Revelações musicais em duas histórias

Angelo Dias
5 min readNov 6, 2016

As histórias abaixo são completamente baseadas em minha memória então não espere completa verossimilhança. A memória prega altas peças na gente.

O tocador de som

Eu escutava muita música quando adolescente. Tinha um fone de ouvido vagabundo que, ligado ao computador, me desligava do mundo. Lá podia ouvir todos os ‘metal do mal’ que eu quisesse sem que ninguém enchesse meu saco, e também podia escutar músicas que, na época, me envergonhavam. Como eu era idiota.

Estudava em uma escola de gente ch(ata)ique. Já tinha colegas de sala com iPod não-sei-qual geração. Eu ainda queimava CDs com as músicas baixadas ilegalmente.

Pausa: faço aniversário em fevereiro, perto o bastante do natal para fazer trâmites comerciais elevadíssimos pra um moleque de, sei lá, 15 anos. Como um exemplar de criança branca de classe média, podia negociar para ganhar um só presentão no natal e não ganhar nada no aniversário.

Naquele dia 25 de dezembro abri meu presente. Um belíssimo tocador de CDs portátil, vulgo discman — não o original, da Sony, mas um aparelho que aceitava discos de MP3 e o CD não pulava.

Fiquei extasiado.

Minha memória diz que esse era o modelo e, ao mesmo tempo, acha que não era.

Uma festa de família ocorria no sítio onde morava. Peguei minha bicicleta, coloquei o discman na cintura — mais style, impossível — e saí pedalando em círculos em volta da casa, ignorando parentes, olhares, fofocas. Fazia questão de passar sobre os buracos, irregularidades, caminhos de concreto e pedras.

O-DISCO-NÃO-PULAVA.

Entenda minha revelação: eu estava na festa da minha família, majoritariamente composta de evangélicos, escutando músicas sobre assassinato e sangue. Sem. Ninguém. Saber. Havia alcançado a liberdade auricular em 700mb de músicas em arquivos de áudio de baixa qualidade.

O disco surpresa

Após a escola, havia um único ônibus. Ele me levava da rodoviária de minha cidade até a porta do sítio em que morava. Saía em intervalos de 60 minutos, ou seja, perder a hora do ônibus era desperdiçar uma hora de vida.

Em um dia desses, fui esperar o ônibus. À frente do ponto, uma loja de várias coisas: eletrônicos, cabos, instrumentos musicais e CDs. Vários CDs.

Estava ali esperando o próximo transporte e, bem, não ia perder nada se fosse folhear os discos. Não queria comprar nada. Nunca havia comprado um disco na vida e a primeira vez não seria ali, na lojinha da rodô.

Vi capas de discos de artistas que eu conhecia e de outros que nunca havia ouvido falar. Vi encartes familiares — meu pai colecionava CDs e vinis. Vi outros com zero apelo para qualquer um de minha idade.

Até que vi uma capa que, sei lá, me chamou a atenção. Eu não faço a menor ideia do porquê, só sei que chamou. Sério, esse texto não é sobre as maravilhas do marketing dos discos nos anos 2000, é sobre comprar um CD sem fazer a menor ideia do que estava levando pra casa e qual a probabilidade disso dar certo. Ops, spoilers.

Peguei o disco, o virei e li a lista das músicas. O que elas me disseram? Lhufas. Mas algo — chame de divino, esotérico, espiritual, chame do que quiser — me fez querer muito comprar aquilo. Não senti essa coisa com o disco da Sula Miranda ali do lado. Não senti isso com o Metallica que estava por ali.

Tinha 20 reais no bolso — todas as minhas economias. O disco custava 20 reais. Fui até o caixa e negociei com a vendedora, pedi um descontinho, disse que precisava pegar o ônibus. Supondo que a passagem custava R$ 2,50 na época, foi esse o exato valor que ela me deu de troco.

Era divino, só podia ser. Comprei o disco sem saber do que se tratava e ainda ganhei o dinheiro da passagem.

O ônibus levava 30 minutos da rodoviária até minha casa. Entrei, paguei e sentei. Abri o plástico, abri a caixa e peguei o disco.

Aquele sentimento de liberdade musical — sabe, o do discman na festa da família? — voltou em uma porrada absurda. Havia comprado o disco High Times, do Jamiroquai, sem fazer a mínima ideia do que ele se tratava.

O gênero musical não é dos meus. Nunca havia ouvido falar em Jamiroquai. Não conhecia nenhuma daquelas músicas.

Meus pais me instruíram no rock, com boas doses de Queen, Beatles e Rolling Stones. Havia um Iron Maiden eventual (meu pai tinha o disco deles com a melhor capa: Powerslave). Jamiroquai ou algo parecido? Nunca.

Não tenho explicação de como foi o sentimento nem quero chegar nisso. O importante aqui é a matemática da coisa. Qual a probabilidade de uma pessoa entrar em uma loja de discos, escolher um deles a esmo e acertar absolutamente em cheio? Já estava cansado de metal, queria ouvir algo diferente, algo com mais alma, algo mais… dançante.

Fui batendo cabeça a viagem toda. Escutei metade do disco durante a viagem e, diferente do comum, não tirei os fones ao chegar em casa. Foi Jamiroquai por dias. Dancei no chuveiro, no quarto, na escola, no ônibus, na vida.

E, o mais importante de toda a jornada: descobri que meus longos cabelos e roupas pretas não limitavam meus gostos. Não posso dizer que foi minha primeira revelação musical — elas aconteceram algumas vezes, seja com o primeiro disco do Linkin Park (o primeiro rock em casa que não era do meu pai) ou o primeiro show do Glass (banda do primo da primeira namorada que tocava Interpol, Bloc Party, Queens of the Stone Age e outras maravilhas).

A diferença é que Linkin Park foi influência dos amigos da escola. O metal foi influência dos amigos da nova cidade. Interpol foi influência dos amigos da adolescência.

Jamiroquai foi uma influência de quem? Só pode ser influência cósmica.

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Angelo Dias

Designer e escritor. Edito e escrevo um jornal de ficção especulativa em www.temposfantasticos.com. Conheça meu trabalho em www.angelodias.com.br