Cristina Hélcias
4 min readJul 23, 2017

Enquanto ela está aqui

Crônicas caninas: uma vida extraordinária de cão

Enquanto ela está aqui, fazendo-me companhia com seu ronco manso, tomando banho de sol ao som do meu teclar, vou sentar no chão, ao seu lado, e acarinhar seu rabo enroscado; vou olhar nos seus olhos castanhos e com a voz que aprendeu a amar, dizer: está tudo bem.

O bem e o bom são meus desejos para ela. Dona de tantas fazeções, é a porta bandeira das alegrias simples, a enchedora contumaz de vida, a vivedora contundente do agora. Só do agora.

“Hei, está bonito lá fora, vamos passear?”

“Psiu, que tal jogarmos uma partida de bicho de pelúcia? Voce lança e eu pego!”

Houve quem questionasse.

“Trabalha o dia inteiro, viaja muito, mora num apartamento pequeno, que loucura ter um cachorro!”

Felizmente, já era tarde para sanidade. Ela, enrugada, na pequenice de seus quarenta dias, estava em minhas mãos. E a adulta trabalhadora e festeira, no exato ano em que saiu da casa dos 20 e entrou na dos 30, abriu espaço no coração da criança outrora sida, aquela, ainda na casa dos 10, abriu e a deixou entrar.

Lá ela fez toca e não saiu mais, há tanto tempo, que o cumular do presente — ou de presente? — por ela trazido, apagou da memória como era a vida sem essa graça de bicho. Como era? Não lembro.

Em certa época, ela comeu a casa inteira, com sua fome de filhote entediada. Paciência foi a recomendação do veterinário. Entendi a tê-la, a tal da paciência. E no tempo em que crescia e roía o que encontrava, foram inúmeros os pares de sapatos perdidos, especialmente os de salto. Ela não gostava de salto, sabia ser inútil para os passeios. Já os tênis, eram os seus favoritos. Esses não comia. Bastava pô-los e na porta já estava, fosse antes do meio-dia ou já passasse, vez ou outra, bem muito, da meia-noite.

Cúmplice dos mais divertidos casos; álibi de uma história de amor, quem a conhece ama; mas amor mesmo estava para chegar quando aquela mala teimou sempre em voltar. Na temporada, a diversão era roubar as meias dos hóspedes. Ela se deitava na porta do quarto e ficava à espreita. Fingindo cara de bem comportada, esperava pelo momento em que a vítima, desavisada, sacasse o objeto de seu desejo e, no primeiro descuido, ia lá e abocanhava. Com ele não foi diferente. Aliás, foi pior. Roubou e rosnou, recusando-se a devolvê-las.

Ela ainda não sabia que faríamos família com o dono da meia e mudaríamos um muito de vezes, trocando sua vida urbana, sem nunca ter visto um gato — “ah, os gatos!; pena que não são nada, quando comparados aos esquilos, muito mais interessantes; e ao cheiro dos javalis, ou ao pular dos alces; isso sem falar nos coelhos…” -, pelo mundo inteirinho, um mundão todinho para ela.

E foi assim que ela correu com leões na África do Sul; conheceu o tenebroso homem das neves na Suíça; cavalgou com cowboys no Texas; e agora caça vampiros na Romênia.

Nessas muitas mudanças, perdi a conta de quantas crianças precisei contrariar, negando que ela fosse um ursinho ou filhote de hipopótamo. Garantia se tratar de um cachorro, mas, eles, desconfiados, pouco acreditavam. Contas também foram perdidas das interrupções em nossos passeios, centenas, para posar para fotos de estranhos.

Onde ela chega, é estrela, ganhando a amizade do quarteirão. E por ela eu rosno, mostro os dentes e assento guarda. Do mesmo jeito leal que ela faria por mim. Já o fiz muitas vezes e sigo pronta para fazê-lo outras tantas, num tempo de gente ainda perdida no conceito de entender o diverso. Bicho merece respeito; merece cuidado; consideração. Eles não são inferiores. São apenas diferentes. E é no meio dessa cretinice, tão humana, de alguns, que não nego: bicho é melhor do que muita gente.

Mas, voltando lá atrás, ao momento em que a filhote marrom da ninhada se aninhou em minhas mãos, não imaginava ter-lhe o destino reservado uma vida extraordinária de cão. Ela se adaptou a todas as situações e lugares, sob a única condição de estar conosco. Assim a serenidade voltava. Hoje, somos nós quem nos adaptamos às necessidade de uma rara shar-pei idosa — pela baixa expectativa de vida da raça -, no pôr-do-sol dos seus 12 anos.

Há seis meses, Vitória foi diagnosticada com câncer de pele. Acerca de um mês, o ritmo dela começou a diminuir e a doença, a progredir. Não perguntei ao veterinário quanto tempo ela tem. A gente vai remediando o que pode ser remendado, oferecendo o conforto e o alívio possíveis, quando se lida com doença tão cruel.

Só me pergunto, vez ou outra, como será a vida sem ela. Essa vida apagada da lembrança; sem a graça DESSE bicho. Ela fica brava com a minha pergunta. Lambe a ferida, fazendo pouco caso da doença; fuça a gamela, em busca de mais comida; olha pela varanda, à procura de gatos; fecha os olhos, provavelmente com preguiça de mim — “Tantos anos e você não entendeu nada!”

Eu sei, Vick. Temos uma à outra; agora. É o que importa, não é mesmo? Este saber canino diminui o difícil, confesso, embora seja difícil para um humano compreendê-lo. Lembra quando você comia a casa? Pois é, agora é a sua vez de ter paciência.

Mas, falando no agora, vamos deixar de conversa. Vem aqui; vem me fazer um carinho aonde gosto; senta no chão ao meu lado, olha nos meus olhos castanhos e me deixa ouvir a voz que aprendi a amar. Essa voz pressentida, há 12 anos me fala: está tudo bem.

Cristina Hélcias

Relatos de uma vida pelo mundo e pitacos de uma personal stylist .