Cena única
Em um estúdio, sobre uma mesa de madeira uma bacia de vinho, alguns cálices, uma bandeja de frutas, pão e queijo. De um lado, atrás de microfones, sentam-se Sócrates e Trasímaco do outro, Timeu e Critias
SÓCRATES (entusiasmadamente) — Alô, mancebos! Está começando mais um episódio do DiaLógos, o podcast mais controverso das Élades, das raias de Ílion atea Tessália, se tem polêmica a gente tá no meio! Eu sou seu anfitrião, Sócrates…
TRASPIMACO — …. E eu sou Trasímaco. Depois do episódio da semana passada a gente caiu na boca do povo de novo, né não?
SÓCRATES (rindo) — Já tô me acostumando, mas não importa, a gente tá aqui pra incomodar mesmo. E quem conhece nosso trabalho já sabe, já entende isso.
TRASÍMACO — Aliás, queria mandar um salve aqui já pro Academos, sempre fortalecendo o programa e hoje mandou pra gente dois jarros de vinho e um bode pra cada convidado. Se você tem uma ideia de podcast, não sabe por onde começar, não tem a estrutura pra gravar, já sabe, só falar com o pessoal do Academos que eles realizam sua visão. Academos produção audiovisual, tamo junto.
SÓCRATES — Lembrando aí também pra quem chegou agora, você pode assinar o nosso canal, apoiar a gente tornando-se um membro. Nos mais variados níveis de contribuição, de iniciado a rei-filósofo, torne-se um amigo da sabedoria hoje mesmo, valeu.
TRASÍMACO — Mas chega de enrolar, porque hoje a gente tem aqui dois convidados especialíssimos (apontando), sejam muito bem-vindos Timeu e Crítias.
OS DOIS — Oba… E aí….
SÓCRATES — Timeu e Crítias que acabaram de voltar de viagem do Egito e hoje vão contar pra gente um pouco mais sobre como foi essa experiência. E já vou começar lançando uma difícil aqui hein, conta pra gente, Timeu, é verdade aquilo lá que o Heródoto fala das moças de Tebas?
(todos riem exageradamente)
TIMEU (visivelmente desconfortável) — Não, pô, que isso, nem sei…
CRÍTIAS — Já vai se complicar, ah lá.
SÓCRATES — É brincadeira, Timeu nunca foi desses que eu sei.
TRASÍMACO — Mas vamos lá, pra quem não conhece a história de vocês, fala aí um pouquinho, o que vocês foram fazer lá no Egito? Foi só turismo religioso mesmo?
CRPITIAS — Matemática, meu caso foi esse, logo que me formei aqui eu decidi ir pra lá estudar matemática.
TIMEU — Uhum, mesma coisa. E a gente tava até conversando aqui mais cedo, nenhum dos dois imaginava que ia acabar se envolvendo tanto e passando tanto tempo lá assim.
SÓCRATES — Se envolvendo, que você diz,, é no sentido político mesmo?
CRÍTIAS (confuso) — Hm não exatamente. Acho que sim, mas isso foi consequência…
SÓCRATES (interrompendo) — Porque assim, o Egito é um dos melhores exemplos de como a monarquia funciona bem na sociedade atual. Diferente do que muito se fala por aí nas assembleias de Atenas.
TRASÍMACO (olha de soslaio alarmado) — Calma, Sócrates. (serve mais uma taça de vinho pro filósofo)
SÓCRATES (ainda exaltado) — Mas é, Trasímaco. Você sabe que é assim e, enquanto a gente fica aqui com essa coisa de democracia, lá fora, no exterior, quem tá vivendo na monarquia prospera cada vez mais. Eu quero ver quando os Persas voltarem pra próxima guerra o que é que a gente vai fazer.
TIMEU — Os persas tão pra voltar?
SÓCRATES — Todo mundo sabe disso!
TRASÍMACO (tentando mudar o rumo da conversa) — E vocês chegaram a subir o Nilo até onde, rapazes?
CRÍTIAS (votando-se a Timeu) — Olha, eu não sei até onde você foi, mas eu fui ali até Luxor, Karnak….
TIMEU — … Eu queria ter chegado n Etiópia, mas não deu também, mal passei da divisa do baixo reino.
SÓCRATES — E como tava o clima?
CRÍTIAS — É meio difícil falar, não notei nada demais.
SÓCRATES — Nada fora do normal? E você, Timeu?
TIMEU — E, também não mel lembro de nada de extraordinário.
SO´CRATES (se virando para Trasímaco) — Tá vendo? Eu te falo bicho, não existe clima mais estável que o do Egito. E o povo por aí se alarmando todo com isso — (gesticulando espalhafatosamente) “Ah porque tá cada vez mais seco” — Tá seco, onde? Acorda.
TRASÍMACO — Melhor nem falar, última vez que ocamos no assunto já deu ruim. Não dá pra falar a palavra com D[1] aqui no youtube.
SÓCRATES (contrafeito, com a taça na mão) — É um absurdo.
TRASÍMACO (ignorando Sócrates e se dirigindo aos convidados) — Não tenho nem como fazer a ponte pra isso, então vou só laçar aqui e quero ver o que vocês dois têm pra falar do assunto: Atlântida!
(Sócrates se cala, todos se entreolham)
TRASÍMACO (visivelmente contente com sua performance bem-sucedida como apresentador e tranquilizado por ter mudado o foco da conversa) — É isso aí! (bate palma e olha pra câmera) Eu sei que vocês vieram só pra ouvir essa história. Já deu tempo de chegar todo mundo, já passamos das vinte mil visualizações aqui na transmissão (todos erguem as aças em sinal de aprovação), vamos lá, a hora é essas, quem começa?
SÓCRATES –Calma aí, calma. Antes da gente começar quero deixar aqui o agradecimento pra outro parceiro do programa: Um salve pra todo mundo la do Ginásio Polifemo! O Ginásio Polifemo oferece aulas de atletismo, pugilismo e luta olímpica. Ginásio Polifemo é a casa do atleta!
TRASÍMACO (segurando um pote de suplemento em que se lê DIETA ESPARTANA, em letras garrafais) — E o Diomedes, dono do ginásio, mandou aqui pra gente uma prova exclusiva do novo suplemento esportivo deles. O segredo por trás ad força homérica dos filhos de Ares, a sopa preta espartana agora está ao seu alcance. Isso aqui ó (mostrando aos convidados) concentra todo o poder do sangue e da carne de porco, mais os benefícios de uma mistura secreta de ervas aromáticas, que só o Diomedes tem a receita. E o melhor, o preparo é super rápido, fácil. Valeu, Ginásio Polifemo.
SÓCRATES — Mas fala aí, Crítias, que negócio é esse de Atlântida?
CRÍTIAS — O Timeu me corrija aqui se eu falar bobagem, mas basicamente é o seguinte: Imagina que lá pra além do mundo conhecido, em alguma altura do oceano Atlântico, existe uma outra terra.
TRASÍMACO — Outro país, então?
TIMEU — Isso. Todo um outro reino em uma ilha.
SÓCRATES — E o governo dessa ilha? Como é?
TRASÍMACO — Calma, Sócrates. Vamos por partes aqui. Os egípcios conhecem esse lugar aí, Cítias?
CRÍTIAS — Então, aí é que tá. Esse lugar já não existe mais, é coisa antiga, virou lenda.
TIMEU — Isso aí é coisa que o pessoal de lá mesmo fala que é história de outras épocas.
TRASÍMACO — Então, os egípcios nem chegaram a ir até lá.
TIMEU — Isso não, mas tem quem fale que o contrário rolou e foi assim que a história chegou o Egito.
SÓCRATES — isso me lembra algo que o Pitágoras falava. Mas continua aí.
CRÍTIAS — A ilha era dividida, governada por dez pares de gêmeos…
SÓCRATES — Reis?
CRÍTIAS — …. Isso, reis. Filhos de Poseidon.
TRASÍMACO — Como assim Poseidon? No Egito?
SÓCRATES (levantando a voz, já um pouco entorpecido e emendando uma palavra na outra) — Mas isso aí todo mundo já sabe, que esses deuses daqui vieram tudo de lá. E Zeus, então? Mesma coisa.
TRASÍMACO — Não fala um negócio desses aqui, Sócrates.
SÓCRATES (visivelmente alterado) — Falo, e falo mesmo, porque tem que ser dito
CRÍTIAS — Enfim, foi só oque me contaram, não queria causar nada aqui.
TRASÍMACO — Tá tranquilo, ele é assim mesmo, pode continuar.
TIMEU — E era uma ilha redonda, né?
(olha para Crítias, que concorda)
Por um bom tempo tudo correu bem, pelo menos na primeira geração de reis, eu acho.
CRÍTIAS — Aí fica um pouco confuso, começa a misturar desastre natural, disputa entre os herdeiros. Uma bagunça.
(Sócrates se contorce, faz uma careta e resmunga algo inaudível)
TIMEU — No fim, a ilha toda afunda. Desaparece da noite pro dia.
TRASÍMACO — Então, chance nenhuma de visitar esse lugar mais? É isso?
TIMEU — Nenhuma.
CRÍTIAS — Ninguém nem sabe onde exatamente ela ficava. Sobrou só a história.,
SÓCRATES — Mas agora a pouco você falou que os egípcios não chegaram a ir pra lá, mas que o contrário já aconteceu. Como pode isso?
TIMEU — Então, não dá pra confirmar nada. É só mais história, mas tem quem diga que teve uma época que os Atlantes chegaram a fazer comércio com o Egito.
CRÍTIAS — E até mais além, que na época que a ilha desapareceu, os Atlantes que andavam pra cá pra esses lados ficaram sem ter pra onde voltar e acabaram por aqui.
SÓCRATES — e disso as histórias de deuses antigos chegam até a gente. Tá vendo? Chega a ser óbvio.
TRASÍMACO — Mas essa história tem um furo, como que os filhos de Poseidon iram acabar logo afundando, entre todas as calamidades possíveis? Pelo menos disso eles deviam estar protegidos.
TIMEU — Desonra…
CRÍTIAS — … é, o próprio deus se aborreceu com o declínio dos descendentes dos seus filhos.
SÓCRATES — Pelo menos não foi a democracia que afundou eles,
TRASÍMACO –Sócrates, chega de vinho por hoje.
SÓCRATES (tomando a taça para junto de si, para evitar que Trasímaco a pegue) — Ah, agora essa! Todo mundo sabe que é você que não aguenta a bebida!
(os convidados se entreolham constrangidos)
Deixa eu perguntar uma coisa aqui, e como era a filosofia deles? Lá em Atlântida.
CRÍTIAS — Até onde eu sei, não tinha filosofia.
TIMEU — Também não ouvi falar disso.
SÓCRATES — Viram! Fácil de entender, é pura lógica.
TRASÍMACO — Entender o quê?
SÓCRATES (inclinando-se para frente, notavelmente divertindo-se) — Me fala Timeu, entre todos os homens gregos, qual é o consenso sobre a forma de governo mais elevada?
TIMEU (pego de surpresa, tentando articular algo) — Isso depende, já vi gente falando de aristocracia, democracia, monarquia. O pessoal de Creta mesmo, esses tempos…
SÓCRATES (interrompendo) — Exato, monarquia! Mas como a forma mais nobre de governo, que coloca o melhor entre o povo para reger o território, pode falhar? Não parece contraditório.
TIMEU (enfadado) — Sim, parece, Sócrates.
SÓCRATES — E você, Crítias, não acha que seria natural que essa forma de governo fosse a mais duradoura e benéfica para a cidade?
CRÍTIAS — Talvez sim, eu acho…
TRASÍMACO — Mas frequentemente um rei se torna um tirano, Sócrates.
(dirige-se aos convidados, tentando interromper o assunto)
Diz que a época da cheia no vale dos reis é uma beleza, né Crítias?
SÓCRATES (antes que Crítias responda, ignorando completamente) — Nesse caso, os descendentes dos reis não foram capazes de reproduzir o que fora bem sucedido no período de governo de seus antepassados. E sabe porquê?
(ninguém responde, ele continua)
Porque a Verdade foi esquecida! (uma veia salta em sua têmpora, enquanto ele bate com os dois punhos na mesa)
TRASÍMACO — Cara, mas é natural, as coisas se corrompem com o tempo.
SÓCRATES — Natural, você diz? Pode até ser, mas é inevitável?
TRASÍMACO — Se é natural, deve ser inevitável.
SÓCRATES — Também se diz que é natural adoecer, mas nem por causa disso um homem abstém de tomar remédios. E os médicos não param de receitar prevenções para as doenças também.
TRASÍMACO — Mas não é a mesma coisa, também….
SÓCRATES — A doença não é a corrupção da saúde? Portanto, de acordo com suas próprias palavras, uma ocorrência natural que vem para causar o declínio do bem-estar físico?
TRASÍMACO — Quando você coloca assim, sim…
SÓCRATES — Pronto! Então é legítimo procurar remédios e medidas preventivas contra a corrupção do corpo político, tanto quanto se faz para o corpo físico.
(olha para os convidados, ansioso para que alguém lhe pergunte como)
TIMEU (sem notar que caía na artimanha retórica socrática) — Mas Sócrates, qual seria o remédio capaz de salvar toda uma ilha?
SÓCRATES — A Verdade! Sempre ela! Se esses reis, descendentes de semideuses fossem filósofos, nada disso teria acontecido.
CRÍTIAS — Isso é idealismo, não tem um único exemplo histórico de algo assim acontecendo na prática.
SÓCRATES (gritando) — Realismo! Realismo puro! É por causa de gente igual a você que Atenas tá do jeito que tá. Atenas tá afundando! Tá afundando! Cês tão na caverna! Sai da caverna, porra!
(Alcebíades entra correndo, puxa Sócrates pelo braço, que resiste e ainda grita “Sai da caverna!”, mas se deixa levar. Trasímaco sorri completamente constrangido)
TRASÍMACO (envergonhado) — Chega d política né gente.
(voltando-se para Timeu)
Você que é um cara que gosta de gato, ouvi falar que lá no Egito eles literalmente adoram gato, conta um pouco mais sobre isso aí.
[1] Desertificação.