O Prometeu dos animes
Na mitologia grega, Prometeu é o titã responsável pela criação da humanidade e também por roubar o fogo dos deuses, entregando ele aos humanos, crime pelo qual foi punido severamente por Zeus, sendo acorrentado no Monte Cáucaso, onde um corvo devoraria seu fígado todos os dias e por toda a eternidade. O destino cruel imposto por Zeus só acabou quando Hércules, um dos grandes heróis mitológicos, derrotou o corvo (ou águia em alguns mitos) e quebrou aquelas correntes que prendiam o Titã. Talvez, até aqui, ainda não esteja entendendo o que quero com esse texto, então passarei a falar de uma melhor forma.
Saint Seiya, ou Cavaleiros do Zodíaco, foi um grande fenômeno no Brasil no final dos anos 90 e até mesmo no início dos anos 2000. Quando olhamos para o restante do mundo, a série ainda tem certa pujança e, outros países da América Latina, como Argentina, México e Peru. Se formos para o velho continente, a série ainda mantém sua força em países como a França, Itália e Espanha, e na Ásia a série ainda continua com sua relevância, tendo como principal expoente a China. O problema é que tudo isso é uma grande estagnação. A série não cresceu mais nos mercados ocidentais, onde o grande expoente que surgiu foi justamente a China com seu amplo investimento na parte de mobile, e no Japão também está em um momento de baixa. Se olharmos os relatórios da Toei, Saint Seiya não integra o top 4 da franquia há dois anos, tendo seu posto “roubado” por Sailor Moon, Digimon e Slam Dunk, dependendo é claro do tipo de licenciamento que estamos falando. Relembro, aqui estou me referindo apenas as receitas domésticas, ou seja, as do Japão!
Não, eu não estou querendo dizer que Saint Seiya está agonizando no fim de um buraco, mas que o sinal de alerta existe. Fora do Japão a franquia ainda vai bem, mas precisa voltar a ter força domesticamente falando. E claro, o meu grande interesse aqui é falar sobre o Brasil, como nós estamos com relação a Saint Seiya hoje em dia e como Cavaleiros podia voltar a ter força, ou pelo menos, ter mais do que tem hoje em dia.
Se eu fizesse essa pergunta para você que está lendo ai do outro lado, eu tenho certeza que a primeira resposta que viria é: “Remake, precisamos de um remake do anime clássico!!!”. Se esse não for o seu caso, bom, estamos mais alinhados, pois quero dizer que Saint Seiya não precisa de um remake, ao menos, não pelos motivos que vocês gostariam. Lembram do título desse texto? Bem, assim como Prometeu, Saint Seiya está acorrentado também. Preso a um público que se alimenta e anseia por uma nostalgia com melhor aparência, sendo que essa história já foi contada milhares de vezes. Eu, honestamente, não aguento mais remakes. Lenda do Santuário (2014), Knights of Zodiaco (2019–2023), Saint Seiya: O início (2023), são todas tentativas de atualizar, recontar, apresentar para um novo público, e isso é cansativo. É cansativo para nós que assistimos, cansativo para a marca que se desgasta a cada novo fracasso, e para todos que estão envolvidos nisso. É claro, Saint Seiya está preso a duas empresas que tem medo de realmente apresentar a obra para um novo público.
Olhem para tudo que citei das últimas obras lançadas pela toei. E ainda posso acrescentar mais. Soul of Gold (2015), fanservice para agradar o público, o que não tem nada de errado, mas não alcança muita gente nova. Saintia Sho (2016), uma obra que tinha um grande potencial para alcançar novas pessoas, um novo público, fidelizar alguns que já consumiam também, e que foi jogado no ralo por uma produção de baixo orçamento e que preferiu apressar os eventos do mangá em poucos episódios, além de reaproveitarem o traço Araki em uma cópia mal feita e desrespeitosa. O tão criticado Saint Seiya Ômega (2012) foi um sucesso doméstico, ai sim conseguiu apresentar a obra para um novo público, mas é um anime que já tem seus 12 anos de idade.
Vamos para os mangás? Episódio G, Episódio G — Assassin, Episódio G — Réquiem, são todas obras que aproveitam os Cavaleiros de Ouro, Cavaleiros de Bronze, até criou alguns conceitos novos e interessantes como a Dunamis, mas que pouco sai do universo clássico. Saintia Sho, que também merece vários elogios, foi posta no mesmo período do mangá clássico, o que gerou alguns problemas no desenvolvimento das personagens principais, pelo menos ao meu ver, mas consegue cumprir bem a função de aproveitar as lacunas temporais curtas que o Kurumada deixou no mangá. The Lost Canvas pegou carona no lançamento de mais uma obra clássica, Next Dimension, sendo inicialmente como um mangá irmão, o que logo se transformou em uma história própria, um universo próprio, mas apoiado em algo que já tínhamos.
Rerise of Poseidon, uma obra que pegou os generais marinas que morreram na saga Poseidon, os reviveu e agora está desenvolvendo eles. Time Odyssey, tenta enriquecer o universo clássico se aproveitando de lacunas temporais, mas faz isso sem a mesma maestria de Chimaki Kuori. Dark Wing, uma obra que se desprende um pouco mais, tem sua própria geração, suas poucas referências, mas caminha sem a mesma muleta das outras, mas foi posta para ser vendida em uma revista notoriamente conhecida por ter como público alvo, pessoas mais velhas, adultos de fato, sendo uma obra que tem uma aparência e um objetivo muito mais de alcançar um público juvenil.
O que 99% disso tem em comum? Se concentra no clássico, em personagens clássicos, em referências ao clássico e etc. E mais! Quando foi que Cavaleiros do Zodíaco virou uma história focada em Cavaleiros de Ouro unicamente? Onde estão os Cavaleiros de Bronze e Prata? Onde está a utilização de elementos como os Cavaleiros Negros e os Guerreiros Azuis? E a história pretérita desse universo? A primeira guerra santa, guerra contra Ares, uma batalha contra um deus que não seja Hades… A franquia está presa, também, nos mesmos vícios.
Esse ciclo vicioso em que estamos é o corvo comendo o fígado desse universo que tanto amamos. Claro, todas, ou quase todas essas obras que citei, são boas. Eu amo a escrita do Okada, a forma como ele interpreta as mensagens, o universo e o sentimento dos Cavaleiros e do que é ser um Cavaleiro. Eu amo o frescor que a Chimaki conseguiu trazer, juntamente com uma classe nova dentro do universo de Saint Seiya, além dela ter uma escrita muito sensível no seu trabalho de personagens. Eu amo a completude do universo da Shiori, como tudo é muito fechado, bem aparado, amo vários de seus personagens, a forma como ela evoluiu ao longo da escrita, as mensagens e personagens marcantes que foi capaz de passar ao longo do mangá/anime principal de The Lost Canvas e, especialmente, do trabalho que fez em seus gaidens.
Mesmo com minhas reclamações, eu gosto que Dark Wing queira ir pra frente, que me apresenta uma gama nova de personagens e que tente ter sua identidade como obra de Saint Seiya. O mesmo vale para Rerise que está dando atenção para personagens que não tiveram o devido aproveitamento. Até de Time Odyssey eu posso tirar elogios, mas não darei esse gostinho a vocês no dia de hoje. (apenas uma breve brincadeira)
O que quero dizer com tudo isso, é que apesar de tudo o que termos ser elogiável, não é o bastante para que a franquia volte a crescer. Essas obras devem ser adaptadas, é um absurdo que só The Lost Canvas e Saintia Sho tenham adaptações, mas também devemos considerar que essas obras possuem um limite. Um limite de uma barreira de entrada que é ter que conhecer várias coisas, na mente das pessoas, para que se mergulhe nessas outras obras. Um limite de que elas também não conversam entre si, tem diferenças de traço, e uma coisa que é essencial para uma parte do público: Não é uma obra de Masami Kurumada. É claro, no meio temos a nostalgia, o desprezo, além do preconceito claro com algumas obras, que impede que se consumam outras obras.
E eu não compactuo com esse pensamento, é apenas a minha análise sobre a situação atual. A franquia existe e precisa existir para além do que o Kurumada escreveu e desenhou, pois, infelizmente, ele não é eterno.
Estamos, também, presos a Masami Kurumada. Olhem quantas amarras a obra tem, quantas coisas eu descrevi ao longo desse texto. E você que está ai do outro lado tem todo direito de achar que o que temos está de bom tamanho, que posso estar sendo exagerado ou alarmista. São visões, opiniões, e tá tudo bem! No entanto, não posso deixar de achar que a franquia parece estar em um momento perigoso. Ela não está acabando, desmoronando, mas isso é o presente, o que nos espera no futuro? É isso que quero que pensem.
A crueldade de Zeus com Prometeu chegou ao fim em algum momento, mas quem poderia ser o Hércules que libertaria as correntes que aprisionam Saint Seiya?
A resposta que tenho já foi escrita ao longo do texto. Sinto que Saint Seiya precise de algo que realmente possa ser aproveitado ao seu máximo por pessoas que não sabem de absolutamente nada da obra. Uma geração nova, seja no futuro, no passado, não importa, mas algo que seja independente do clássico de todas as formas. Uma obra que explore os elementos que vemos em complementos como o Hipermito, que explorem outras guerras, outros deuses, entidades, e até algo mais fantástico, trazendo Cavaleiros para algo realmente mais mitológico.
“E Next Dimension?” talvez você esteja se perguntando. Falemos brevemente sobre a obra.
Acho que Next Dimension é importante para o futuro da franquia. “Ué, mas não estamos presos ao Kurumada?”, sim, e esse público que aprecia o que vem dele, ou o que se deriva dele, também precisa ser contemplado. Mudar as dinâmicas da fandom, como se olha para essas obras… Tudo isso é muito difícil, então trabalho com o que temos atualmente. Quero, e vou fazer, um texto especificamente sobre essa cultura que temos dentro do Brasil (já que posso falar apenas por nós), mas por hoje é só. Next Dimension cumpre o papel de fazer com que nós, já tão acostumados com a obra, nos engajemos nela. Seja para elogiar, criticar, ou apenas ver se vão arrumar os problemas, acrescentar cenas ou por fins de notícia. Next Dimension carrega consigo um potencial comercial também, e de fazer com que um público que já tinha conhecimento da obra clássica, possa acompanhar aquela continuação. Não se lembram de como a volta do Seiya agitou as pessoas na internet? Não foi algo que “quebrou” as redes, mas fez um grande barulho e fez com que muitos tivessem ciência de que a obra existe.
Marketing é mais um grande problema de tudo o que venho citando, mas se eu for parar pra discorrer sobre isso hoje, tenho certeza que esse texto ficará maior do que deve. Enfim, essa foi minha grande reflexão acerca desse tema que quis trazer hoje.
E você que está ai do outro lado? Concorda? Discorda? Vamos conversar! Seja nos comentários do Bluesky, no Instagram, no Discord se quiser algo mais privado, eu quero saber de você o que pensa. Meu muito obrigado por ler e muito obrigado pelo apoio também!
Um grande beijo e um abraço do seu amigo Damião.