Uma vida sem saber: relato de um ‘Aspie’ diagnosticado aos 47 anos

Daniel Andrade, diagnosticado com autismo leve (antigo Asperger) aos 47 anos.

O bullying sempre fez parte da minha vida. Meu pai, com toda característica de Asperger, bebia muito e era violento. Agredia minha mãe, por vezes ele só parava após ouvir os meus berros. Minha mãe precisou trabalhar e me colocou numa creche. Imagine como é para um asperger — sem saber a sua condição — em meio a dezenas de crianças?

De acordo com uma pesquisa, um grito ou choro pode fazer com que o cérebro de um Asperger passe por uma profusão de descargas elétricas. Minha mãe percebeu que eu comecei a adoecer e pediu para uma tia cuidar de mim. Eu tinha um ano e meio quando nasceu meu irmão, Samuel, que passou a conviver com a mesma rotina de violência. Infelizmente, contraiu meningite e faleceu com apenas 1 ano e meio.

Me lembro que uns dias antes de adoecer, brincávamos e, por algum motivo, ele me deu uma pancada na cabeça. Depois, só lembro dele doente e sendo levado para o hospital. Em seguida, o velório. De acordo com minha mãe, eu senti muito essa perda, com três anos e meio. Eu mal sabia que viria outro evento que marcaria minha trajetória com o asperger.

A escola

Aos 6 anos e 6 meses fiz teste para escola e passei. Foi muito penoso para mim. Por ser diferente e retraído, logo comecei a sofrer bullying. Apanhava bastante, roubavam meu lanche. Lembro de uma menina mais gordinha que me puxava pelos cabelos. Novamente, o aspie dentro de mim falou mais alto: comecei a matar aula. Como ia sozinho para o colégio, me escondia e voltava para casa.

Dona Anísia, a professora

Foi então que novamente me deixaram voltar para minha doce rotina com minha babá. Mas no ano seguinte a coisa foi mais dura: meu pai me obrigou a ir para o colégio. A supervisão em cima e o medo dele falaram mais alto. Conseguiram me manter na escola. Mais houve um outro fator: acredito que me fizeram ficar na escola, a professora. A simpática e paciente dona Anísia. Acho que fui colocado de propósito naquela turma. T inha muita gente esquisita.

Na sala da dona Anísia, aprendi a ler e a escrever. Interessante foram as circunstâncias em que encontrei ela anos mais tarde. Logo, logo o conhecimento passou a me conquistar: português, ciências, história, matemática. Nunca fui acima da média. Nunca fui de estudar: fazia as lições de casa e pronto.

O alcoolismo do pai e o inferno em casa

Em casa, o clima vez por outra esquentava. O acoolismo de meu pai e suas muitas agressões à minha mãe faziam muito mal a mim e afetavam meu irmão mais novo. Ganhei uma cachorrinha de minha avó, a Tuti, como a chamamos. Foi uma experiência muito boa. Para um autista, um animal pode ser um fator muito positivo. Cansada das muitas agressões, minha mãe resolveu deixar meu pai e ir embora.

Lembro do caminhão de mudança, da minha cachorrinha indo conosco na boléia. Fomos morar com o meu tio. Me senti livre. Não convivia com a violência de meu pai.

Aquilo não durou muito tempo. Meu pai foi atrás de nós e pediu para que minha mãe voltasse. Meu irmão, à época com 2 anos, chorava muito, sentia a falta do meu pai. Ela concordou e voltamos para casa. Alguma coisa dentro de mim via que aquela volta seria um retorno à rotina de gritos, choros e violência. Novamente em casa, voltei a estudar. Minha cadelinha sumiu. Fiquei muito triste. Lembro que comecei a sair todo dia após a aula para procurá-la​-la.

O pesadelo continua

O passar dos anos não foi diferente: a rotina, álcool e violência, minha mãe começou a beber às escondidas. A noite era um terror para mim e meu irmão, que começava a sofrer bullying e evidenciar o autismo. Eu, com 10 anos, e ele com seis anos, comecei a levá-lo para tratamento com psicóloga na APAE. Infelizmente, ele nunca aprenderia a ler ou escrever. A autismo não tratado e os anos de negligência familiar o condenariam ao ostracismo. Mais tarde, se encontraria de braços dados com o álcool.

Por volta dos 10 anos, comecei a sofrer com enxaqueca. Ainda lembro como se fosse hoje: por conhecidência estava andando de bicicleta, comecei a ver uma aura similar a quando olhamos para o sol. Logo, uma dormência na mão, em seguida dor de cabeça insuportável e vômito.

Aquela seria uma terrível companhia dos próximos 15 anos. Foi aí que começou meu relacionamento com as drogas farmacêuticas, tegretol, corintol, diazepam, amitriptilina, frontal, etc. Isso com 10 ou 11 anos.

A farmacologia

Entrar e sair de consultas com receitas para tarja preta na mão foram constantes. Aos 13, o ASPERGER novamente falou mais alto. Não consegui mais ir à escola. Comecei a trabalhar em fábricas de calçados, pois não precisava interagir. Aos 17, a coisa ficou insuportável com o alcoolismo de meu pai e, agora, de minha mãe, que não aguentava a pressão. Meu irmão, então com 13, não sabia ler e ia numa escola especial. Decidi ir embora e morar com minha avó. Sair daquele meio, embora fosse minha família, foi apaziguador.

Com novos horizontes em minha bicicleta Asperger, segui caindo e levantado. Tive muitos amigos compassivos que me deram suporte na igreja que passei a frequentar. E logo comecei a me destacar pelo conhecimento da bíblia. Fui convidado a servir como voluntário na sede em São Paulo, num ambiente amigável em que conseguia me equilibrar. Muitas vezes fui aconselhado, de modo bondoso, a não ser tão rígido.

Primeira namorada

Aos 23, conheci minha primeira namorada. Levei um ano ensaiando para falar com ela. Um amigo que viu meu interesse nela, me deu o empurrão. Ela quem teve de tomar a iniciativa.

Casamos em 1995. Novamente eu e minha bicicleta Asperger tínhamos novos horizontes. Fomos servir como missionários no norte do Espírito Santo. Ensinar pessoas foi o máximo para esse aspie que é muito respeitado até hoje, mais de 20 anos depois. Mas sempre me desequilibrava diante de pressão. Crises de fobia social ansiedade e depressão. Minha esposa sempre foi meu porto seguro, segurando a bicicleta Asperger para eu poder continuar. Isso é assim até hoje. E sempre será.

Seis anos depois, fomos para Belo Horizonte. Deixei aquele povo simples. De novo, me deparei com um horizonte mais íngreme nos dois sentidos. O asperger novamente ditou o que eu deveria fazer. Tentei me equilibrar, sem êxito. Pegar em telefone era uma tortura. Lá consultei o meu primeiro psiquiatra, após tantos anos. E um psicólogo também. Transtorno de ansiedade, esse foi o diagnóstico do psicólogo. Bastante despreparado, me passou uma medicação.

Psicólogo despreparado

Nunca me encaixei em nenhuma de suas abordagens. Passei para outro, a mesma coisa. Decidimos parar o trabalho voluntário e voltar aqui para o sul, São Leopoldo. Minha mãe não estava bem. Minha bicicleta Asperger não saía do lugar. Comecei a trabalhar com domótica, que são casas controladas por computador. Interagir com clientes VIPs foi bastante difícil: Zaffari, Vontobel e outros.

Diagnóstico ao 47 anos

Comecei a me tratar com psiquiatras e psicólogos de 2008 pra cá. Até que esse ano encontrei um anjo. A psicóloga Núbia, que teve um professor com experiência com o Asperger que a marcou. Sua abordagem simples e franca me deixou a vontade. Após uma dezena de sessões, ela disse que eu tinha toda característica de da Síndrome de Asperger.

Neste momento, tudo passou a fazer sentido. Desde meu pai, meu irmão e agora eu. Toda minha falta de equilíbrio tinha um porquê: o ASPERGER.

Passei a pesquisar e ver experiências como a da jornalista Selma Sueli, do Mundo Asperger. Ela, asperger, contou sua história, praticamente idêntica à minha. Como técnica de sobrevivência, ela imitava o modo de agir de outros, para poder interagir. O mesmo que sempre fiz, mesmo sem saber do meu diagnóstico. Porém, quando surgiam dificuldades e a necessidade de interagir e resolver conflitos, o tombo era certo!

Outra visão sobre a trajetória de vida

Agora tenho outra visão de minha trajetória de vida. Tenho a bicicleta Asperger e com ela sei que tenho limitações. Não posso fazer certas coisas, como as demais pessoas, embora meu lado aspie ache que sim. Mais passei a reconhecer que não tenho equilíbrio para tanto. Consigo dar palestras para milhares de pessoas, como já o fiz. Porém, entrar num debate ainda não consigo.

A bicicleta Asperger

Minha experiência com a bicicleta Asperger me ensinou que o êxito para ajudar quem tem asperger começa com 8 letras:

1- Assegurar que o aspie é capaz, embora limitado.

2- Ser franco e reconhecer que o Asperger domina o assunto.

3- Prospectar metas razoáveis.

4- Enumerar os pontos fortes do aspie.

5- Respeitar o tempo Asperger.

6- Garantir que sempre contará com ajuda.

7- Explicar que quedas ou desequilíbrio são do aprendizado.

8- Reafirmar ao aspie que a falta de amor próprio e baixa autoestima podem ser revertidas.

Texto: Daniel Andrade, Aspie, diagnosticado aos 47 anos.

Revisão e edição: equipe de comunicação do Conlubra.

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Congresso Luso-Brasileiro TEA e Educação Inclusiva

O Conlubra surgiu de uma rede pesquisa sobre intervenção precoce do autismo, parceria entre a Universidade Federal de Pelotas e Universidade do Minho (Portugal)