A Porta do Inferno e a temporalidade

Cristiane Marçal
3 min readApr 4, 2017

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A Porta do Inferno, obra de Rodin iniciada em 1880 e concluída em 1917, iniciou uma importante mudança na noção de escultura ao incluir o elemento temporalidade na obra de matéria inerte. Encomendada como um ciclo de ilustrações da Divina Comédia, de Dante, A Porta do Inferno é um relevo, uma decoração esculpida para um conjunto de postar que serviriam de entrada a um futuro museu. Porém, ao longo dos 37 anos em que Rodin produziu a obra, as figuras esculpidas começaram a ilustrar uma narrativa autônoma, que se distanciava cada vez mais texto que, em princípio, deveriam ilustrar.

No século XX, Michael Fried publicou um texto que reforçou a ideia de que a escultura só pode ser entendida como escultura quando esta for composta de matéria inerte, como caráter contemplativo e uma proposta que mantenha o espectador no presente. Seguidor da teoria formalista de Greenberg, Fried defende a “pureza” da obra artística, a obrigatoriedade de a arte seguir critérios pré-determinados que enquadram a obra numa linguagem, e somente em UMA linguagem. Fried chamava pejorativamente a incorporação de outros elementos que não os da escultura de “teatralidade”. A temporalidade representada, independente da forma, em uma determinada obra descaracteriza a mesma como escultura e se o artista pretende fazer daquela determinada obra uma escultura, é necessário combater o que existe de excesso, aquilo que não pertence a linguagem da escultura, aquilo que está atrapalhando a “pureza” da linguagem, aquilo que Fried chama de teatralidade.

Voltando à obra de Rodin e considerando a percepção de Rosalind Krauss, é possível perceber, já na terceira maquete, que o trabalho estava imbuído de um fluxo de tempo sequencial. Segundo Krauss, algumas divisões entre os paineis isolados foram suprimidas praticamente por completo, ao passo que um grande ícone estático foi implantado no meio do espaço dramático. A versão final da obra resiste a todas as tentativas de ser compreendida como narrativa coerente. Somente duas figuras remetem à ideia inicial de ilustrar A Divina Comédia.

Em sintonia com outras teorias que falavam sobre a dissolução de fronteiras simbólicas, como a pós-modernidade, o fim da história da arte e a emancipação do espectador, a incorporação da temporalidade nas obras de material inerte tomou corpo e foi além da presença da narrativa no conteúdo da obra, envolvendo o rompimento da própria inércia da matéria, se apropriando de outras linguagens artísticas. Podemos usar como exemplo a obra Egomáquina, que foi exposta em São Paulo e Porto Alegre entre os anos de 2014 e 2015. Os artistas da obra vem de diferentes linguagens artísticas — Pedro Harres é cineasta, João de Ricardo é diretor de teatro e Otávio Donasci é artista plástico. A obra é uma instalação que consiste em uma estrutura de ferro, em formato oval que mantém suspenso alguns monitores e um controle pendurado por um fio, no centro da estrutura, ao alcance do público. Para que a obra “aconteça” o espectador precisa entrar dentro da estrutura e apertar qualquer tecla do controle suspenso. Ao fazer isso, os monitores aparecem fazendo perguntas ao espectador. “O que você está fazendo?”, “onde você errou?” e “por que você está aqui?” são algumas das questões lançadas ao público que tiram o espectador da postura passiva da contemplação e incitando nele memórias que, quando acionadas, fazem da narrativa de suas memórias uma parte da narrativa da obra.

A Porta do Inferno é despojada simultaneamente do espaço e do tempo que serviriam de suporte para o desenrolar de uma narrativa. O espaço na obra é congelado e imobilizado; a relações temporais são conduzidas em direção a uma ausência de clareza abrindo lacunas narrativas que podem ser preenchidas pelo próprio espectador. O deslocamento do caráter contemplativo, o uso de materiais potencialmente cinéticos e a apropriação de uma narrativa foram além da proposta que A Porta do Inferno iniciou.

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