O luto como um fantasma em A Ghost Story

Cristiano Contreiras
4 min readFeb 5, 2019

Como a frase que abre o filme, trecho de Uma Casa Assombrada, de Virgínia Woolf – “Como um novo despertar, a cada momento que acordasse, uma porta se fechava” -, temos um trabalho experimental e dotado de subjetividade que recorre à filosofia. David Lowery não só reafirma as indagações sobre a existência, mas, recria um conto sobre a transcendência espiritual – e expõe as indisposições sobre o luto.

Como permanecer ao lado de alguém mesmo após a “morte física”? Remove-se as vestes físicas e ecoamos através do infinito? Algumas perguntas são possíveis enquanto conferimos as divagações na narrativa.

O processo do luto coloca os personagens à deriva do tempo e espaço. Não à toa que a sequência de mais de cinco minutos, em que a personagem da Rooney Mara come uma torta, é uma maneira de mostrar como alguém permanece debilitado psico e fisicamente, após a perda de um ente querido. A câmera segue o fluxo do momento, não há cortes e cria a sensação incômoda: alguém que “mastiga” a própria solidão.

Os protagonistas não ganham respostas fáceis. Tanto ela quanto ele são personagens sem nome – apenas, as letras iniciais, “C” e “M”, que não refletem a ideia do registro ideológico ou identidade física de um indivíduo. Para Lowery não há espaço para nomes próprios: mas sim, para o que transcende além deste senso.

Um filme que versa sobre os fantasmas do luto. E sobre o estar presente, mesmo que distante do que é considerado físico. É alguém que perde um outrem e permanece sozinha. É o outro que, mesmo fora do plano terrestre, se fixa na observação da vida que não mais pode viver. Casey Affleck é o moribundo que vaga além do tempo: à espreita, fora da linha temporal e além da própria linha cósmica diante da amada. Vagueia, solitário, numa espécie de plano extra-sensorial ou limbo existencial.

O olhar do indivíduo que desencarna e passa a agir como alguém que perscruta um ente querido, na observação do foco de apego/sentimento. O homem que não consegue abandonar a casa em que habitava, nem a mulher que nutriu o afeto. Então, se condiciona ao seu lado. Lowery exibe esse elo “invisível” entre o terreno e o sobrenatural também – a ideia de um espírito que mantém a atenção e zelo para a figura “viva” que deixou na Terra.

Essa noção de morte surge representada na aparência, os signos são evidentes em cena, como a manta branca e os dois furos nos olhos, reafirmando o aspecto do signo padrão de um “fantasma”. Não vemos seus olhos, o que é irônico, pois são através deles que poderíamos ver a emoção brotar.

O uso de elipses para fundamentar a narração – o vai-vem do tempo indefinido, sem um elo de “presente e passado” marcados, para exibir este ser que orbita livre das amarras do plano terrestre, e fragmentado além da existência. Há silêncios que dizem mais que diálogos extensos – por isso, o uso da comunicação surge do imagético: poucas falas em cena, um roteiro que traça a filosofia da subjetividade.

Há uma aproximação com o senso estilístico de Terrence Malick, ao inserir imagens de galáxias ou mesmo takes que contemplam a natureza – o momento em que o fantasma retorna, andando, em um campo aberto, com o nascer do sol ao fundo, parece uma cena onírica de tão plástico. São efeitos visuais que fecundam a narrativa e providenciam seu caráter simbólico também.

O formato de tela quadrado com “pontas arredondadas” também encontra, em seu recurso, a ideia da visão do fantasma em si: a visão de olhos estreitados por dois furos em um lençol que serve de carapuça para sua existência; a mortalha sombria de um mundo no qual ele divaga e permanece como poeira, condenado à vastidão do nada. E, aliás, o formato de tela quadrada, também parece “oprimir” aqueles personagens em suas ações.

David Lowery cria um universo minimalista e delicado, é metafísico e atmosférico. Acima de tudo, sombrio por expor as dores de como o ser humano pode se manter além do tempo e da organização social, no plano infinito sem pretendentes – sem linhas temporais definidas, sem limites, é um conjunto só.

Tal qual o fantasma que espreita e vivência a sua própria solidão, em dado momento visualizamos um outro semelhante, numa outra casa, à janela: outro ser que vagueia e permanece à sombra da própria noção cósmica e sobrenatural; caminha no véu do invisível, em busca do ente físico que se foi. É como permanecemos na sociedade, necessitando do acolhimento do outro para continuarmos nos sentindo vivo – no temor de nos consolidarmos solitários por medo de não vencer, sob a teia da crueldade terrena.

Somos pequenos diante das incógnitas do espaço existencial. O que é preciso pra não ser esquecido no limbo da invisibilidade? Chegamos ao ponto que percebemos quão efêmeros somos. E a certeza: a nossa brevidade é capaz de ser um tormento constante. Sim, não é fácil perceber o vazio da solidão. O véu entre o plano terreno e além do tempo são elementos que jamais serão tabulados…

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Cristiano Contreiras

Idiossincrasias, vômitos e desabafos do último sentimental (ou não).