Séculos de consumo, anos de história

Comunicação & Consumo PUC-Rio
10 min readMay 10, 2024

Neste artigo, vamos explorar os estudos sobre consumo e sua influência ao longo da história, destacando três momentos cruciais analisados por McCracken em seu livro “Cultura e Consumo”. Desde o notável aumento no consumo durante a Inglaterra elizabetana até o surgimento da sociedade de consumo moderna no século XVIII e a transformação estrutural no século XIX, cada período reflete uma dinâmica complexa entre desejos individuais e influências sociais. Além disso, mergulharemos no conceito de luxo e sua evolução ao longo dos séculos, como explorada por Werner Sombart, desde suas raízes em exibições públicas até sua expressão contemporânea na moda e no estilo de vida. Examinaremos como o luxo é transmitido através do vestuário e desafiaremos conceitos convencionais sobre a relação entre cultura material e linguagem, conforme proposto por Grant McCracken em seu estudo crítico.

Grant McCracken, um renomado antropólogo cultural e autor canadense, nasceu em 1951 e dedicou sua carreira ao estudo das mudanças na cultura contemporânea e no consumo. Com uma abordagem interdisciplinar, que combina antropologia, sociologia e psicologia, McCracken oferece insights sobre as tendências culturais e de consumo que moldam nosso mundo.

Em seu livro “Cultura e Consumo”, McCracken nos leva a uma jornada através dos séculos, explorando os três momentos cruciais na história do consumo. Começa no século XVII, durante a Inglaterra elizabetana, onde testemunhamos um notável aumento no consumo, impulsionado pela nobreza. Os nobres ingleses gastavam com entusiasmo renovado, transformando radicalmente tanto seu ambiente quanto o padrão de consumo ocidental. Essa explosão de consumo foi influenciada pela competição social entre a nobreza e o uso estratégico do consumo como instrumento de governo por Elizabeth I. Isso pode ser notado no filme “A Duquesa”, vemos a nobreza inglesa envolvida em um mundo de extravagância e consumo, onde a moda e o estilo de vida são usados para expressar status e poder.

A narrativa do filme destaca as pressões sociais sobre Georgiana, a Duquesa de Devonshire, para se conformar às expectativas da sociedade da época, especialmente no que diz respeito ao seu papel como esposa e sua capacidade de influenciar as tendências da moda e do comportamento. O filme retrata como o consumo e a exibição de riqueza eram usados como instrumentos de poder e influência na sociedade da época.

Avançando para o século XVIII, encontramos o nascimento da sociedade de consumo moderna, caracterizada pela ascensão do consumo pessoal e pela busca pelo status através das escolhas de compra. Este período testemunhou mudanças significativas nas preferências de compra, no acesso aos bens e na frequência das compras, refletindo uma sociedade em rápida transformação. Finalmente, no século XIX, não houve um “boom de consumo”, mas sim uma transformação estrutural na vida social, onde o consumo se tornou o centro magnético da sociedade. A moda emergiu como uma força influente na ditadura das preferências, e as lojas de departamento desempenharam um papel fundamental na criação de novos padrões de compra e na introdução de inovações como o crédito.

Esses três períodos distintos oferecem uma narrativa fascinante da evolução do consumo e sua interseção com as mudanças sociais. Desde a competição social na Inglaterra elizabetana até o nascimento da sociedade de consumo moderna e a transformação estrutural no século XIX, cada período reflete uma dinâmica complexa entre desejos individuais e influências sociais.

Dois séculos, um mundo de mudanças. De 1200 a 1800, testemunhamos uma fascinante evolução nas definições e manifestações do que consideramos luxo. Em seu texto “A vitória da mulher”, o sociólogo alemão Werner Sombart mergulha nessa jornada histórica, explorando como o luxo passou de uma exibição pública para uma celebração mais íntima e pessoal.

O luxo estava ligado a ideias elevadas de como viver e aos valores da sociedade. Mas vai se tornando mais sobre satisfazer desejos básicos e instintos. Transformação significativa do ponto de vista econômico que marca a transição do século XVII para o século XVIII. Uma mudança de cenário é evidente: onde antes os palcos eram os torneios e festas extravagantes, agora é nos espaços domésticos que o luxo encontra seu refúgio. Esta transição não é apenas geográfica, mas também cultural, com a influência feminina emergindo como uma força dominante segundo o autor. É fascinante observar como o luxo, uma vez ligado a exibições pessoais e eventos esporádicos, se transforma em uma parte integrante da vida cotidiana, impulsionado pela crescente demanda e pelo desejo de gratificação imediata.

Além da mudança de foco, o autor aponta que uma tendência intrigante emerge: a objetificação do luxo. Segundo o autor, com a ascensão das mulheres e sua influência na sociedade, a demanda por luxo e novidades aumentou, por elas não estarem dispostas a esperar muito para satisfazer seus desejos de luxo. Onde antes o luxo pessoal reinava, agora são os bens materiais que ocupam o centro do palco. Sombart liga esse fenômeno ao surgimento do capitalismo, refletindo uma nova mentalidade onde a posse de objetos valiosos é vista como um símbolo de status e sucesso.

No filme “Delírios de Consumo de Becky Bloom”, por exemplo, conhecemos a protagonista Becky Bloom, uma compradora compulsiva que se vê envolvida nesse mundo de luxo e consumo, onde suas escolhas de compra refletem não apenas seus desejos, mas também uma busca por reconhecimento e status social. Becky representa uma dinâmica entre desejos individuais e influências sociais, onde o consumo é usado como uma forma de expressão e como um meio de se encaixar em determinados padrões sociais. O filme oferece uma visão satírica e crítica do mundo do consumo, destacando como as escolhas de compra de uma pessoa podem refletir não apenas suas preferências individuais, mas também influências culturais e sociais mais amplas.

A sensualização e o requinte tornam-se marcas registradas deste período luxuoso. O aumento dos gastos com trabalho humano na produção de bens leva a uma busca incessante pela perfeição e exclusividade. E à medida que os eventos luxuosos se tornam uma parte constante da vida, a produção acelerada de artigos de luxo torna-se imperativa, alimentando uma economia que prospera com a demanda por indulgência e extravagância.

O resultado dessa transformação pode ser observado em “O Grande Gatsby”, onde o excesso, a extravagância e a busca por status são temas centrais. O protagonista, Jay Gatsby, é retratado como um homem que busca o reconhecimento social e o amor de Daisy Buchanan, uma mulher que representa para ele um ideal de luxo e sofisticação. Gatsby acumula riqueza e organiza festas suntuosas em sua mansão, na esperança de atrair a atenção de Daisy e ganhar aceitação entre a elite social de Nova York.

Essa busca incessante por luxo e status ecoa essa dinâmica social da qual estamos falando, onde o consumo se torna não apenas uma expressão de riqueza material, mas também um meio de ascensão social e busca por identidade. Assim como a sociedade retratada em “The Great Gatsby”, a sociedade da qual Werner fala estava envolta em uma cultura de consumo onde o luxo e a ostentação eram valorizados como símbolos de sucesso e prestígio.

Voltando ao texto, o sociólogo não limita o luxo apenas à esfera pessoal. Na gastronomia, vemos as mulheres desempenharem um papel crucial no refinamento da arte culinária, enquanto na esfera residencial, sua influência é evidente na criação de ambientes elegantes e confortáveis. O açúcar emerge como um protagonista na história econômica, impulsionando o desenvolvimento do capitalismo e transformando os paladares de uma era.

À medida que as cidades crescem, também surgem novas oportunidades e uma democratização gradual do luxo. Teatros, salas de música, bailes e restaurantes sofisticados emergem como símbolos de uma vida extravagante, anteriormente reservada apenas para a elite. Este crescimento do luxo público não apenas enriquece a vida urbana, mas também impulsiona a economia das cidades, tornando-as destinos desejáveis para os viajantes e estrangeiros em busca de indulgência e cultura.

Em suma, a história do luxo desse período de tempo é uma narrativa de transformação e evolução. Das cortes reais às casas burguesas, das festas extravagantes aos espaços domésticos, o luxo molda e é moldado pelas mudanças sociais, econômicas e culturais de sua época.

À medida que nos aproximamos dos dias atuais, podemos observar como o luxo continua a evoluir, moldando-se de acordo com os valores e as demandas da sociedade contemporânea. Hoje, o conceito de luxo transcende os limites geográficos e culturais, encontrando expressão em uma ampla variedade de formas, desde a moda até as experiências de estilo de vida.

No vestuário, por exemplo, o luxo vai muito além do simples uso de roupas caras ou de marcas famosas. Ele é transmitido através de uma interação de elementos, desde a qualidade dos materiais e o artesanato até o design inovador e a exclusividade das peças. Cada detalhe contribui para criar uma experiência luxuosa. Além disso, está ligado à história e à narrativa por trás de uma marca ou de uma coleção. A história por trás de uma peça de roupa, seja ela inspirada em tradições culturais ou em eventos históricos, adiciona uma camada adicional de valor e significado.

Essa ideia de que certos conceitos, como o luxo, podem ser comunicados através da moda é discutida no livro “Cultura & consumo”, mais especificamente no capítulo “Vestuário como linguagem”, de Grant McCracken. O autor explora o estudo da cultura material, especialmente no que diz respeito ao vestuário. Em seu texto, ele desafia a metáfora que compara o vestuário à linguagem, argumentando que essa analogia, embora útil em alguns aspectos, obscurece a verdadeira natureza e função do vestuário como sistema de comunicação.

McCracken nos leva a uma análise profunda das propriedades expressivas da cultura material, explorando como o vestuário reflete categorias culturais, princípios e mudanças sociais. Ele destaca estudos antropológicos que revelam como o vestuário é uma expressão tangível de ideias específicas e como pode codificar e manifestar uma variedade de categorias culturais.

Uma das críticas centrais de McCracken é a comparação entre vestuário e linguagem. Ele argumenta que essa metáfora simplifica demais a complexidade do vestuário como meio de comunicação. Em vez disso, ele sugere abordagens mais específicas que ressaltam as diferenças entre linguagem e cultura material.

Ao longo de sua análise, McCracken destaca a importância do estudo do vestuário para entender a distância social, processos culturais, mudança histórica e a expressividade única da cultura material. Ele nos leva a uma jornada intelectual, desafiando nossas concepções convencionais sobre como interpretamos e decodificamos o vestuário.

Em “Cultura Material, Consumo e Identidade”, editado por Daniel Miller, podemos encontrar uma coletânea de ensaios que exploram diferentes aspectos de tais temas. Leitura interessante pra quem quer saber mais sobre a relação entre objetos e identidade pessoal, o papel do consumo na construção de comunidades e a influência da globalização na cultura material.

O trabalho de Grant McCracken nos lembra da riqueza e da complexidade do vestuário como forma de comunicação. Sua abordagem crítica e perspicaz nos convida a repensar nossas suposições sobre a relação entre cultura material e linguagem, oferecendo novas perspectivas para entender o mundo social e cultural ao nosso redor.

À medida que nos aproximamos do futuro, é inevitável contemplar o que aguarda o conceito de luxo e como as pessoas continuarão a se relacionar com a cultura material. A história nos mostra que o luxo é um fenômeno em constante evolução, moldado pelas tendências sociais, econômicas e culturais de sua época. No entanto, o que podemos esperar dessas interações nos próximos anos?

É provável que vejamos uma continuação da tendência de personalização e exclusividade no luxo. Com a crescente valorização da individualidade e da autenticidade, as pessoas buscarão experiências e produtos que reflitam suas identidades únicas. Isso pode levar a uma maior demanda por produtos artesanais, personalizados e sustentáveis, à medida que os consumidores se tornam mais conscientes de seu impacto no mundo ao seu redor.

No entanto, mesmo com essas mudanças, é importante reconhecer que o luxo continuará a ser uma expressão de status e poder para muitos. A ostentação e o desejo de pertencer a uma elite ainda serão motivadores significativos para o consumo de produtos de luxo, especialmente em sociedades onde as desigualdades econômicas são pronunciadas.

Quanto à relação das pessoas com a cultura material, é provável que continuemos a ver uma complexidade de atitudes e comportamentos. Enquanto alguns indivíduos podem seguir a tendência de buscar uma vida mais minimalista e desapegada dos bens materiais, outros podem encontrar significado e satisfação na aquisição e exibição de objetos de valor.

No entanto, à medida que a conscientização sobre questões como sustentabilidade e ética aumenta, é possível que mais pessoas questionem os padrões de consumo excessivo e busquem formas mais conscientes de interagir com a cultura material. Isso pode levar a uma maior valorização da qualidade sobre a quantidade, bem como uma apreciação crescente pelo artesanato e pela história por trás dos produtos que possuímos.

O futuro do luxo e da cultura material será moldado por uma interação complexa de fatores, incluindo mudanças sociais, avanços tecnológicos e evolução das mentalidades individuais e coletivas. Enquanto olhamos para frente, é importante permanecer atentos às maneiras como essas dinâmicas moldam nosso mundo e como podemos trabalhar para criar uma cultura material que seja tanto gratificante quanto sustentável para as gerações futuras.

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Estudando Comunicação, Cultura e Consumo. Estudantes de Estudos de Mídia da PUC-Rio.