Ultras italianos e máfia: histórias que parecem de cinema

Copa Além da Copa
8 min readSep 26, 2019

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Torcida do Atalanta toma as ruas de Bérgamo. (Fonte: ecodibergamo.it)

No dia 13 de abril de 2019, mais de 2000 torcedores do Atalanta tomaram as ruas de Bérgamo, importante cidade da Lombardia, vestindo as cores e tremulando bandeiras do clube. Eles não estavam comemorando um título.

Os torcedores estavam, na verdade, se manifestando. Eles queriam a liberdade e a volta aos estádios de Claudio Galimberti, o líder dos ultras da “curva nord” do Atalanta. Banido dos estádios já por um período considerável de tempo e com processos que poderiam fazê-lo passar mais de 25 anos na cadeia, Galimberti é tão amado e respeitado por seus companheiros que provoca esse tipo de reação.

Mas a ficha corrida do líder dos ultras dos nerazzurri não é nada limpa: foi processado por jogar um coquetel molotov no carro de Roberto Meroni, responsável pelo endurecimento das regras contra os torcedores que criavam confusões nos estádios italianos quando era ministro do interior, e de ligações com compra e revenda de cocaína dentro da própria torcida.

Ataques com coquetel molotov e tráfico de cocaína parecem mais coisa de um mafioso que de um mero torcedor, não é? Esse é o ponto.

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As organizações mafiosas mais famosas da Itália são três: a Camorra, que atua na Campânia, a Cosa Nostra, da Sicília, e a Ndrangheta, com sede na Calábria. Um pouco menos famosa é a Sacra Corona Unita, de atuação principal na Puglia.

Durante muito tempo, elas foram combatidas como “as quatro máfias” pelas autoridades italianas. Porém, não faz muito tempo que se considera os ultras como “a quinta máfia”. Casos como o de Claudio Galimberti são cada vez mais comuns.

As torcidas organizadas italianas hoje têm a estrutura de organizações criminosas. A extorsão, as atividades ilegais na venda de ingressos e artigos dos clubes e o tráfico de drogas estão entre as atividades mais comuns.

E, ao contrário do que acontece com a máfia “tradicional”, que prefere ficar longe dos holofotes e manter seu envolvimento futebolístico apenas com clubes menores, a transformação dos ultras em organizações criminosas se nota em praticamente todos os grandes clubes italianos.

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A Juventus de Turim exerce atualmente o completo domínio do futebol italiano. Venceu as últimas oito edições da Série A, quase sempre com larga vantagem de pontos sobre os concorrentes mais próximos.

E, mesmo com tanto poderio econômico e com uma tradição que só aumenta, a Juventus não se vê livre das influências mafiosas. Muito pelo contrário. O clube recentemente foi investigado pela infiltração da ‘Ndrangheta, a famosa máfia calabresa, em seus domínios — mais especificamente, pela ligação com seus ultras. A Juventus vendia a eles ingressos, como muitos clubes fazem com suas torcidas organizadas, mas esses ingressos reapareciam no mercado a preços mais altos, nas mãos da ‘Ndrangheta.

O escândalo abalou o futebol italiano. Até mesmo o poderoso Andrea Agnelli, presidente do clube e herdeiro da Fiat, levou uma suspensão oficial da federação de futebol do país. Ele deveria ficar um ano afastado das atividades na Juventus, mas a pena foi convertida em multa pouco tempo depois.

Andrea Agnelli, presidente da Juventus

Se há alguém que pode ser apontado como o responsável pela aproximação institucional entre Juventus e ‘Ndrangheta, esse homem é Loris Giuliano Grancini, o capo dos Vikings, um barulhento grupo de ultras do clube de Turim. Num grampo telefônico colocado pela polícia, Agnelli foi gravado dizendo que o problema de Grancini é que “esse daí já matou gente”. Do outro lado da linha, estava Alessandro D’Angelo, responsável pela segurança do Allianz Stadium, o campo da Juventus, que o corrigiu Agnelli: “mandou matar”.

Além da Juventus, Grancini tem outra paixão: o pôquer, no qual também fez uma certa fama. Desde os anos 90, ele está infiltrado no submundo de Milão, e não em Turim, onde se espera que o líder de uma torcida de um clube de lá more. Para ultras como Grancini, o menos importante é o futebol.

O currículo do capo inclui ter escapado da morte certa num tiroteio no distrito milanês de Barona, em 1998, e uma condenação a 13 anos de prisão em 2017 por uma tentativa de homicídio ocorrida 11 anos antes. O caso se deu num bar chamado Los Hermanos, tradicional reduto de torcedores da Juventus em Milão.

Grancini e um amigo tentaram executar a tiros um homem chamado Massimo Merafino, numa retaliação por uma briga ocorrida em outro bar. Depois, segundo a Justiça italiana, Grancini teria esfaqueado um amigo de Merafino para intimidá-lo e evitar que ele depusesse perante a polícia.

As histórias que envolvem ultras como Loris Giuliano Grancini e seus comparsas lembram cenas de filme de máfia. Segundo um relatório policial, em outro momento, ele e alguns associados entraram numa agência de eventos esportivos de Milão a fim de extorquir o dono em troca de ingressos para jogos da Juventus. A frase que teria saído da sua boca é uma ameaça sutil, mas que caberia perfeitamente num papell de Joe Pesci ou Robert de Niro no cinema: “é bonito aqui, mas sabia que queima facilmente?”. Por essas e outras, antes mesmo de ser preso, Grancini já havia recebido uma pena de oito anos sem poder ir a estádios italianos.

Porém, o grande crime de Grancini ligado ao futebol talvez esteja no misterioso suicídio de Raffaello Bucci, um torcedor da Juventus, morto em meio à investigação policial sobre a infiltração da ‘Ndrangheta na comercialização de ingressos do clube. O nome de Loris Giuliano Grancini apareceu no depoimento de Bucci e muitos ultras consideravam Bucci um traidor por estar delatando o esquema. Se você ouviu nosso podcast sobre as ligações entre a máfia italiana e o futebol (e se não ouviu, ouça agora mesmo!), sabe do que estamos falando. A tese de que Bucci teria cometido suicídio é questionada por muitos, e o fato é que havia pessoas que desejavam que ele fechasse a boca.

Por enquanto, a versão oficial permanece: nem Grancini nem ninguém teve algo a ver com a morte de Bucci. Resta saber se a pressão popular para a reabertura das investigações surtirá efeito e se, caso isso ocorra, a sentença do famoso ultra juventino, atualmente preso, sofrerá algum aumento.

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Como já deixamos claro, nem sequer é necessário gostar de futebol para estar no comando de uma torcida organizada de prestígio na Itália. O caso de Giancarlo Lombardi, conhecido como “Sandokan”, nos mostra bem o porquê.

Sandokan nunca foi muito de frequentar o estádio, mas se tornou o líder dos “Guerrieri”, uma das principais organizadas do Milan. Já tinha condenações por assalto, agressão e tentativa de assassinato ao assumir o posto. Outro clube dos mais tradicionais da Itália, o rubro-negro de Milão é talvez o recordista de histórias escabrosas envolvendo sua torcida.

A escalada de Sandokan ao poder dentro dos ultras milanistas poderia ser o final de “O Poderoso Chefão”: uma guerra sangrenta contra rivais de outras facções, com mortes e explosões. Mas a polícia conhece a gravidade da situação.

Em 2018, 22 homens, entre eles Luca Lucci, um dos braços-direitos de Sandokan, foram presos em uma operação da polícia. Eles estavam em Sesto San Giovanni, cidade da região metropolitana de Milão, recebendo um carregamento de drogas que vinha da Albânia. Obviamente, o destino dessa carga era a revenda dentro da própria torcida do clube.

Luca Lucci com Matteo Salvini, líder da extrema-direita italiana.

Sandokan viu seu reinado chegar ao fim no comando da torcida do Milan recentemente. Isso porque ele era muito mais do que um homem violento que comandava uma organização criminosa no norte do país: foi preso por ter lavado um milhão de euros para o clã Fidanzati, de Palermo, um dos mais conhecidos da Cosa Nostra.

Mas casos como esse apenas reforçam que o que acontece dentro das torcidas italianas não é esporádico, mas sim estrutural.

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Falamos de Juventus, de Milan…e a Internazionale? A própria história do grupo de ultras Boys San, sempre presente nos jogos da equipe, já está ligada à máfia.

Um dos seus fundadores, Graziano Bruno Bianchi, foi preso em 2010, acusado de ligações com a Cosa Nostra: ele teria sido um dos responsáveis pela fuga do chefão mafioso Gaetano Fidanzati (o mesmo para quem Sandokan lavava dinheiro — aqui, a rivalidade não importa) da cadeia. Além disso, Bianchi tem na sua ficha corrida crimes como porte ilegal de armas e extorsão.

O curioso, no caso de Bianchi, é que ele tem um passado ligado à esquerda italiana: seu pai foi um partigiano, um guerrilheiro comunista que lutou pela libertação da Itália das mãos dos fascistas durante a Segunda Guerra Mundial. Ele próprio foi militante também do grupo terrorista de extrema-esquerda Colp (cuja sigla quer dizer “comunistas organizados pela libertação proletária”), entre o final dos anos 70 e início dos anos 80.

Mas o comando dos ultras da Inter atualmente pertence a Franchino Caravita, um amigo de Bianchi. Recentemente, no jogo entre Inter e Udinese (que terminou 1 a 0 para o time da casa), Caravita ficou furioso com a homenagem que parte dos ultras fizeram a Vittorio Boiocchi, um outro capo histórico do clube de Milão.

Boiocchi, como você já deve imaginar a essa altura, não é um santo. Ele havia acabado de sair da cadeia, tendo sido preso na década de 90 por tráfico de drogas e roubo, também com ligações profundas com a Cosa Nostra. Caravita, acostumado a ter os ultras da Inter todos em sua mão, se surpreendeu com o canto de alguns deles: “Vittorio, uno di noi”. Foi então que Caravita foi tirar satisfação com o próprio Boiocchi, e os dois acabaram se agredindo. Boiocchi se sentiu mal após a briga e foi parar no hospital.

Mas por que Caravita se incomodou tanto com o cântico em homenagem a outro torcedor? Além de uma óbvia disputa de espaço entre dois chefes, o medo é que o retorno de Boiocchi aos estádios acabe atiçando a ala dos ultras mais ligada ao crime e menos à torcida — e que, assim, eles possam dominar a Curva Nord do estádio San Siro.

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Todos os clubes italianos, daqueles que disputam competições europeias e têm salas de troféus repletas até os pequeninos, que engatinham em divisões inferiores, possuem organizações de “ultras”. Esses grupos são organizados por afinidade política e representam as cores do clube nos estádios, mas, como pudemos perceber pelos relatos acima, deixaram de ser simples manifestações de amor aos times há muito tempo.

O problema das torcidas organizadas nos estádios italianos hoje em dia é imenso. Além das ligações com a máfia, tema que exploramos nesse texto, o racismo nunca esteve tão em destaque. A Itália vive um turbulento momento político, bastante parecido com o Brasil, e a extrema direita se sente representada por aqueles que têm o poder.

Com ultras envolvidos com a máfia, racismo e xenofobia, os estádios italianos se tornaram um triste microcosmo do país, que também tem muitas coisas incríveis, mas infelizmente vem tomando caminhos nada positivos.

Esse texto é um complemento ao episódio do podcast Copa Além da Copa sobre as ligações entre máfia e futebol na Itália.

O Copa Além da Copa fala sobre futebol, história, política, arte e cultura. É feito por Carlos Massari e Aurélio Araújo. Siga-nos no Twitter: @copaalemdacopa, e ouça nossos podcasts, disponíveis no Spotify, Google Podcasts e diversos outros agregadores.

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Copa Além da Copa

Esporte, política, história, cultura e arte. Por Carlos Massari e Aurélio Araújo.