Peronismo e esporte: As estruturas da construção de uma nova Argentina

Copa Além da Copa
9 min readDec 23, 2019

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Eva Perón dá o pontapé inicial de uma partida da competição que levava seu nome, em 1948.

Em 2019, os argentinos foram às urnas e elegeram como seu novo presidente Alberto Fernández, um autoproclamado peronista. A essa altura, você já deve ter lido em alguma análise política que simplesmente se dizer “peronista” não revela quase nada sobre alguém: é possível encontrar peronistas em qualquer parte do espectro político do país vizinho.

Juan Domingo Perón foi a maior expressão do que se convencionou chamar de populismo na política argentina — aliás, talvez tenha sido o maior populista de toda a América Latina. Um dos responsáveis pelo golpe militar que levou conservadores ao poder em 1943, ele teve atuação destacada como Secretário do Trabalho e se aproximou da classe operária ao defender direitos como a previdência e o 13º salário. Preso em 1945 e libertado após imensos protestos, Perón se elegeu presidente da Argentina no ano seguinte, percebendo-se como alguém que poderia liderar e tutelar “o povo”, sendo este algo coeso, único, sem divisões.

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Assim como no Brasil, o futebol foi trazido à Argentina pelos pés dos ingleses, ainda no século XIX, como um esporte de elite. Mas sua popularidade foi crescendo à medida em que operários começavam a conhecer o esporte, se associavam e fundavam clubes para disputar partidas entre eles. Buenos Aires é, hoje, a cidade com o maior número de estádios de futebol do planeta, com 36 canchas com capacidade superior a 10 mil pessoas. Portanto, na década de 40, quando Perón surge na vida pública, esse já era de longe o esporte mais popular do país. Como alguém que pretendia liderar o povo, Perón também teve de se envolver com o futebol.

É interessante notar o quanto a política e sobretudo a história permeiam os campos argentinos até mesmo na hora do batismo dos clubes. No Brasil, não temos uma grande tradição com nomes de figuras importantes como heróis da independência ou de ex-presidentes se repetindo em times de diferentes estados ou regiões. Imaginem, afinal, como seria ter um clássico “Prudente de Moraes (SP) x Prudente de Moraes (AL)”.

Na Argentina, isso é plenamente comum. A segunda divisão conta atualmente com San Martín de Tucumán e San Martín de San Juan, ambos nomeados em homenagem ao herói da independência, e Belgrano, lembrança ao principal companheiro de José de San Martín. Eles disputam o acesso contra o Sarmiento de Junín e Mitre, que recebem seus nomes de presidentes do século XIX, Independiente Rivadavia, que homenageia o primeiro homem a ocupar o mesmo cargo, e Guillermo Brown, nome do almirante irlandês que foi fundamental na luta contra a coroa espanhola.

Quando descemos para a terceira divisão, mal podemos acompanhar a tabela sem vermos uma enormidade de siglas: Sarmiento (R), Rivadavia (L), Belgrano (VR), Sportivo Belgrano, San Martín (F) e muito mais. Sempre é necessária uma letra após o nome do time para que seja possível se reconhecer sobre qual entre tantos homônimos se fala.

Em um país com essa característica, qualquer governante populista tem um prato cheio.

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Sob o comando do forte Estado peronista, o futebol argentino contou com um financiamento jamais visto, a ponto de o presidente ser chamado de El primer hincha, “o primeiro torcedor”. Esse financiamento veio principalmente na forma de infraestrutura. Em 1947, ele assinou uma lei que autorizava o Poder Executivo a outorgar créditos para o financiamento da construção de estádios, campos e outras instalações esportivas. A ideia era preparar Buenos Aires para ser a sede da primeira edição dos Jogos Pan-Americanos, em 1951 (houve uma edição anterior nos Estados Unidos, em 1932, mas não é considerada oficial).

Com a lei de Perón, clubes como Vélez Sarsfield, Huracán e Racing ganharam um empurrãozinho populista para que construíssem seus estádios, enquanto o River Plate pôde ampliar seu campo. Aliás, no caso do Racing Club de Avellaneda, Perón é até hoje reivindicado como um autêntico patrimônio de sua torcida.

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A ligação entre o peronismo e o Racing vem desde essa época. Considerado “o primeiro grande” entre os clubes argentinos, já que foi pioneiro a se estabelecer como tal (venceu 7 campeonatos consecutivos entre 1913 e 1919, um recorde até hoje), o Racing atraía multidões para seus jogos. Na década de 40, mesmo já enfrentando uma fila, o clube ainda assim era extremamente popular e precisava de uma casa que comportasse seu público. Ramón Cereijo, Ministro da Fazenda de Perón e racinguista inveterado, atuou junto ao general para que o clube conseguisse um crédito de cerca de 3 milhões de pesos a taxas baixíssimas e pudesse construir um novo estádio, belo, grande e moderno. A ideia empolgou o presidente, que queria que aquele fosse um estádio “tão grande quanto o Coliseu”, e que ainda fosse a futura sede de uma edição das Olimpíadas.

Com essa influência, o nome escolhido para a cancha não poderia ser outro: Estadio Presidente Perón, em Avellaneda, cidade da região metropolitana de Buenos Aires de onde o clube era (especula-se que o presidente queria um estádio em Buenos Aires mesmo, mas perdeu a queda de braço).

Perón também foi nomeado presidente honorário do clube e sua mulher, a primeira-dama Eva, a famosa Evita, sócia de honra, assim como Cereijo. Todos eles estiveram presentes na inauguração em setembro de 1950, com uma vitória de 1 a 0 do time da casa sobre o Vélez Sarsfield, e um busto do presidente foi colocado no clube em sua homenagem. Está lá até hoje.

O estádio Presidente Perón pouco após a sua inauguração.

O estádio, rebatizado popularmente de El Cilindro, era de fato grandioso. Tinha capacidade para mais de 100 mil pessoas e foi a sede da abertura e do encerramento dos primeiros Jogos Pan-Americanos da história. Mas Perón era de fato torcedor do Racing? Há quem diga que não, que era apaixonado mesmo pelo Boca Juniors, tese corroborada por mais de um conhecido dele. Perón, como bom populista, nunca se posicionou oficialmente. Para que fazer isso, se poderia manter a confusão e não decepcionar ninguém em sua base?

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Foi durante o governo de Juan Domingo Perón também que o futebol argentino viveu uma das maiores crises da sua história: de forma irônica, a primeira grande greve que um presidente tão próximo da classe trabalhadora teve de enfrentar foi a dos jogadores de futebol, que levou à paralisação do Campeonato Argentino de 1948 (posteriormente concluído com amadores).

A profissionalização ainda era recente na Argentina. Por isso mesmo, muitos cartolas não levavam os direitos trabalhistas de seus funcionários a sério. Em novembro de 48, os jogadores deram um basta naquilo e simplesmente se recusaram a voltar a campo, numa greve que duraria 6 meses e que terminaria sem atender as demandas dos trabalhadores.

Pior que isso, ela fez com que muitos dos principais jogadores de uma das maiores gerações da história do país saíssem correndo de lá. É o caso de craques como Adolfo Pedernera e Alfredo Di Stéfano, peças essenciais do fantástico time do River Plate que ficou conhecido como La Maquina. Antes da greve, a seleção argentina conquistou 4 das 6 Copas Américas disputadas na década, sendo 3 delas (1945, 1946 e 1947) num até então inédito tricampeonato consecutivo do torneio. Há quem diga que, se tivesse havido Copas do Mundo em 1942 e 1946, a Argentina teria sido campeã mundial antes de 1978.

A greve e a consequente migração de suas maiores estrelas para outras terras mudou tudo. A equipe não disputou a Copa América de 1949, realizada em solo brasileiro. Por ordens expressas do Estado peronista, sequer disputou as eliminatórias das Copas de 1950 e 1954 para evitar um vexame. Ou seja, durante os dois primeiros mandatos de Perón, o país não foi à Copa do Mundo.

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O nome da primeira-dama Eva Perón já foi mencionado acima, mas ela merece mais atenção quando se fala do uso do esporte em seu governo.

Um dos primeiros episódios envolvendo Evita — mesmo que indiretamente — foi quando o Sarmiento de Junín aproveitou a já citada lei sancionada por Perón que dava empréstimos aos clubes para a construção de estádios. O pequeno alviverde, que na época nunca tinha jogado a primeira divisão, recebeu mais de um milhão de pesos para erguer a sua cancha. Muito agradecido, batizou-a de “Estadio Eva Perón”.

Inaugurado em 1951, o Eva Perón ainda é a casa do Sarmiento. Atualmente, tem capacidade para 19 mil pessoas — mais de 20% da população da cidade de Junín.

Como mencionamos repetidamente em nossos podcasts, a busca pela integração nacional é frequente em governos de característica totalitária e/ou populista. Foi aí que Evita fez o seu principal uso do esporte.

Em 1948, começaram a ser disputados pela Argentina campeonatos infantis conhecidos como “Copa Doña Maria Eva Duarte de Perón”. O sucesso foi enorme. As fases finais passaram a ser jogadas nos estádios dos grandes clubes argentinos: é claro, com o presidente e a primeira dama na plateia.

Além de promover uma integração nacional com crianças de todo o país se enfrentando e, em menor escala, plantar a semente do futuro da albiceleste que poderia conquistar o mundo, a Copa Doña Maria Eva Duarte de Perón levava os símbolos nacionais e o patriotismo à infância argentina. As equipes quase sempre tinham nomes como San Martín, Belgrano e 17 de Octubre. Antes dos jogos, eram cantadas marchas como “Evita Capitana”.

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A juventude argentina era o principal alvo dos investimentos esportivos de Perón. Sediar os Jogos Pan-Americanos de 1951 era seu desejo profundo, e foi realizado com muito sucesso.

A Argentina não apenas impressionou com a infraestrutura apresentada, como ficou em primeiro lugar no quadro de medalhas: 68 ouros, contra 45 dos Estados Unidos (que já eram uma enorme potência mundial). O jornal Mundo Deportivo publicou: “Os primeiros Jogos Pan-Americanos foram para a juventude argentina um motivo de legítimo orgulho e uma satisfação muito difícil de superar”.

Ficar em primeiro lugar em uma competição esportiva internacional dentro de seus domínios não é sobre esportes, como já aprendemos até mesmo com Adolf Hitler em 1936. É sobre provar a sua superioridade, sobre mostrar a capacidade de seu povo, sobre unir toda a população em torno do orgulho da bandeira que tremula mais alto. Perón conseguiu, com o Pan de 1951, forjar uma real identidade argentina.

E essa identidade era fundamentalmente nacionalista: assim como os pequenos times infantis, as gigantescas construções de estádios e ginásios também recebiam nomes que exaltavam a Argentina. O maior exemplo é o Autódromo 17 de Octubre, onde Juan Manuel Fangio se encheria de glórias.

Medalhista de ouro no Pan de 1951 na categoria peso mosca, o boxeador Pascualito Pérez seria campeão mundial em 1954. Suas primeiras palavras após receber o cinturão? “Ganhei para Perón, para a minha pátria e para a Argentina”.

Pascualito Pérez ao lado de Perón

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Ironicamente para alguém tão ligado ao esporte, Juan Domingo Perón morreu durante a primeira Copa do Mundo que a Argentina disputava em um mandato seu, em 1º de julho de 1974. Aquela era a terceira vez que havia sido eleito para o cargo de presidente. Sua morte foi lembrada não em um, mas em quatro jogos daquele Mundial, de forma pouco comum. Por alguma razão difícil de entender, a FIFA determinou que o minuto de silêncio em homenagem a Perón fosse respeitado aos 10 minutos do primeiro tempo de cada jogo.

Daniel Carnevali e Miguel Santoro, os dois principais goleiros da seleção argentina, eram peronistas fervorosos e se recusaram a jogar para respeitar o luto. Coube a Fillol, que anos mais tarde seria goleiro do Flamengo, representar o país no último jogo, diante da Alemanha Oriental (a equipe já estava matematicamente eliminada).

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Perón foi sucedido no governo argentino por sua terceira esposa, Isabel. Ela seria vítima de um golpe militar em 1976, seguido pela implementação de uma sanguinária ditadura.

Dois anos depois, em 1978, a ditadura militar argentina seguiria a maior parte das lições de Perón com o país sediando e vencendo pela primeira vez a Copa do Mundo de futebol, esporte mais popular em terras portenhas e que tanto incentivo recebera nas décadas anteriores.

Esse texto é um complemento ao episódio do podcast Copa Além da Copa sobre futebol e populismo no Brasil.

O Copa Além da Copa fala sobre futebol, história, política, arte e cultura. É feito por Carlos Massari e Aurélio Araújo. Siga-nos no Twitter: @copaalemdacopa, e ouça nossos podcasts, disponíveis no Spotify, Google Podcasts e diversos outros agregadores.

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Copa Além da Copa

Esporte, política, história, cultura e arte. Por Carlos Massari e Aurélio Araújo.