Crianças em abrigos: a história de um apadrinhamento afetivo

O nascimento do afeto entre uma menina e uma família

CNJ
23 min readMay 24, 2017

Na primeira vez em que a vimos, ela estava deitada no sofá do abrigo, assistindo à televisão junto a várias outras crianças e adolescentes, com olhar hipnotizado e feições desanimadas, assim como todos eles. “É aquela ali”, apontou discretamente a assistente social do abrigo. Tinha apenas 11 anos de idade, mas era quase do meu tamanho, parecendo ser uma menina já bem madura. Negra, cabelos encaracolados e olhos rasgados; no pequeno instante em que nos dirigiu o olhar, tinha uma expressão doce e um pouco amedrontada. Tive vontade de ir até lá conversar com ela, embora eu não fizesse ideia do que dizer. Mas não podíamos. Tínhamos de aguardar uma conversa da assistente social com ela, para saber se ela nos aceitaria como padrinhos.

Desde o início do curso, sabíamos que seria assim,: uma aproximação gradativa e cuidadosa, com o objetivo de um dia conseguir construir um vínculo afetivo com um afilhado. Foram quatro encontros aos sábados em que cerca de 20 candidatos a padrinhos se reuniam para aprender um pouco mais sobre essas crianças e adolescentes que vivem em abrigos do Distrito Federal, e têm poucas possibilidades de adoção — geralmente pela idade, acima de dez anos, bem fora do perfil escolhido pela maioria dos pretendentes.

O grupo de padrinhos que participa da formação de apadrinhamento afetivo, ministrada pela Organização Não Governamental (ONG) Aconchego, já é resultado de uma grande peneira. Em 2016, 545 pessoas se inscreveram no site da ONG com interesse em apadrinhar essas crianças e foram convidadas para a palestra inicial, em que se esclarece do que trata o programa. Destes, apenas 177 compareceram à palestra e 95 realizaram, ao final, a inscrição para a preparação; 77 pessoas concluíram o curso do apadrinhamento e 17 de fato apadrinharam crianças ou adolescentes. Esse cuidado todo não é excessivo, já que é preciso evitar a todo custo que essas crianças, que já tiveram seus direitos violados e vínculos familiares rompidos, não tenham de enfrentar nova situação de abandono ou entrem em uma relação que traga mais sofrimentos.

O padrinho afetivo nada tem a ver com apadrinhamento financeiro, em que pessoas contribuem com despesas, geralmente de educação e saúde, de crianças que vivem em abrigos. Tampouco se trata de um trabalho de voluntariado, como ocorre com profissionais que doam seu tempo para atender crianças em situação de acolhimento, ou mesmo para contar histórias. Tornar-se padrinho ou madrinha significa criar uma relação sólida com aquela criança, permitindo que ela conviva em família, e que tenha vivências em sociedade fora do abrigo. Significa apoiá-la em suas dificuldades, estar presente em sua vida, acompanhar suas conquistas e orientá-la nessa etapa tão difícil que é tornar-se adulto em uma instituição de acolhimento, sem contato com a família.

A psicóloga Maria da Penha Oliveira fala sobre o apadrinhamento afetivo, sua importância para as crianças que estão em instituições de acolhimento e as diferenças entre apadrinhamento e adoção

No dia seguinte à nossa visita às escondidas para conhecer nossa afilhada, recebemos uma ligação da assistente social: Manuela* estava muito contente por ter padrinhos interessados em conhecê-la. E, no fim de semana seguinte, ela mesma nos diria: “parece que meu coração ia sair pela boca quando a tia me contou que vocês queriam me conhecer… nem sei o que dizer”, enquanto passeávamos pelo abrigo. Talvez por estar nervosa, ela falava sem parar sobre sua história, misturando sonhos com acontecimentos reais, o que não sabíamos ao certo ser uma característica da idade ou um modo particular de raciocínio dela. Manuela falava de planos incertos para o futuro — queria ser adotada, aprender balé, fazer natação, estudar. Ela só foi à escola aos dez anos, por isso havia aprendido a ler há apenas um ano, quando veio para o abrigo e passou a frequentar as aulas. A assistente social considerava isso uma grande vitória, e nos mostrou, por cima, a enorme pasta com o processo judicial dela.

Eu sabia que tínhamos de ir com muita calma, mas me senti tão à vontade com ela que, sem querer, já estava fazendo planos para as próximas vezes que nos encontrássemos. Meu marido, no entanto, estava com os pés bem mais no chão e me alertava o tempo todo para que não criássemos muita expectativa em relação a ela. Ele, na verdade, temia que tivéssemos outra experiência malsucedida.

Uma tentativa fracassada

A nossa primeira tentativa de apadrinhamento, após fazermos o curso, foi com a Paula, uma menina de 15 anos de idade que vivia em outro abrigo, bem próximo da nossa casa, o que facilitava as visitas. Alta, negra, magrinha e com o cabelo preso a panos coloridos, cheia de estilo, Paula nos surpreendeu com sua desenvoltura; conversava muito bem, com expressões já bem adultas, e parecia ter opiniões sobre tudo. Nosso primeiro encontro foi na sala das assistentes sociais daquele abrigo, com uma mesa-redonda do tipo de reunião empresarial, que não combinava com aquela garota despojada no auge da adolescência.

A relação parecia que caminhava bem nas primeiras visitas, todas no abrigo. Conversávamos bastante, embora o ambiente não favorecesse muito, porque não conseguíamos ter ali alguma intimidade com ela. Passeávamos em círculos por aquele pátio, sob a intensa barulheira das crianças, e não tínhamos onde nos sentar mais à vontade. O pátio do abrigo era cinza e de concreto, um ambiente que nada tinha a ver com dezenas de crianças que corriam de um lado para o outro em busca do que fazer, na maioria das vezes disputando a bola. As crianças sempre acabavam ficando perto de nós, nos chamavam de tios e penso que achavam que éramos qualquer tipo de recreador voluntário; mais de uma vez alguma delas perguntou se eu havia trazido presentes. As chamadas “mães sociais” estavam sempre ocupadas com afazeres e entravam e saíam, algumas conversavam um pouco conosco. Cada casa abrigava cerca de cinco crianças ou adolescentes; a Paula dividia uma delas com mais três crianças, incluindo sua irmã de nove anos de idade, por quem ela se sentia responsável.

Depois de três ou quatro encontros, tivemos permissão para sair com ela, o que foi um alívio diante daquele ambiente sufocante. Chegamos a ir ao cinema, passeio que ela gostou muito, e a um restaurante. A Paula conheceu nossos filhos, de três e cinco anos, e, ainda que não tenha interagido quase nada com eles, pensamos que era apenas uma timidez natural de uma relação que se inicia. Ela tinha uma alegria e espontaneidade incríveis, características que, combinadas a uma menina bonita como ela, tornavam o ambiente leve. E assim fomos levando por umas três semanas, ligando para ela durante a semana e indo visitá-la ou fazer algum passeio curto durante os finais de semana.

Um dia fui sozinha visitá-la no abrigo e achei-a esquisita: parecia muito distante e com um olhar que me atravessava, sem se fixar em ponto algum. Falava algumas frases desconexas e tinha assumido uma postura de desdém para tudo o que eu perguntava. Questionei se ela estava bem e acabei escutando algo muito duro, que me deixou impactada. Paula estava cheirando cola com amigas, dentro do abrigo. Conseguiam a droga de um pedreiro que estava trabalhando em uma obra por lá, e ela deu a entender que, para isso, tinham de “pagar” certo preço ao homem. Estremeci, ainda mais porque sabia do histórico de abuso que ela tinha na família biológica. Ela me descreveu como se sentia bem quando cheirava, e eu tentei, atrapalhadamente, dizer a ela para não fazer mais aquilo; tentei em vão alertar dos perigos e ela respondia, em tom de deboche, coisas como “ahh que legal, será que meu cérebro vai derreter? Que bacana!”.

A primeira coisa que fiz foi procurar a psicóloga do Aconchego, que me orientou e acolheu prontamente, e marcou uma reunião com as técnicas do abrigo. Eu não podia trair a confiança da Paula e contar aquelas coisas ao pessoal do abrigo, mas também não podia ficar de braços cruzados. No entanto, embora houvesse esforço em ajudaá-la, o cenário começou a ficar inviável, porque a Paula passou a fugir reiteradamente do abrigo com outras colegas. Nessas ocasiões, que são comuns naquele abrigo e em outros tantos, pelo que eu pude presenciar, após 24 horas de sumiço da criança ou adolescente a polícia é acionada e, ao encontrá-la, a conduz novamente ao abrigo.

Os adolescentes não estão ali cumprindo pena e é natural que tenham liberdade para pequenas saídas. Mas, no caso da Paula, que não se sentia muito ligada a nenhuma “mãe” de lá e não aceitava limites, ela fugia de madrugada. Voltava depois de dois ou três dias e ninguém sabia para onde ela tinha ido — uma vez consegui perguntar e ela disse que foi “a uma festa”. Ela abandonou a escola e as técnicas nos diziam que ela simplesmente se recusava a ir e que não podiam obrigá-la, apesar de tentar convencê-la. Nessa altura dos acontecimentos, nossa relação ficava cada vez mais distante: primeiro porque ela nunca estava lá, sempre “sumida”, e depois porque, nos raros momentos em que ligávamos e descobríamos que ela tinha voltado, se recusava a falar conosco. Eu estava muito preocupada com ela, mas não tinha mais abertura para visitá-la e sentia grande aflição ao ver que não conseguia saber ao menos se ela estava bem — as informações eram desencontradas e, embora houvesse esforço das técnicas em ajudar naquela relação, era nítido que Paula estava cada vez mais distante de todos nós, padrinhos e profissionais do abrigo.

Um dia marcamos de ir ao clube no domingo de manhã, e passamos animados para buscá-la. No dia anterior, ela havia nos perguntado se poderia levar junto a sua irmã e, após refletirmos bastante, com ajuda dos profissionais do Aconchego, concluímos que não seria uma boa ideia: o nosso vínculo com ela não estava nada fortalecido e, em um ambiente aberto como o clube, poderia ser difícil controlar quatro crianças. E se ela resolvesse fugir com a irmã? Assim, negamos o pedido. Quando chegamos para buscá-la, ela se recusou a ir, disse que estava com dor de barriga e não tinha dormido direito à noite. Sem nem nos cumprimentar direito, ela entrou para seu quarto, e a mãe social fez um sinal indicando que eu poderia entrar e tentar conversar com ela. Entrei no quarto e perguntei se eu poderia me sentar junto à sua cama, onde ela estava de bruços e tampando o rosto. Ela fez que sim e, depois de um tempo calada, pensando no que poderia estar acontecendo com ela, eu perguntei se o motivo da recusa seria, na verdade, o fato de termos negado de ela ter levado a irmã junto. Ela disse que sim, e insisti um pouco, dizendo que seria uma oportunidade bacana para nos conhecermos melhor e que, mais para frente, ela poderia convidar a irmã. Mas ela estava irredutível e eu pressenti que aquela seria uma das últimas vezes que nos veríamos.

Por fim, fomos informados de que ela disse que gostava de nós, mas não queria mais nos ver. Sabia que ela estava muito perdida, mas sentia também que, infelizmente, não seria mais possível investir naquela relação. Orientados pela equipe do Aconchego, marcamos a nossa despedida. Comprei de presente um livro de poesias do Mário Quintana, chamado “Nariz de Vidro”, que li quando tinha a idade dela — são poemas muito bonitos voltados a essa fase confusa da adolescência. Falei a ela que entendíamos que ela não queria mais ser apadrinhada por nós e que era um direito dela aquilo. Meu marido disse que rezaríamos sempre por ela e que torceríamos para que tudo se ajeitasse na vida dela. Senti que ela ficou emocionada, nos abraçou, mas preferiu não dizer palavra. A técnica do abrigo nos disse que havia aparecido um homem que disse ser pai biológico dela (ela nunca conheceu o pai), mas não para sua irmã, e ela estava sofrendo muito com aquilo. Ao mesmo tempo, a mãe parecia estar cada vez pior e havia abandonado o tratamento para dependência ao qual havia se comprometido como condição para um dia, caso conseguisse se reestruturar, recuperar a guarda das filhas.

Ficamos com uma sensação ruim e até de incompetência por aquela relação ter fracassado, e precisamos de um tempo para pensar melhor naquilo tudo. Muita coisa eu sei que nunca vou entender nem vou saber sobre o que aconteceu, de fato, com a Paula; sei que são lacunas na nossa breve história que vão ficar para sempre. Durante esse período, continuamos a frequentar as reuniões do apadrinhamento, acompanhamos algumas relações que estavam indo muito bem e outras que, como a nossa, não poderiam continuar pelos mais diferentes motivos.

Mas tínhamos a consciência clara de que queríamos nos tornar padrinhos e que essa trajetória estava só começando. Quando nos falaram da Manuela, nos disseram apenas que era uma menina “estudiosa e gentil”, de 12 anos de idade, e que ainda não havia sido apadrinhada; sentimos que era hora de continuar a caminhada.

A primeira conversa

As histórias de quem chega ao abrigo são sempre marcantes e, quando se chega ao ponto de a família perder a guarda daquela criança, certamente se trata de uma situação de extrema violação de direitos. A assistente social já havia nos contado a história da Manuela, abusada sexualmente pelo padrasto, sofreu maus-tratos e negligência da mãe. Ela estava há um ano no abrigo, período em que recebeu apenas uma visita da mãe. No mesmo mês em que iniciamos o apadrinhamento, Manuela foi informada pelos técnicos do abrigo que sua mãe havia perdido definitivamente a guarda dela e, o que deve ter doído ainda mais, percebeu que a mãe não demonstrou interesse em recorrer da decisão.

Não esperávamos que já naquela primeira conversa ela nos contasse sobre sua história, mas ela insistia em nos dizer sobre suas vivências difíceis, sobre as razões que a fizeram chegar àquele abrigo. Ao mesmo tempo que falava, nos mostrava cicatrizes dos maus bocados por que passou em sua família de origem nos braços, pernas e costas, dizendo que ainda doíam muito. Talvez ela estivesse acostumada a relatar sua vida, assim como teve de fazer tantas vezes para o Conselho Tutelar, assistentes sociais, juízes; talvez estivesse apenas nos testando, para saber se mesmo sabendo de tantos problemas por que passou continuaríamos com a ideia do apadrinhamento. Sem saber ao certo como deveríamos reagir ao ouvir seus relatos, fomos apenas ouvindo e nos deixando levar pela conversa dela, que misturava, às vezes, fantasia e realidade, característica que já estávamos acostumados a presenciar com nossos pequenos em casa. Ela nos perguntou se éramos italianos, e não entendi o motivo; depois fomos saber que ela estava ainda abalada porque sua melhor amiga no abrigo havia sido adotada por um casal de italianos e, assim, ela repetia essa pergunta a todos que chegavam por lá, talvez na esperança de rever a amiga.

Assista ao documentário Laços de Afeto, que mostra história de vida de Altair e João Victor. Dois jovens que saíram da situação de atendimento único em instituições de acolhimento provisório para a construção de laços de afeto em duas perspectivas: a adoção e o apadrinhamento

Manuela correu a mostrar o abrigo, brincou um pouco no parquinho, mas, por conta do sol quente, logo se sentou novamente ao nosso lado e retomamos a conversa embaixo de uma árvore. Ela se mostrava um pouco envergonhada às vezes, querendo muito buscar um modo de nos agradar — elogiou, por exemplo, os olhos azuis do meu marido, dizendo que nunca havia visto alguém com olhos daquela cor. Estávamos próximos ao local que havíamos parado o carro, e ela, querendo prolongar a visita, perguntou se nós queríamos ver as “suas coisas” dentro da casa. Apresentou-nos, com admirável orgulho infantil, sua escova de dentes, sua toalha, seus chinelos, seu pedaço no armário em que guardava algumas barbies judiadas, seu diário cheio de desenhos de corações tristes e nomes de amigos e, por fim, nos mostrou seu quarto, que tinha seis camas. Um bebê dormia no berço e passamos a falar bem baixinho. Ela nos mostrou dois ursinhos de pelúcia e uma boneca em cima de sua cama, dizendo que nós, os padrinhos, éramos os ursos, e ela, a boneca. Fiz com que os ursos dessem um abraço apertado na boneca, e foi assim que compartilhamos nosso primeiro sorriso juntos.

Não é adoção

Uma ideia comum das pessoas que ouvem falar pela primeira vez em apadrinhamento é o receio de que a criança ou o adolescente possa confundir os padrinhos com pais, e ficar esperançosa de que será adotada pelos padrinhos. Alguns argumentam até que seria uma crueldade fazer a criança conviver em uma família que não será a sua. Mas essas crianças que dificilmente serão adotadas precisam então ficar até os 18 anos tendo contato apenas com os profissionais do abrigo, sem estender suas relações para a sociedade? Devem ser privadas de uma relação de afeto, atenção e aprendizado no seio de uma família, justamente no momento mais frágil de suas vidas, simplesmente porque não se tornarão filhos? Seria subestimar demais a capacidade desses jovens de entenderem o programa de apadrinhamento e assumirem seu papel de afilhados. É claro que tanto os padrinhos, quanto os afilhados precisam ser preparados para essa relação, daí a importância de cursos de formação como o da ONG Aconchego. Assim como nós nos preparamos, a Manuela também havia frequentado todo o curso voltado aos afilhados, tirado suas dúvidas e trabalhado suas expectativas em relação ao apadrinhamento.

Durante o curso muitas questões vão surgindo, e de fato uma delas envolve a adoção. Ao optar pelo apadrinhamento, os futuros padrinhos, que entram em contato com várias histórias de crianças abrigadas que veem à tona nas palestras com técnicas de abrigos, inevitavelmente acabam pensando na possibilidade de adoção. Por alguns dias, meu marido e eu pensamos se o que queríamos não seria a adoção, já que com frequência desde que nos conhecemos conversávamos sobre esse sonho. Chegamos a cogitar conversar com a equipe do Aconchego sobre essa dúvida. Mas, com duas crianças pequenas e nos equilibrando diariamente para dar conta da logística da família trabalho-escola-natação-balé-etc., nos demos conta de que agora não poderíamos ter outro filho, nem biológico nem adotivo. Isso seria — ou não -– algo que pensaríamos bem mais para frente; nossa maternidade e paternidade já estavam sendo plenamente exercidas. Então, por que queríamos um afilhado? Às vezes é mais fácil listar os motivos que não gostaríamos de ter para entrar nessa relação: não queríamos que fosse por caridade, tampouco por obrigação social, ou para que nossos filhos tivessem contato com outra realidade. Queríamos essa relação porque sentíamos, no fundo do nosso coração, que esse era o nosso caminho. Assim como se tem um filho pelo desejo de se tornar mãe e pai, nosso afilhado viria pelo nosso sonho de nos tornarmos padrinhos e termos essa criança em nossa vida. Sentíamos, ao final do curso, que esse afilhado caberia na nossa vida, embora estivéssemos cheios de dúvidas sobre como seria a convivência com alguém que, com pouco tempo de vida, já passou por situações tão trágicas — será que seríamos capazes de ajudar e integrar quem já foi traído nos seus mais importantes vínculos?

Ter a certeza de que, ao menos nesse momento, a sua intenção não é adotar, mas apadrinhar, é fundamental para que se tenha uma boa relação com o afilhado futuramente. Isso porque, se as suas intenções não estão claras, isso vai acabar transparecendo durante o relacionamento e confundindo aquele adolescente ou criança que, quase sempre, ainda mantém a esperança de ser adotado.

Além disso, nem todas as crianças e adolescentes que ingressam no programa de apadrinhamento estão disponíveis para adoção — muitas estão em processo de reintegração familiar, e o auxílio do padrinho nesse momento delicado pode ser fundamental para o afilhado. Ou seja, embora existam casos de padrinhos que acabaram adotando seus afilhados depois de um tempo de convivência, não é possível fazer do apadrinhamento uma espécie de “teste drive” para adoção: ou se quer uma coisa, ou outra. E, ao final do nosso curso, vimos duas pessoas que revelaram alto grau de honestidade com elas próprias e com o grupo e decidiram por sair do programa de apadrinhamento para ingressar em um curso de preparo para adoção. Já um ou outro desistiram porque, ao refletir melhor durante o curso, chegaram à conclusão de que não se sentiam ainda preparados para aquela responsabilidade, ou esperavam que o programa fosse de outra forma. Isso só prova a importância do curso de formação para o apadrinhamento, que consegue evitar que crianças que já estão em situação de vulnerabilidade passem por uma relação que já nasce conflituosa, com intenções que não estão claras para nenhum dos lados.

Apadrinhamento pelo Brasil

Poucos estados, ao que se tem notícia, contam com esse curso de formação; na realidade, como não há ainda previsão legal para o apadrinhamento, cada local acaba disciplinando — ou não — o assunto de um jeito diferente. Já existem programas de apadrinhamento em pelo menos oito estados — Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Espírito Santo, Ceará, Pará — e no Distrito Federal.

No entanto, o primeiro passo para dar algum amparo legal ao apadrinhamento afetivo foi dado: o Ministério da Justiça fez ampla consulta pública para elaboração de projeto de lei para alterar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (http://pensando.mj.gov.br/adocao/). Três grandes temas foram objeto de discussão: entrega voluntária para adoção , alteração de prazos e procedimentos de adoção nacional e internacional e apadrinhamento afetivo — caso as alterações sejam aprovadas no Congresso Nacional, o apadrinhamento afetivo estará previsto no ECA e, acredita-se, terá mais respaldo para se expandir pelo país.

As regras para se tornar padrinho ou madrinha afetivos variam um pouco em cada estado, mas em geral é preciso ter mais de 25 anos de idade, ter disponibilidade de tempo para estar com o afilhado ao menos duas vezes por mês, residir na mesma cidade em que está o abrigo e passar por uma formação e seleção. Em São Paulo, por exemplo, a ONG Fazendo História possui um programa de apadrinhamento por meio de parceria com a Vara da Infância e Juventude e com os serviços de acolhimento — estão no programa crianças que têm entre 7 e 17 anos de idade e perspectiva de longa permanência no serviço de acolhimento.

De acordo com explicação que consta no site da ONG, “o apadrinhamento fortalece a convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes em acolhimento, com vínculos familiares fragilizados ou rompidos, que possuem remotas chances de adoção ou de reintegração familiar”. No portal do Instituto Fazendo História, é possível acessar amplo material a respeito, incluindo os depoimentos de padrinhos.

Em um deles, Mirella Loreto, madrinha afetiva desde novembro de 2015, diz sobre seu afilhado: “O Carlos é uma criança simples: enquanto eu penso em passeios, para ele andar pelas ruas observando os prédios e árvores já é um barato. Enquanto eu adio a vinda dele em casa, temendo ser um tédio e fracasso total, cozinhar e ver filme juntos já bastava. Até ver a pipoca estourar no micro-ondas vira um acontecimento. E há um comentário, uma observação, uma aprendizagem mútua em cada detalhe, em cada evento. E a cada encontro aprendemos algo sobre o outro”.

Nasce uma relação

Os primeiros encontros com a Manuela foram no abrigo; ao contrário do abrigo da Paula, o ambiente desse era muito mais calmo e amigável. O local parecia um sítio, situado em uma área rural, abrigava crianças e adolescentes em duas casas com um belo jardim. Havia algumas crianças pequenas brincando na varanda, enquanto as maiores e os adolescentes estavam quase sempre assistindo à televisão ou dentro dos quartos.

Nessas visitas, ainda no abrigo, levávamos jogos como o de memória ou quebra-cabeça, porque vimos que ela gostava, e ficávamos de uma a duas horas com ela, que ficava visivelmente alegre com a nossa presença. No entanto, ficava incomodada quando outras crianças do abrigo chegavam perto ou queriam brincar conosco. Nada mais natural: o apadrinhamento deve mesmo ser individual, ou seja, não estávamos lá para brincar com as crianças, mas para estar com a nossa afilhada. Isso é importante porque as crianças que vivem em abrigos têm de compartilhar tudo, das roupas, comidas e materiais às chamadas “mães sociais” ou cuidadoras, todos são “tios” que são de todo mundo e não são de ninguém. Os padrinhos não devem ser chamados de “tios” como os outros; aprendemos no curso a insistir para que a criança ou adolescente nos chame pelo nome ou por “padrinho” e “madrinha”. Foi a segunda opção que a Manuela escolheu, e nunca fomos chamados de tios por ela.

Estávamos ansiosos para que ela conhecesse nossos filhos e até com um pouco de medo de não haver entrosamento entre eles. Mas a relação entre as crianças costuma ser muito mais natural e espontânea do que com adultos, e em cerca de meia hora estávamos todos sentados no chão montando o quebra-cabeça escolhido pela Manuela. A nossa filha mais velha demonstrou um pouco de ciúme, fazendo questão de ficar sempre no colo do pai, frisando que aquele era o SEU pai. Respeitamos esse sentimento dela e nos próximos encontros não houve mais nenhuma situação assim; pelo contrário, elas foram ficando tão amigas que muitas vezes excluíam os adultos das conversas e principalmente das brincadeiras. Ela acabou se encaixando como uma irmã mais velha das crianças, que já se acostumaram totalmente com a situação.

No aniversário dela, fomos ao parque de diversões, a pedido dela. Costumamos passear bastante, ir ao cinema, parques, clube, museus… mas uma das coisas que mais gostamos é ficar em casa, cozinhar, ouvir música, assistir a um filme. Ela vai percebendo aos poucos como as coisas funcionam em casa, e naturalmente se encaixa no nosso jeito de ser, percebendo a diferença entre nós e o modelo de família que ela um dia vivenciou. Um dia ela viu o padrinho chegar do supermercado e guardar as compras e falou: “então também tem homem que é bom para mulher, né?”

Depois de fazermos vários passeios juntos, chegamos a uma nova etapa: conhecer a nossa casa. Para isso, recebemos a visita de duas assistentes sociais do abrigo que conheceram o lugar e autorizaram a visita. Manuela ficou muito contente em poder finalmente ir à nossa casa, e foi se sentindo à vontade aos poucos; no início, ficava mais no quarto de televisão, depois passou a ir ao quarto das crianças e, depois de alguns finais de semana, já estava me ajudando com o almoço e brincando pela casa toda. As crianças ficaram muito felizes quando, pela primeira vez, ela foi autorizada a dormir lá em casa, o que nos deu chance de aproveitar muito mais o dia, já que o abrigo fica bem longe de onde moramos e não podíamos nos programar para um passeio mais longo. No dia seguinte, a minha filha mais velha fez um desenho da família, incluindo a Manu. É surpreendente como as crianças conseguem entender a relação de apadrinhamento de uma forma leve e fácil; o meu filho de três anos e um metro de altura, explica aos outros, apontando para o alto a Manu, que ela é uma afilhada dele e que por isso está sempre junto da família e “pronto”.

O programa de apadrinhamento da ONG Aconchego prevê uma cerimônia para a celebração do compromisso entre padrinhos e afilhados, em que são assinados termos destinados posteriormente à Vara de Infância. Normalmente comparecem à cerimônia cerca de dez afilhados com seus padrinhos e madrinhas, e é um momento de bastante emoção para aquela relação que está surgindo. A Manuela fez questão de levar duas amigas do abrigo para a cerimônia, que foi no salão de festas de uma das madrinhas, e realmente foi um momento especial para nós. Levamos de presente para ela um caderno com muitas fotos dos passeios que fizemos juntos, com mensagens nossas e desenhos das crianças, e recebemos uma infinidade de cartas carinhosas dela — aliás, toda vez que ela vai em casa costuma deixar uma cartinha escondida para nós.

Os pequenos passos

“Madrinha, você pode me ligar para dar boa-noite? É porque eu sempre quis receber uma ligação de boa-noite.”, foi o que a Manuela me disse na primeira vez em que eu liguei, à tarde, para saber se ela tinha ido bem na prova da escola. Horas depois eu retornei, e falamos não mais que dois minutos. Outro dia estávamos tomando um açaí perto de casa e, como ela estava demorando no banheiro, fui ver se estava tudo bem. Encontrei-a lavando compulsivamente o pulso, em cima de uma cicatriz de um corte de facão que ela me contou que foi feita pela mãe, que sabia dos abusos que ela sofria e costumava partir para agressão física quando a Manuela tocava nesse assunto. “Ainda dói muito de vez em quando essa cicatriz”, ela disse. Dei um beijinho em cima, assim como faço quando meus filhos se machucam, e perguntei se estava melhor. “Sim!”, ela sorriu e as coisas voltaram ao normal. Fui percebendo, aos poucos, que pequenos gestos como esses tinham grande efeito na confiança que ela passava a ter em mim.

Eu sabia que ela tinha grande defasagem escolar, já que só tinha passado a frequentar a escola aos dez anos, quando chegou ao abrigo. Pedi para que ela levasse a lição de casa para fazer junto comigo, e percebi que ela não conseguia ler, apesar de saber escrever. Lia duas frases e mostrava-se exausta, confundia palavras, travava, dizia que a letra era pequena demais. Desconfiei que ela tivesse algum problema oftalmológico, pois eu, que tenho dez graus de miopia, comecei a ter dificuldades para enxergar na idade dela. Conversei com a técnica do abrigo, que me informou que iria ter um mutirão oftalmológico por lá, mas acabou não acontecendo.

Assim, com a permissão deles, marquei um oftalmologista particular e levei-a durante a semana. Ela estava nervosa porque detestava ir ao médico; já tinha me contado que se recusou a ir a um ginecologista antes. Mas demos as mãos e ela entrou. Lá dentro, ela não conseguia ler uma porção de letras, e fiquei esperando o diagnóstico de miopia. O médico constatou, no entanto, que ela não tinha nenhum problema oftalmológico, mas de aprendizado — nas palavras dele, uma dificuldade para compreender o alfabeto.

Na volta, ela me perguntou: será que meu sobrenome, quando eu for adotada, será Garcia? Ou Mercedes? Eu acho que ela quis me perguntar, na verdade, se mesmo com as dificuldades que ela tinha, eu acreditava que ela poderia ainda sonhar em ser adotada. Foi a primeira vez que conversamos mais abertamente sobre isso. Eu disse que não sabia como ficaria o nome dela quando fosse adotada, mas que poderia ficar também como está, caso ela não o fosse. Não tive a intenção de desiludi-la, mas com 12 anos a chance de adoção é remota. Dados do Cadastro Nacional de Adoção (CNA) mostram que 91% dos pretendentes só aceitam crianças de até 6 anos, enquanto 92% das crianças aptas à adoção no país têm entre sete e 17 anos, como é o caso da Manu.

Outro agravante, no caso dela, é não estar acompanhada de um irmão mais novo no abrigo, o que tem facilitado a adoção internacional, principalmente por famílias italianas, de grupos de irmãos. A adoção de crianças brasileiras feita por pais estrangeiros ocorre, de maneira geral, quando não foi encontrada uma família brasileira disponível para acolher o menor. Dos 16 organismos estrangeiros responsáveis por intermediar as adoções estrangeiras que credenciados junto à Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf), 13 são da Itália. O principal motivo alegado para isso é a identificação cultural dos italianos com o povo brasileiro, mas existem outros fatores de estímulo. Um deles é que o governo italiano permite seis meses de licença remunerada, em caso de adoção internacional, e possibilidade de extensão para um ano com metade da remuneração. Ainda há casos em que casais conseguem licença do trabalho por dois anos, mas sem remuneração. Mas a maioria dos casos de adoção internacional é feita com crianças maiores de 6 anos e, geralmente, com grupos de irmãos.

Assim, eu gostaria que ela tivesse mais preparada para aceitar o futuro caso não fosse recolocada em uma família. Mas é claro que todos sonhamos e fantasiamos… às vezes ela me diz que acha que será adotada por uma família muito rica, que terá um “carrão”, um quarto só para ela e uma porção de coisas. Confesso que não sei o que dizer para ela nessas situações; apenas escuto, e procuro entendê-la. Quando crianças que são muito próximas dela no abrigo são adotadas, ela fica especialmente triste e com a autoestima ainda mais baixa.

A Manuela está bem naquela transição entre ser criança e adolescente, e já bem mais para essa segunda fase. Quando nos conhecemos, um dos programas frequentes era ir ao parquinho, e ela aproveitava bem os brinquedos; agora, fica um pouco envergonhada, brinca mais discretamente. Estamos lidando com as “chatices” próprias da idade…uma preguiça enorme para fazer lição de casa, a fixação por cantores teens” como o Luan Santana, as mudanças repentinas de humor… e, é claro, a vontade de ter um tablet e um celular, o que é motivo para que ela fique bem emburrada e nós temos de conversar bastante. E há também aquelas perguntas difíceis de responder — outro dia, enquanto tomávamos um açaí, ela me disse: madrinha, que estilo a senhora acha que eu deveria ter?

Às vezes acabamos tratando-a como uma criança pequena como as nossas; já noutras ocasiões, sem querer cobramos uma maturidade que ela ainda não consegue atingir. Mas vamos indo assim, tentando aprender com ela a melhor forma de crescermos juntos.

Nossa relação, após oito meses de apadrinhamento, ficou muito mais natural. Nos primeiros meses, eu costumava anotar na minha agenda todas as semanas para ligar para ela e marcar os encontros. Agora, não há mais necessidade disso… se eu não a vir por mais de uma semana, vou sentir saudades. Tenho um certo receio e até ansiedade ao pensar no futuro dela. Tenho medo de não conseguir ajudá-la a encontrar seus caminhos, tenho muita vontade de fazer o que for possível para que ela possa ter uma história diferente da que viveu em sua família de origem. Fico sonhando em ver a Manu feliz, trabalhando em algo que goste, trazendo seus filhos para brincar na minha casa junto com os netos que eu vou ter um dia.

Sei que a relação é complexa e muitas coisas podem acontecer pelo caminho, boas ou ruins. Mas, alguns sinais, por vezes, nos dizem que estamos no caminho certo. Um dia, por exemplo, enquanto estávamos fazendo lição de casa, ela falou: “madrinha, eu acho que vou querer ser médica”. E a madrinha então encheu os olhos d´água e quase explodiu de orgulho dessa menina linda e tão forte.

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Fotos: banco de imagens iStock

*Nome trocado para preservar a identidade da criança.

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CNJ

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi criado em 2005 para aperfeiçoar e dar transparência ao sistema judiciário brasileiro.