Os Amaldiçoados- Parte 3

Caio Machado.
8 min readMar 9, 2020

--

Lana e Gabriela, antes

Caso você esteja procurando pela segunda parte, clique aqui.

A música estava muito alta. Alta a tal ponto que era impossível dizer alguma coisa para alguém sem berrar. Porém, estava tudo bem. Aquele lugar era feito para isso. Ouvir música alta e dançar até suas pernas fraquejarem ou o sol nascer, vence quem chegar primeiro.

Na pista, pessoas alegres e outras sob efeitos de substâncias ilícitas pulavam e dançavam tentando encaixar algum movimento bonito de se observar. A maioria delas só parecia bonecos de posto incrivelmente malucos, mas simplesmente não se importavam.

Luzes coloridas piscavam e circulavam a pista. Num lugar daquele tamanho, não iluminavam muita coisa.

Casais se aproveitavam da escuridão para fazer o que bem entendessem.

Sentada num dos bancos e apoiada no balcão do bar, estava Ilana. Branca como a lua. “Branca como papel sulfite”, como diziam os amigos dela naquela época. O cabelo, de um azul intenso, estava na altura dos ombros. Ela nem pensava na ideia de deixá-lo crescer.

Em sua mão, havia um copo de vodka pura.

Quando pedira ao barman-um homem musculoso e com um rosto semelhante à mil outros rapazes que a observavam de relance na academia-, ele fez uma cara de espanto. Os olhos arregalados, sobrancelhas levantadas.

-Que foi, eu não tenho cara de quem bebe vodka?-provocou ela.

Ele se desculpou com um sorrisinho envergonhado que mostrava seus dentes ridiculamente brancos. Ela pensou em quanto ele gastara para chegar naquele resultado. Quase um príncipe de contos de fadas.

Ele pôs o copo no balcão e o encheu até menos da metade.

-Não, enche mais.

Ele encheu o copo até onde ela disse “chega”. Isso era, precisamente, quando o copo estava quase cheio.

-Vou precisar ligar pro táxi?- ele perguntou, um pouco preocupado. Os braços, bem definidos, estavam cruzados.

-Não, fica tranquilo. Eu nunca tomo tudo isso.

Na verdade, ela tomava sim. Só esperaria o príncipe encantado virar as costas.

No momento em que ele finalmente virou, ela deu três goles fartos. Faltava só um restinho da bebida no copo e decidiu deixar para depois. Estava um pouquinho zonza. Se fosse uma outra pessoa que não ela, há três centenas de anos acostumada com álcool, estaria vomitando no chão tal como um hidrante alimentício e desgovernado. Ela estava bem, mas se levantar do banco seria um risco que não estava disposta a tomar.

Do seu lugar sempre amado e querido, observou o lugar.

Num sofá azul escuro ali perto, um jovem estava completamente desacordado- a cabeça pendia para trás, os olhos fechados apontando para cima. As pernas e braços completamente molengas denunciavam o quanto seres humanos são frágeis.

Ilana tentava afastar esse pensamento sempre que aparecia. Apesar de ser um pouquinho diferente em relação aos outros devido à um comerciante espanhol atrevido, ela também era o mesmo saco de ossos e líquidos que poderiam estourar a qualquer momento. Ela também era frágil.

Num canto escuro, um homem e uma mulher com vestido curto trabalhavam. Aparentemente, o homem, com seu cabelo longo e liso, havia ido longe demais com as mãos; tomou um tapa tão forte que arderia por uma semana no mínimo. A mulher saiu em direção à multidão, abandonando-o.

Ilana riu baixinho. “Bem feito”, pensou.

Na área onde ficavam as mesas, onde pessoas iam para se sentar e respirar com calma, três rapazes engravatados conversavam energicamente. Um deles gesticulava e seu rosto estava vermelho. “Vai ver é o cérebro que tá fritando”, pensou ela.

O outro ajeitava o cabelo, que caía sobre o olho esquerdo. A mecha não parou quieta e voltou a incomodar.

O terceiro, careca e com um cavanhaque, estava com um dos braços apoiados sobre o banco e observava o ambiente ao redor. Parecia entediado. Não prestava a mínima atenção no que o amigo (ou colega) estava falando.

Do outro lado do bar, havia uma mulher linda.

Ela usava um vestido ciano. Parecia que tinha acabado de sair da própria formatura e ido para lá. A maquiagem em seu rosto era suave, sem o exagero que costumava ver em outras pessoas, e destacava-a perante a multidão. Ela usava uma sombra laranja ao redor dos olhos. O cabelo, era loiro e curto.

Ilana não percebera, mas estava observando-a há tempo demais.

Em certo momento, a debutante que parecia ser de outro planeta olhou para ela de volta.

Ilana desviou rapidamente e passou a observar uma garrafa de tequila que estava ao seu lado. Pegou-a na mão e percebeu o quanto aquele rótulo era interessante.

Depois de passar tamanha vergonha, ela queria sumir da face da Terra.

Porém, era muito difícil não olhar para ela.

Estava ao lado de duas amigas, uma à esquerda e outra à direita. A da direita tinha cabelo loiro longo e braços que anunciavam que a academia estava fazendo efeito. Tinha os olhos um pouco caídos, de um jeito que podia dar a impressão de desinteresse a quem não a conhecesse.

À esquerda, havia uma mulher com nariz fino e empinado. O vestido dela, em especial, tinha brilho. Qualquer um que o olhasse por mais que alguns segundos ficaria com dores de cabeça. O cabelo era moreno e tão escuro que parecia absorver toda e qualquer luz que ameaçasse rodeá-la. Se alguém a olhasse de costas, diria que seu cabelo tinha o formato de uma maçã e combinava muito bem com ela. Ninguém dizia isso pois ela não era muito boa em receber elogios.

A mulher da sombra laranja alternava o olhar entre uma e outra, sempre com um sorriso radiante. Era lindo o quanto ela demonstrava interesse pelo que as amigas estavam falando.

Ilana tinha a leve intuição de que a mulher misteriosa a observava em intervalos curtos, quase imperceptíveis. Fazia assim: olhava a amiga loira bem nos olhos e assentia para tudo que ela falava, movia a cabeça um pouquinho para ver- de canto de olho- o que Ilana estava fazendo e olhava para a amiga morena. Também assentia alegremente e, de tempos em tempos, ria.

Ilana, tímida, não sabia direito o que fazer. De repente, sentia-se incomodada com as próprias mãos- também brancas, dedos longos e a palma áspera como uma lixa- e não sabia o que fazer com elas. Escondê-las seria uma boa alternativa, então colocou-as para dentro dos bolsos da calça.

-Ei, bonitão.- chamou ela.

Ela teve que chamar mais uma vez para que o barman a ouvisse.

Ele olhou para ela com o mesmo sorrisinho de antes e apoiou seus cotovelos no balcão.

-Fala.- disse ele.

-Vê uma caipirinha de maracujá pra mim, por favor

Ele assentiu e fez a bebida bem na sua frente, numa velocidade que só podia ter sido adquirida depois de muitos anos de prática. Colocou um pequeno guarda-chuva amarelo na beirada do copo, para decorar.

Ela pegou o copo e deu um gole longo.

-Posso te perguntar um negócio?- falou o príncipe encantado, deixando implícito que ele perguntaria quer ela quisesse ou não.

-Pode falar.

-Por que você tá escondendo as mãos?

-Porque eu tô com vergonha.

-Vergonha do quê?

Ilana levantou as sobrancelhas e apontou com a cabeça até onde a mulher do vestido ciano estava, do outro lado do bar. Ela continuava lá, conversando com as mesmas pessoas e do mesmo jeitinho adorável.

O príncipe encantado olhou para ela rapidamente e depois para Ilana. Sua boca estava aberta. Surpresa!

Em todo aquele tempo frequentando o bar, vendo o mesmo barman, aquele era o momento mais desconfortável pelo qual estava passando.

Ela queria sumir.

Ele se inclinou para perto dela e disse, sussurrando em seu ouvido:

-Quer que eu fale com ela?

Ilana chacoalhou a cabeça rapidamente, negando como se ele estivesse perguntando se ela queria assassinar o filhotinho de cachorro mais fofo do mundo.

-Ok, entendi o errado.- confirmou ele, a voz ainda baixa e os olhos claros encarando-a.

Ela olhava para o chão.

Quando viu, ele estava falando com a moça. Pelos gestos dele, o pior tinha acontecido: ele anunciava que Ilana, um poste branquíssimo como papel sulfite e magro como uma vareta, tinha interesse nela. A linda mulher da sombra laranja. Terminou de fazer a proposta à ela e, antes de ir atender um cliente ali perto, disse para Ilana, sem emitir som algum, só os movimentos da boca: de nada.

“Filho da puta convencido”, pensou Ilana.

A mulher estava olhando para ela agora. E sorria.

As pernas de Ilana tremiam. Em sua cabeça (e em seu estômago), milhões de borboletas ansiosas voavam e trombavam umas nas outras. Era algo que há tempos não sentia.

Sua última vez foi no século XIX e nem lembrava direito o que fazer. Assistia aos filmes de romance que eram lançados, mas… pareciam idealizados demais. A vida nunca se encaixava tão bem como naquelas duas horas cheias de músicas bonitinhas e gente mais bonita ainda.

A vida era mais como um tornado violento cheio de coincidências.

Ilana ficou tão imersa nos próprios pensamentos pessimistas que, quando percebeu, a mulher estava sentada ao seu lado. Esquerdo, para ser específico. Ela colocou uma mecha do cabelo loiro atrás da orelha e isso provocou… coisas em Ilana.

Olhava bem nos olhos dela. Desconfiava que ninguém havia feito contato visual com ela daquele jeito em toda a sua vida. E ela já havia vivido bastante.

-Oi!- cumprimentou ela. Deu uma piscadinha como se fizesse parte de um anime.

Ilana estava sem palavras.

“Vamos lá, você já fez isso antes e muito bem. É só conversar que alguma hora dá certo. Ela já tá te dando bola. Respira fundo e vai.”

Foi exatamente o que ela fez.

-Oi.- cumprimentou de volta. Sua voz era tímida, como a de uma colegial que não tinha muitas habilidades sociais.

Elas começaram a conversar e o papo fluiu com uma facilidade inacreditável. Quando perceberam, estavam confessando coisas extremamente pessoais uma para a outra.
A mulher do vestido ciano chamava-se Gabriela.

O nome mais lindo do mundo.

Tomaram alguns drinques. Gabriela gostava dos mais suaves. Ilana, dos fortes.

O jeito que Gabriela chamava Ilana somente de “Lana” era muito fofo.

Em certo momento, quando as duas já estavam bastante alegres, Gabriela chamou-a para ir para seu apartamento, que era há alguns quarteirões de distância dali.
Ela aceitou.

Lá dentro, depois de passarem pela porta, Gabriela tirou o salto alto.

Ilana seguiu seus movimentos e tirou seus tamancos.

Ambas se olharam e começaram a se aproximar, num ritmo lento. Ao redor delas, o ar estava elétrico e doce. Hipnotizante.

A noite ficaria marcada para sempre na memória das duas.

Ilana foi embora no outro dia, às 9 da manhã. Por sorte, tinha dinheiro para o táxi que a levaria para seu apartamento, que ficava na área rica e luxuosa da cidade. Naquela época, seu trabalho numa editora grande dava dinheiro para que tivesse uma vida confortável.

Ela deu um beijo na bochecha de Gabriela e foi embora.

Nunca mais conseguiram se encontrar.

Gabriela havia sumido.

Ilana carregava esse peso, esse grande “e se”, dentro dela há tanto tempo que já estava enterrado em suas memórias

Vê-la ali, parada na esquina, destruiu seu coração.

--

--