Sobre o racismo, o machismo e o identitarismo

Bia Nobile
6 min readSep 18, 2017

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Quando falamos em racismo e em machismo, é importante que façamos uma análise materialista de sua origem, considerando a totalidade da sociedade e como a realidade material ocasionou seu surgimento, ou seja, admitir que esses não existem em si mesmos, mas sim têm uma conjuntura que levou a sua decorrência com o intuito de manter a infraestrutura de determinado sistema.

Para isso, é também fundamental que entendamos os conceitos de infraestrutura e superestrutura, para que possamos corretamente entender como uma afeta a outra.

A infraestrutura, ou seja, as forças de produção (matéria-prima, meios de produção e trabalhadores) e relações de produção (empregado-patrão), i.e., base material de uma sociedade, dá forma a superestrutura, que compreende as ideias e costumes (da classe dominante), as instituições, as relações sociais e políticas, etc. Essa relação não é unilateral, portanto, a superestrutura, além de servir para manter a infraestrutura, a altera em algum nível, porém continua sendo muito mais afetada por essa do que efetivamente a afeta.

1. Machismo:

O machismo não existe em si mesmo, como às vezes é afirmado por pessoas que fazem uma análise determinista da sociedade, mas sim faz parte de uma totalidade. O homem não nasce machista, tampouco o machismo surgiu voluntariamente. O primeiro é decorrente da superestrutura da sociedade na qual este homem está inserido e o segundo, por sua vez, é fruto do patriarcado, que constitui parte da infraestrutura da sociedade.

A origem do patriarcado:

Resumidamente, com a origem de um excedente de produção, houve a origem da propriedade privada e da necessidade de passar essa para herdeiros; dessa necessidade veio um novo modelo de família, que consistia na monogamia feminina como forma de garantir que os filhos desta mulher fossem do marido, i.e., há então a patrilinearidade. [1]

Também, devido a mudança do sistema de caça e coleta para agricultura, o homem agora era responsável por suprir a maior parte da demanda por alimentos, uma vez que, devido a maior disponibilidade desses, houve um aumento na taxa de natalidade e as mulheres passaram a dedicar mais tempo à maternidade, ficando reduzidas ao âmbito privado e à reprodução. [2]

Há, então, o surgimento da divisão sexual do trabalho ligada à hierarquização dos papéis de gênero. Enquanto anteriormente o homem e a mulher, mesmo executando funções diferentes, possuíam igual importância para a sociedade, agora essa relação ocorre de forma desigual, com um dos lados sendo subjugado ao outro e a mulher sendo vista agora como propriedade, capaz de gerar mão de obra. [3]

Podemos assim concluir que a mulher sofreu uma exploração econômica sobre seu sexo e atualmente sofre uma opressão que deriva de uma diferença social material e histórica entre os sexos, que se apresenta nos valores e costumes de nossa sociedade, que, como explicado acima, compõem a superestrutura.

2. Racismo:

Se o machismo não surgiu espontaneamente, mas sim de uma exploração econômica, o mesmo ocorre com o racismo. Não há no branco algo inato que o fez explorar e subjugar o negro, mas sim uma conjuntura na qual era de interesse econômico a exploração desse, e uma justificativa para a ocorrência dessa exploração se fez necessária.

Anteriormente, na idade média e na antiguidade, o racismo tinha um caráter mais xenófobo, sendo as relações entre os povos de vencedores e cativos e existindo independente da raça, entretanto, no século XVI, quando os europeus começaram a colonizar o continente negro e as Américas, essa xenofobia tomou forma de racismo.

Para legitimar a exploração imperialista sobre a África e a Ásia durante a expansão europeia, foi utilizada uma teoria racial, baseada no darwinismo social, para alegar uma superioridade da raça branca europeia, que estaria levando a civilização para as colônias, ou seja, surge primeiro a necessidade de explorar a mão de obra negra e depois o racismo como justificativa ideológica.

3. O porquê dos movimentos identitários serem falhos:

Os movimentos identitários e liberais falham ao dividir homem e mulher ou negro e branco em classes e ao colocar as questões desses na frente da luta de classes.

Eles se fortalecem por meio de uma geração desiludida com grandes lutas que poderiam realmente produzir mudanças na sociedade – mudanças nas suas estruturas socioeconômicas – e que corre para movimentos que não veem o todo e não identificam a real origem das opressões contra as quais afirmam lutar, vezes por oportunismo, vezes por desconhecimento, e por fim não chegam de fato a lugar nenhum.

São eles também que dão origem a aberrações argumentativas e meias verdades, como lugar de fala, vivência e protagonismo, juntos da ideia de representatividade como se essa fosse capaz de mudar algo, num idealismo ilógico. Aplaudem símbolos como Beyoncé, por essa ter alcançado sucesso no capitalismo e pela sua identidade, como gostam de reforçar: mulher e negra, ignorando que sua existência não é em si revolucionária e não muda em nada a estrutura do sistema, muito menos faz desse menos nocivo para mulheres negras pobres, por exemplo.

Os movimentos identitários são o reflexo de um conformismo com o status quo que busca adaptar o atual sistema para melhor comportar e servir o grupo pelo qual esse luta por meio de reformas, ignorando as limitações desse sistema em fazê-lo justamente por ignorar suas origens.

Quando são tecidas críticas às iniciativas como o Frente Favela Brasil, que, apesar do nome que sugere uma posição com consciência de classe, se esconde atrás de um discurso “nem de direita, nem de esquerda, mas preto”, é devido ao fato de que não existe luta contra o racismo sem a luta contra o imperialismo, da mesma forma que não existe luta pela emancipação feminina fora do comunismo.

É ainda mais problemático a forma com a qual a proposta do partido em questão visa a emancipação do negro por meio do empreendedorismo, ou seja, a ascensão dentro de um sistema que o oprime, por meio da ocupação de uma posição ao lado da classe dominante, deixando implícito a continuidade da existência de uma classe pobre e dominada.

O mesmo ocorre com movimentos feministas que veem como revolucionário mulheres ocupando altos cargos em multinacionais ou em presidências. É ilógico reivindicar figuras como Hillary Clinton ou Margaret Thatcher só por elas serem mulheres, ignorando seus discursos e ações reacionárias. É ilógico reivindicar Obama ou Fernando Holiday por esses serem negros.

A fragilidade desse discurso cada vez mais popular pode ser notada também pelo exponencial crescimento de partidos que se utilizam dele como forma de angariar eleitores, ou seja, independente da linha seguida por esses partidos, eles já notaram que as pessoas se convencem pela falsa noção de representatividade dentro do sistema atual, e assim vemos o surgimento do PSDB Mulher, PSC Mulher, PMDB Mulher, Frente Favela Brasil, etc.

Notas:

[1]: ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. (p.82)

“A monogamia nasceu da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos – as de um homem – e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qualquer outro. Para isso era necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem; tanto assim que a monogamia daquela não constituiu o menor empecilho à poligamia, oculta ou descarada, deste.”

[2]: ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. (p. 59)

Dessa forma, pois, as riquezas, à medida que iam aumentando, davam, por um lado, ao homem uma posição mais importante que a da mulher na família, e, por outro lado, faziam com que nascesse nele a idéia de valer-se desta vantagem para modificar, em proveito de seus filhos, a ordem da herança estabelecida. Mas isso não se poderia fazer enquanto permanecesse vigente a filiação segundo o direito materno. Esse direito teria que ser abolido, e o foi. […] Assim, foram abolidos a filiação feminina e o direito hereditário materno, sendo substituídos pela filiação masculina e o direito hereditário paterno.

[3]: ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 9ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. (p. 61)

O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de reprodução. Essa baixa condição da mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e, ainda mais, entre os dos tempos clàssicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares, até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida.

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Bia Nobile

Estudante de Direito. Textos autorais e traduções sobre a situação da mulher, pornografia e prostituição, entre outros assuntos de meu interesse.