Patti Smith, Robert Mapplethorpe e os Sonhos dos Jovens Artistas

Patti Smith retrata uma geração de jovens artistas em ‘Só Garotos’.

Conrado Dess
5 min readJan 7, 2018
Patti Smith e Robert Mapplethorpe via artistalphabet.files.wordpress.com

Faz um bom tempo que estou lendo o livro ‘Só Garotos’, da cantora Patti Smith. Um ano, para ser mais exato. Não exatamente por ele ser grande ou difícil (são só 260 páginas muito fáceis de serem lidas), mas por ele funcionar para mim como uma deliciosa massagem relaxante depois de um dia de stress.

Além de cantora, Patti Smith é compositora, poeta, símbolo do movimento punk rock da Nova York dos anos 70, entre muitas outras coisas. Já lançou onze álbuns, foi indicada ao Grammy quatro vezes, faz parte do Rock and Roll Hall of Fame, além de ter sido, por anos, companheira do fotógrafo Robert Mapplethorpe, ingredientes que fazem de sua vida um prato cheio para os amantes de biografias, como eu.

Lembro-me de quando eu tinha uns 14 ou 15 anos de idade e encontrei uma biografia do Kurt Cobain chamada ‘Mais Pesado que o Céu’ em uma biblioteca. A capa era um retrato em close up do rosto do vocalista do Nirvana, com suas mechas de cabelo loiro emoldurando um olhar tranquilo e expressivo. Minha relação com a banda, até então, era algo entre assistir alguns vídeos de um acústico MTV e uma camiseta com uma estampa de Smells Like Teen Spirit. Até bastante para alguém que nasceu em 1989 e não se interessa muito por rock. Por curiosidade, resolvi pegar aquele livro e segui para casa feliz.

Como qualquer adolescente de 14 anos, eu tinha muito tempo livre e, rapidamente, devorei as 456 páginas do livro e a discografia inteira do Nirvana. Desde essa época, tenho utilizado esse método bastante interessante para lidar com biografias. Vou avançando os capítulos e, conforme chega o momento em que surge a criação de uma música, um álbum ou a gravação de um filme, eu paro a leitura e vou conferir esse material. Quando volto para o livro, parece que as páginas ganharam uma nova dimensão. Quase uma leitura em 3D.

Talvez por carregar minhas próprias aspirações de uma carreira musical, o relato da vida das estrelas da música sempre foi algo que me fascinou, principalmente dessas que vem do nada e dão um jeito de “fazer acontecer”. Fiquei surpreso ao saber que o Kurt, que nas entrevistas sempre passava uma certa ideia de que o sucesso aconteceu por acaso, na verdade batalhou (e muito!) para atingir o estrelato com o Nirvana. De lá pra cá, já me dediquei a biografias da Madonna, Michael Jackson, Ozzy Osbourne, Cássia Eller, Carmem Miranda, Tim Maia, só para citar algumas, todas com o mesmo interesse e curiosidade.

O livro da Patti Smith, porém, é um pouco diferente dessas outras biografias. Não só pelo fato da autora falar sobre sua própria vida, mas, também, pelo olhar extremamente carinhoso que ela dedica a outra história que compõe o prisma de ‘Só Garotos’, a de Robert Mapplethorpe.

Patti e Robert se conheceram nas ruas de Nova York, quando a jovem de então 20 anos, decide se mudar para a metrópole carregando apenas um livro de Rimbaud e o endereço de um amigo que estudava artes na bagagem. Logo, os dois passam a compartilhar a cama, a comida, o dinheiro contado e sonho de se tornarem artistas.

Penso eu, que existe algo no ato de sonhar que é capaz de unir as pessoas mais do que qualquer outra coisa. Existem muitos exemplos por aí. Casais que sonham juntos uma família, amigos que sonham juntos uma viagem, colegas de trabalho que sonham juntos um negócio. E, nesse exercício difícil que é se relacionar, compartilhar um sonho parece ser um ato de entrega capaz de ofuscar os desafios do dia a dia.

Na Nova York efervescente dos anos 70, os desafios eram muitos. A cidade, como qualquer outra metrópole, engolia impiedosamente aqueles que se recusavam a se adaptar imediatamente. Nesse cenário caótico, Patti e Robert batalhavam pelo dinheiro do aluguel da semana ao mesmo tempo em que se descobriam artistas. Ao compartilhar as aspirações, bem como a constante busca por materiais, referências e experimentações, a autora revela o processo de construção da linguagem artística de dois nomes que são, hoje, referências no mundo das artes.

Em meio a esse processo de descoberta profissional, existia ainda o amor, o companheirismo e o afeto. Smith e Mapplethorpe se encontram no início da vida adulta e resolvem enfrentar juntos as dores e as delícias desse período. Nasce aí um relacionamento amoroso difícil, principalmente depois que Robert se descobre homossexual, mas que sempre foi repleto de carinho e cumplicidade.

Na Big Apple, os dois dividiam experiências surreais para qualquer um que não foi jovem em NY nos anos 70, como jantares na companhia de Andy Warhol, um breve romance com o dramaturgo Sam Shepard, uma conversa inesperada com Jimi Hendrix no saguão de um hotel ou encontros casuais com Janis Joplin. Tudo muito comum, tudo muito natural.

Como falei aí em cima, ainda não cheguei ao fim do livro para saber até aonde vai o relato de Patti. O final da história, no entanto, é conhecido por todos. Patti Smith se torna uma artista reconhecida na música, na literatura, nas artes visuais e em vários outros campos por onde já se aventurou e Robert Mapplethorpe obtém o tão sonhado sucesso e se torna um fotógrafo aclamado. No final dos anos 80, Robert adoece em decorrência da AIDS e Patti promete a ele, em seu leito de morte, contar a história dos dois em um livro.

Juntos, eles fizeram do sonho de serem artistas o maior objetivo de suas vidas, mas, o que nós vemos em Só Garotos, é que Patti Smith e Robert Mapplethorpe nunca se tornaram artistas, eles sempre foram.

Às vezes, quando você escolhe viver de arte, as dificuldades do dia a dia te impedem de enxergar que aquele poema, aquela foto ou aquela música já te faz um artista, mesmo que o mundo ainda não saiba. Patti e Robert só precisaram de um pouco de tempo para descobrir isso e, quando descobriram, conquistaram o mundo. E a nós, leitores de biografias, cabe a delícia de viajar por essas memórias e pelos sonhos daqueles que, na época, eram só garotos.

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Conrado Dess

Writer, playwright and theatre director writing about art, politics and culture from Brazil and all over the world.