áudio é porque de alguma forma estamos permitindo que isso aconteça. De novo, eu sei o quanto é difícil romper a bolha do cuecão, porque temos que ser três vezes melhores do que os caras para conquistar respeito e credibilidade, mas a gente precisa furar essa bolha.

A UBC, União Brasileira de Compositores, lançou uma pesquisa “por elas que fazem música” que atestou 10% de participação feminina na cadeia da música.

Isso ainda é muito pouco, né, diante do potencial que sabemos que temos, como compositoras, como técnicas, musicistas e etc. A participação das mulheres no board, no quadro de diretores, ainda é muito pequena dentro da cadeia da música também. Na Abramus, das 8 vagas para diretoria, apenas 1 é ocupada por mulher. Na Sicam, das 7 vagas, apenas 1 é ocupada por mulher. A Tati Cantinho é a única mulher que desempenha o papel de A&R no Brasil. Por outro lado, tenho visto um movimento muito forte, uma mudança em favor das mulheres: são redes e coletivos que nascem daqui e dali pra juntar mulheres, pra fortalecer, pra encorajar, pra criar um sistema, uma rede de apoio que nos diga “você pode, mulher”! Vou citar aqui alguns exemplos como o WME, Women Music Event, WIM, Women In Music, a premiação exclusiva para mulheres que acabamos de ter da VEVO e WME, fortalecendo essa cadeia de mulheres produtoras e fazedoras de música, conheço também outra iniciativa menor, o Sêla, como o nome diz, é um selo e agência de consultoria para mulheres, feito por mulheres, muito bem organizado em SP. Isso pra mim é um caminho sem volta, esse movimento pra fortalecer mulheres numa teia, numa rede. A gente precisa ocupar mais esses espaços dominados pelos homens, precisa de mais representatividade, mas precisa também ter clareza e energia pra fazer esse movimento inicial, que é mais pesado, mais difícil, sem dúvida quem está na linha de frente do ativismo enfrenta muitos desafios, tem vontade de desistir, vai se sentir mais sobrecarregada e cansada mesmo, mas a gente não tem tempo para ser militância cansada! Em relação ao curso, quero citar a importância da Mariana Souza, por exemplo, como monitora de áudio e como engenheira de gravação no disco Atemporal, do grupo Dedo de Moça. Depois dela, a Taíla Aschkar ocupou a vaga de monitora de áudio por um ano inteiro. Não podemos descontinuar essas participações femininas nos projetos realizados na Fatec, principalmente nessas áreas onde há predominância da presença masculina. Isso fortalece cada uma de vocês e fortalece as próximas gerações de mulheres que irão entrar pro curso. Eu estou muito feliz com o coletivo que vocês estão construindo, sei que a vinda da La Baq na Fatec inspirou vocês e deu força pra realizarem o Sonora, em 2017. Vocês acreditaram que eram capazes, e são mesmo muito capazes, mas sei que muitas vezes, por conta de ter que provar três vezes mais essa capacidade, a gente fica com medo, se fragiliza, se sente insegura. Não deixem o coletivo vitamina dispersar e apagar. Vocês são mulheres capacitadas, fortes, poderosas e esse é um legado muito importante que vocês vão deixar para o curso de Produção Fonográfica. Sei que algumas embaixadoras do movimento já se formaram, ou estão se formando, muitas ainda vão entrar e sair, faz parte da dinâmica, usem isso a favor de vocês…o legado de cada uma é muito importante e as próximas gerações terão sempre o papel importantíssimo, que é dar continuidade a isso que vocês estão começando a criar. Nesse momento, não podemos nos dispersar. Devemos estar atentas. Permanecer fortes. E avançar.

Luana e equipe do Coletivo Vitamina na primeira edição da Feirinha de Artes Mexerica

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