Cyda Moreno Comenta
5 min readFeb 13, 2020

Cafuné na cena preta. IPA ONA. Quando o racismo fortalece, cria resistências e abre caminhos.

Fonte: Arquivo pessoal do grupo

Se Abdias do Nascimento ainda estivesse vivo, certamente estaria feliz em contemplar como a sua árvore rendeu e continua rendendo bons frutos, quase um século depois de sua proposta em trazer à cena teatral a comunidade negra para se tornarem artistas e protagonizarem suas próprias histórias. Estamos falando do TEN — Teatro Experimental do Negro, obra de Abdias, que surgiu em 1944 com o propósito de formar e dar visibilidade a operários, empregadas domésticas e até analfabetos negros, com aspiração a se tornarem artistas e ocupar a cena teatral, resgatando a cultura negra e africana. Seria o fim do Black face?(*). O TEN também se propunha a fazer um trabalho social pela valorização deste grupo através da educação, da arte e da cultura. Depois de ocupar o palco do Theatro Municipal, encenar entre outros, clássicos da literatura mundial (Imperador Jones, de Eugene O’Neill), e revelar nomes como Aguinaldo Camargo, Ruth de Souza, Haroldo Costa, o projeto do TEN foi interrompido no fim dos anos 60 devido à ditadura implantada no país e a perseguição ao seu criador Abdias do Nascimento.

TEN. Abdias do Nascimento (agachado) e Lea Garcia em primeiro plano. Fonte: Google imagens

Voltando à cena contemporânea, o Coletivo Panela Teatral pode ser considerado mais uma ramificação do TEN, assim como tantos núcleos de teatro negro que estão protagonizando a cena nos tempos atuais. Nascido de um grupo de estudantes negros (que naturalmente tiveram que fazer a sua “panela”) do curso de licenciatura em teatro da UNI RIO — Universidade do Rio de Janeiro, em junho de 2017, o Coletivo sentiu a necessidade e materializou o desejo de se “apanelarem” para dar voz a inúmeras situações ainda vigentes de racismo e discriminação, dentro e fora da universidade. É inconcebível pensar que em pleno século 21, numa universidade pública, ainda se encontra um público que se sente superior ao seu semelhante pela cor da pele, apesar de ocuparem o mesmo ambiente educacional. Lamentável assistir a demonstração deste racismo, executados por aqueles se acham pertencentes a uma “supremacia branca racial”; pixam as paredes da universidade para manifestar seu sentimento de superioridade para com a comunidade negra presentes neste mesmo local e incitam a expulsão desta comunidade daquele espaço público.

Fonte: arquivo do grupo

Tantos incidentes cruzando os caminhos destes jovens na vida e na universidade, foram ingredientes para o nascimento do espetáculo IPA ONA (Qual é o seu caminho) que costura situações cotidianas de racismo da sociedade e vivenciadas pelos próprios integrantes, a aspectos ancestrais da cultura negra “por caminhos que transitam pelo passado e refletem o presente”. A dramaturgia foi construída pelo coletivo que narram histórias de constrangimento policial, assassinatos em comunidades, violência racial e de gênero, entre outras formas de preconceitos e extremismos tão comum ao povo negro. O contraponto se faz através da poesia de Conceição Evaristo, numa encenação belíssima de “Olhos d’agua”” e “Maria”. O espetáculo, que foi agraciado no Festival de Araruama — 2019 com o prêmio especial do júri, constrói belo espetáculo fortalecido pelo canto, dança e gestual ressaltando aspectos da cultura negra. Vilma Melo, que assina a direção, conseguiu extrair do coletivo cenas de impacto e belos desenhos para dramatização dos textos. Fernanda Dias também deixa sua marca na composição das coreografias permitindo aos corpos dos atores leveza e domínio corporal das cenas. Destaque para Graciana Valladares em sua força e desenvoltura cênica, atribuindo momentos de impacto no espetáculo. E Gabriel Hypollito com sua performance musical e corporal, além de bela e potente voz, ressaltando a força da temática do espetáculo. Sua desenvoltura em cena, ao lado de Graciana enchem os nossos olhos. Como se trata de um coletivo jovem, e tendo ainda alguns atores em formação, torna-se necessário um trabalho mais eficaz e de atenção para com as vozes. Em alguns momentos, perde-se textos importantes que estão sendo falados. O figurino assinado por Carla Costa, traz um colorido bonito para cena, com nuances e cores quentes que nos remete a uma tribo africana, em perfeita consonância com a proposta.

Fonte: arquivo pessoal do grupo

Cafuné na cena preta aplaude esta iniciativa do COLETIVO PANELA TEATRAL. Teatro negro, jovem e movido a resistência. Formado nos bastidores de uma universidade pública, a UNI RIO, que até há poucos anos contava-se nos dedos o número de estudantes negros em suas dependências. Hoje, a prova de que as cotas raciais vieram para democratizar o ensino superior às camadas pobres e afrodescendentes, se materializou, permitindo o acesso ao saber e a fluição do pensamento às camadas discriminadas de nossa sociedade. O coletivo, em pouco tempo de existência, já contabiliza vários prêmios em festivais de teatro por onde passa (FESTU, SATED, AS LUCIANAS, PETRÓPOLIS, ARARUAMA). É o teatro negro e jovem resistindo através da arte.

SERVIÇO:

IPA ONA

De 01 a 16 de fevereiro — Sábados e domingos, sempre as 20 horas

Local: TEATRO HENRIQUETA BRIEBA — Tijuca Tênis Clube

Ficha técnica:

Direção: Vilma Melo

Prep. Corporal: Fernanda Dias

Cenografia: Paloma Dantas e Carla Costa

Figurino: Carla Costa

Iluminação: Anderson Ratto e Binho Schaefer

Preparação de canto: Negro Lopes

Elenco:

Fernanda Carvalho, Graciana Valladares, Gabriel Hipollyto, Jailton Maia, Lucas Resende, Thayane Abreu e Vitor Oliveira.

(*) Black face: Se refere à prática teatral de atores que se coloriam com o carvão de cortiça para representar personagens afro-americanos de forma exagerada. Fonte: wikipédia

Cyda Moreno Comenta

Nesse espaço pretendo fazer um cafuné na cena preta, valorizando as nossas produções teatrais e contribuindo para ampliar a visibilidade de artistas negros.