Violência policial no Rio de Janeiro é intensificada no governo Witzel-Castro

Danielle Alvarenga Vale da Silva
15 min readJul 26, 2022

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No governo Witzel-Castro, Direitos Humanos são afetados: mais de 90% dos casos de mortes cometidas por agentes do Estado não são investigados ou acabam arquivados.

Por Danielle Alvarenga, Eslen Brito, Gabriela Lima, Gabriele Koga, Maria Vitória Faria e Rafael Canetti

Durante as eleições de 2018, o Brasil enfrentava um cenário socioeconômico e político conturbado, agravado pelo pouco apoio popular ao governo Michel Temer. No Rio de Janeiro, a campanha de Wilson Witzel foi baseada em um plano de governo com a segurança pública em pauta. Suas falas polêmicas e, por vezes, extremistas atacaram os direitos humanos e tiveram grande repercussão na sociedade e na mídia.

Witzel esteve presente em evento após apreensão de armas no Conjunto de Favelas do Alemão, em abril de 2019. [Imagem: Divulgação/Governo do Estado]

“Não podemos mais viver sem liberdade, com medo de sair às ruas, sem saber se voltaremos. Os criminosos assumiram, pelo poder das armas, o domínio de porções do nosso território, trazendo desgraça e desordem ao cidadão de bem. Vamos reorganizar as estruturas policiais para serem capazes de investigar e de prender aqueles que comandam o crime organizado e fazem da lavagem de dinheiro a fonte que abastece o comércio de drogas e armas, e a desgraça e o câncer da corrupção… Usarei todos os meios e conhecimentos para derrotar o crime organizado, reconstruindo, reaparelhando, aperfeiçoando o processo penal e as estruturas judiciais, treinando as nossas forças policiais, colocando à disposição profissionais da segurança capacitados e com instrumentos para conter a ameaça à nossa democracia. São narcoterroristas e como terroristas serão tratados!” (WITZEL, 2019, discurso de posse).

Com a promessa de uma nova política, Witzel foi eleito sob o pretexto de combater a corrupção, acabar com o crime organizado, devolver à sociedade suas bases fundamentais — família e valores cristãos — “sob ataques” por parte da política esquerdista. As medidas em questão foram sinônimos da manutenção da imagem das periferias enquanto espaços de degradação social que precisavam ser controlados e reprimidos — reflexos de uma naturalização histórica de criminalização e depreciação da vida dos indivíduos pobres e favelados. O cenário de guerra instaurado entre o Estado e o crime organizado no Rio de Janeiro vem sendo explorado há mais de uma década pela mídia, pela indústria cinematográfica e pelo campo político-religioso.

Witzel esteve a bordo de um helicóptero da Polícia Civil que sobrevoou Angra dos Reis em uma operação que, de acordo com os moradores da região, efetuou disparos e atingiu uma tenda de orações de um grupo evangélico. [Imagem: Reprodução/YouTube]

Na época, o ex-juiz federal, filiado ao Partido Social Cristão (PSC), derrotou o ex-prefeito carioca Eduardo Paes (MDB) com um discurso atrelado ao de Jair Bolsonaro, que permaneceu neutro na disputa eleitoral fluminense. Wilson Witzel assumiu o governo do Rio de Janeiro em um cenário com altos índices de crimes contra a vida e recém-saído de uma intervenção federal na segurança pública comandada pelas Forças Armadas, além da crise política ocasionada pela prisão da cúpula do MDB fluminense no contexto da Lava Jato e o fim da sucessão de três mandatos do partido à frente do Rio.

Desde o início das campanhas eleitorais — com a polarização durante o período, a repercussão de notícias falsas e a ascensão de discursos de ódio — , Witzel se mostrou alinhado às propostas de Jair Bolsonaro, o que conquistou 59,8% dos votos no primeiro turno. Assim, apresentou-se uma nova alternativa conservadora e religiosa dentre a política fluminense: “você representa a política que o povo do Rio de Janeiro não quer mais”, disse o ex-juiz em debate contra Paes.

As propostas e discursos de Witzel também se aproximaram de Bolsonaro. Se este defendia segurança jurídica para policiais em caso de mortes em confrontos, o candidato do PSC buscava defender o “abate” de criminosos armados com fuzil. O governador eleito também prometia expandir o número de clubes de tiro como apoio à proposta do capitão reformado para flexibilizar o Estatuto do Desarmamento e facilitar a posse de armas à população.

Como resultado da atuação dos candidatos eleitos, tanto para a presidência como para os estados, o Brasil apresentou, em 2020, o maior número de mortes em decorrência de intervenções policiais desde que o indicador passou a ser monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Com 6.416 vítimas fatais de intervenções de policiais civis e militares da ativa, em serviço ou fora, as polícias estaduais produziram, em média, 17,6 mortes por dia. O crescimento em letalidade é de 190% em comparação ao ano de 2013. Esse aumento ocorreu em um período de pandemia, na qual houve uma redução de circulação de pessoas devido ao isolamento exigido pela Organização Mundial da Saúde, gerando uma diminuição de crimes contra o patrimônio. Mesmo com esse cenário, o Rio de Janeiro está entre os estados em que a ação da polícia militar é a mais letal.

O que explica a violência no Rio de Janeiro?

O Brasil é um país de extrema desigualdade social, com falhas na garantia ao acesso universal da população à educação, e deixa a desejar no policiamento ostensivo, uma questão problemática, fruto de uma formação inapropriada para a função de defender os cidadãos.

Bruno Souza, jornalista, pesquisador e coordenador de comunicação do Laboratório de dados e narrativas sobre favelas e periferias do Jacarezinho, LabJaca, analisa a formação da Policia Militar nacional: “Na ditadura, ela foi militarizada porque foi criada no contexto de ser um braço auxiliar do Exército no contexto de reprimir movimentos de insurreição”. O processo esteve acompanhado de repressão e agressividade.

“A PM não é militarizada porque usa armas, e sim por ser submetida ao ponto de vista do funcionamento ao Exército. Não faz sentido as técnicas de combate aos inimigos externos com poderio bélico do Exército serem as mesmas das polícias que cuidam do policiamento interno e preventivo”, pontua.

Uma pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense, indicou que, nos últimos 15 anos, a cada 9 dias, uma chacina foi acometida durante operações policiais no estado do RJ. [Imagem: Reprodução/Instagram/@LabJaca]

O Rio de Janeiro, bem como demais estados, sofre por meio deste problema estrutural que desencadeia uma violência ativa na atuação policial. No entanto, o território fluminense apresenta outras peculiaridades que intensificam a violência na esfera social: o desenvolvimento das milícias e a disputa de território por facções.

Diante do cenário de abandono estatal na organização, prestação de serviços essenciais à população, ambos os tipos de corporações preencheram a lacuna de poder para exercer um controle social violento.

As facções surgiram nos presídios e se organizaram para além dele: muitas são rivais entre si e, por isso, geram guerras e mortes para a conquista de territórios e influência nos espaços públicos. As milícias — consideradas tanto uma organização paralela ao estado, como também algo inerente a ele, já que representantes dessa classe adentraram no cenário político — são grupos paramilitares e podem contar com ex-policiais municiados, os quais administram regiões marginalizadas e cobram impostos de cidadãos, valendo-se de uma falsa ideia de proteção ao tráfico e coerção do armamento.

Em 2008, o estado tentou retomar o controle das regiões dominadas por facções, milícias e outros tipos de quadrilha com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), propondo um policiamento comunitário, trazendo novas infraestruturas e projetos para as periferias. O resultado variou entre as regiões: se existiu uma redução no número de mortes no estado nos primeiros anos, muitos moradores de periferias não se sentiram confortáveis com a atuação policial desse projeto.

Uma década depois, o Rio de Janeiro enfrentou crises políticas e econômicas, que intensificaram ainda mais o caos estrutural local. Nesse contexto, surgiu um fato que visava mudar a lógica de violência, mas consolidou uma segurança pública também problemática: em 2018, ocorreu a intervenção de ordem federal no Estado, por meio do Artigo 34 da atual Constituição Federal, que foi assinado pelo presidente Michel Temer (MDB).

Na prática, tal política ampliou a insegurança regional. O Observatório da Intervenção divulgou um relatório que comparava o mesmo período no ano anterior e concluiu dois meses após o decreto: houve um aumento considerável nos tiroteios, o número de chacinas dobrou e o índice de resolução dos crimes de homicídio se manteve em torno de 10%. Em 2018, R$ 1,2 bilhão foram gastos, e as mortes violentas reduziram apenas 1,7%.

Com a atuação militar falha e cara, os discursos pró-militares foram estimulados e contribuíram para a eleição de Witzel, que intensificou a violência em setores específicos da sociedade.

A segurança pública é para todos?

Faz-se necessário analisar o conceito da biopolítica, criado pelo teórico social Michel Foucault, no que se refere à gestão política dos órgãos públicos acerca da sobrevivência da população, englobando cuidados alimentícios, de higiene, de saúde, de segurança, entre outros. Segundo o filósofo, o Estado possui a capacidade de gerir recursos que privilegiem a sobrevivência de um grupo em detrimento de outro, ou seja, o biopoder. Influenciado por tais ideias, o historiador e teórico político Achille Mbembe, utilizou o termo necropolítica para designar as estratégias estatais de controle sobre a morte dos indivíduos, uma vez que é papel e poder do Estado gerir a vida.

A escolha de quem morre (ou não) não é feita ao acaso, uma vez que há um recorte racial específico que demonstra a designação de quem, quando, como, onde, por quem e porque morre é, na maioria das vezes, voltada à população preta e periférica. Segundo Souza, a pena de morte praticada pelo Estado afeta essas pessoas, com operações legitimadas com o discurso de que a polícia reagiu. Para ele, “as forças policiais só legitimam essa pena de morte por julgar e condenar tudo na primeira instancia”.

Imagens produzidas pelo LabJaca em uma comparação dos custos de materiais utilizados na chacina do Jacarezinho e políticas públicas. [Imagem: Reprodução/FioCruz]

Com o antigo governo Witzel e agora com o governo de seu vice, Cláudio Castro, a necropolítica se explicitou como forma de fazer política de segurança pública. As chacinas, nome designado para quando há o assassinato de mais de 3 pessoas, são frequentes. Souza também aponta a influência política no papel de atuação policial. Ele afirma como a eleição de figuras como Witzel mostra como já havia a normalização de discursos como a espetacularização da carnificina. “Isso vindo de figuras que deveriam trabalhar para a gente e nos representar, só reforçam, principalmente, as ações da polícia. O governo Witzel e o governo Bolsonaro deram um aval para que a polícia agisse de forma inscricionada e violenta dentro das comunidades, e eles se sentem blindados”, conta o co-fundador do LabJaca.

Alguns casos de chacinas na gestão desses políticos ocorrem nas seguintes periferias: Jacarezinho, 28 mortes, maio de 2021; Vila Cruzeiro, 23 mortes, maio de 2022; Fallet Fogueteiro, 13 mortes, fevereiro de 2019; Nova Brasília, 12 mortes, maio de 2020 e Morro da Caixa D’Água, 10 mortes, fevereiro de 2021. Destacando que, algumas dessas operações, iam em contramão às orientações do STF, na qual foram limitadas às operações policiais nas comunidades do estado durante a pandemia da Covid-19.

Mesmo durante a pandemia da Covid-19, em 2021, em que as operações policiais foram limitadas, os tiroteios e disparos em ações policiais foram grandes ao longo do ano, em especial em março. [Imagem: Relatório Anual da Região Metropolitana do Rio — Fogo Cruzado]

Todos esses fatos fazem parte de um projeto político que prejudica diretamente os moradores de favelas, uma vez que o cenário, segundo Souza, é de guerra, com armamentos expostos nas ruas, o que, para ele, molda o caráter das pessoas desde a infância.

Frente a essa situação alarmante, a estratégia atual ainda é dar mais autonomia para os policias na atuação, isso é, tirar a responsabilidade do agente de repressão no seu trabalho, o que acarreta na flexibilização da vida, que ele deveria salvar e das normas, que deveria cumprir. O pesquisador aponta a formação de uma política que sustenta essa lógica “recentemente, foi aprovado na Câmara o Excludente de Ilicitude em operações envolvendo as forças armadas, e isso poderia garantir que as forças armadas tivessem uma leniência na hora de serem julgados por crimes e eventuais violações que pudessem acontecer no contexto das atuações’’.

Com isso, a necropolítica é perpetuada por meio de atitudes do próprio poder público, que explicita seu método de gerir, ou de não gerir a vida de certos indivíduos. A comemoração de Witzel, por exemplo, em 2019, após o assassinato de um sujeito que sequestrava um ônibus, por um atirador de elite, mostra como a seleção de quem morre é feita por quem deveria estar cuidando para que a justiça e os direitos humanos fossem a prioridade.

Após o assassinato do sequestrador, o governador do Rio desceu do helicóptero em que estava e comemorou a morte do sujeito. [Imagem: Reprodução/TV Globo]

A teoria por trás da prática

Para uma compreensão sobre a questão da segurança pública no país é necessária uma compreensão sobre as ideias que sustentam a lógica da necropolítica. A atuação do Estado em relação ao comportamento criminal da população e as punições que concede são temas abordados por teóricos sociais desde, pelo menos, o século XVIII. Foi Marx Weber que definiu que o Estado é uma relação de homens dominando homens, sendo sustentada pelo uso da violência legítima dentro de cada território. Ou seja, abrimos mão da possibilidade de recorrermos à agressão física para dar ao Estado o monopólio da força e, assim, criar mecanismos de resolução de conflitos. Apesar de uma sociedade em que a legislação é obedecida possuir uma maior estabilidade e segurança, o cumprimento das normas nunca é garantido. Logo, cabe ao governo assegurar o respeito às leis e não o faz sem se debruçar sobre estudos e considerações sobre as questões da segurança pública no país.

No caso do Brasil, segundo o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP), é possível notar semelhanças com as teorizações de Kennedy (1984) e Gary Becker (1968) em que a segurança pública é observada por uma lógica de custo-benefício, ou seja, quanto maior o custo para se cometer um crime, menor a possibilidade da existência do crime. Dessa forma, o policiamento passa a ser ostensivo e com severas punições, em que os agentes passam a ser figuras centrais de controle. Assim, há uma intensa vigilância da população, pois, de acordo com a lógica, quanto mais os cidadãos se sentem observados, eles estariam menos propensos a cometer crimes.

No Rio de Janeiro, esse patrulhamento se uniu com a tecnologia e gerou a instalação de câmeras com reconhecimento facial nas ruas para a identificação de criminosos na região. Contudo, Bruno Souza, fundador do Projeto Panóptico, o qual analisa os resultados do uso desse recurso, ressalta os problemas dessa nova técnica: “Enquanto está todo mundo parando de usar ou proibindo o uso, o Brasil não. São tecnologias que só reforçam a violência policial”, afirma. Além disso, a escolha dos locais onde as câmeras serão posicionadas evidencia qual cidadão a polícia planeja proteger, uma vez que foram instaladas em Copacabana, em pontos de acesso da população de regiões mais pobres.

Outra importante característica, conforme o NEV-USP, é a tentativa de aumento da percepção do risco ao cometer infrações. Logo, começa a fazer parte do cenário policiais com seus armamentos em plena vista, apontados para fora das viaturas. Ao andar pelas ruas do Rio de Janeiro, um carioca já não se surpreende ao ver fuzis compondo a paisagem. A tentativa é de passar a sensação de severidade para qualquer possível infrator. No entanto, essa realidade abre espaço para uma polícia mais violenta, na qual a ação é baseada no desrespeito aos direitos da população. Os casos, já mencionados, de chacinas dentro das comunidades cariocas durante a pandemia de Covid-19, desrespeitando diretamente uma determinação do STF, reforçam a característica de dissuasão das políticas de segurança pública no país e como essa lógica vem sendo reforçada pelos governos atuais. Felipe Garcia, pesquisador do NEV-USP, explica a relação entre os discursos de ódio que elegeram Wilson Witzel no estado e a atuação truculenta dos PMs: “O desrespeito em relação aos policiais está muito ligado a como opera esse discurso no seio das corporações policiais. Witzel, o então governador, foi eleito surfando nessa plataforma de direitos humanos, deslegitimando todo o tipo de atuação na proteção de direitos civis básicos e à proteção dos policiais. A polícia adere a esse discurso porque faz parte do histórico da polícia no Rio de Janeiro”, revela Garcia.

Portanto, fica evidente que a aplicação da teoria de dissuasão no Brasil não é uma abordagem efetiva. O NEV-USP, em seu estudo Legitimidade da polícia Segurança pública para além da dissuasão, elucida a necessidade de que o respeito às leis deve advir não do temor de punições, mas uma constante reafirmação de um contrato social, de confiança perante os agentes do Estado. Afinal, embora possuam autorização para o uso da força, esse recurso é limitado pelas leis e, especialmente, pelo consentimento da sociedade. Ou seja, a polícia precisa da legitimidade, que seria a compreensão de que as suas ações condizem com a lei e que são justas e justificáveis, para a utilização da violência em nome do Estado. Para tanto, a população deve ter o direito de participação nas decisões, as corporações devem se posicionar com neutralidade e transparência e, assim, gerar confiança da comunidade. Garcia ressalta essa necessidade: “Precisamos de instituições funcionando minimamente, com procedimentos claros sobre a formação dos policiais até suas formas de atuação. As câmeras [nos uniformes dos policiais] são um bom exemplo de como podemos trazer mais transparência, os dados preliminares mostram que há uma relação de que quanto maior a transparência das instituições policiais, menor sua letalidade.”, afirma o pesquisador.

A legislação brasileira e a pena de morte

Conforme compreendemos as sustentações teóricas e observamos as questões práticas das políticas de segurança pública no país, que são baseadas na lógica da necropolítica, surge um questionamento fundamental para o funcionamento da sociedade brasileira: Como as leis corroboram ou dificultam as ações truculentas da polícia? O principal regulamento em relação ao assunto é o artigo 144 da Constituição Federal que dispõe sobre a segurança pública: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, sob a égide dos valores da cidadania e dos direitos humanos, através dos órgãos instituídos pela União e pelos Estados”. Contudo, não revela a definição do que considera como segurança pública.

Apesar da legislação brasileira não definir as práticas, há normas internacionais que regulam a temática: a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas adotou, em 17 de dezembro de 1979, o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. De acordo com Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em sua obra Bandido bom é bandido morto, “o código contém normas específicas sobre como deve se comportar o policial, chamando a atenção para o respeito às leis e à dignidade da pessoa humana, à intolerância a atitudes truculentas e arbitrárias, como a tortura, bem como a necessidade da polícia responder aos anseios da sociedade e responsabilização de seus funcionários”. O Brasil, por ser membro da ONU, deveria adotar as medidas, porém apenas em 2011 surgiu a primeira norma sobre o uso da força por agentes do Estado.

O resultado desse atraso na elaboração de regulamentos para a atuação de policiais no país colaborou para o fortalecimento de práticas violentas. Assim, ao considerar os dados sobre a letalidade da PM carioca, os agentes julgam, condenam e aplicam a pena, definindo quem vive e quem morre no Brasil. E, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apesar da Constituição Brasileira, em seu artigo 5º, inciso XLVII (BRASIL, 1988), tratar sobre a proibição da pena de morte, prevista apenas em estado de guerra com outro país, policiais utilizam do artigo 23 do Código Penal, que afirma a não existência de crime se o agente o pratica em estado de necessidade, em legítima defesa, ou ainda em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. De acordo com o Fórum, “embora tenha sido implementada como um mecanismo para amparar legalmente o agente policial, pode ceder espaço para graves distorções, principalmente se a rotina indicar que não há investigação e acompanhamento adequado das ocorrências com resultado morte envolvendo policiais”. Para Felipe Garcia, do NEV-USP, fica claro que ocorre no Brasil uma falta de fiscalização dos agentes, gerando, sim, uma pena de morte na prática. “Elas [as vítimas das ações policiais] têm cor e localidade. É complicado do ponto de vista sociológico afirmar isso, mas há no mínimo vista grossa e má vontade do judiciário na hora de fiscalizar e punir policiais que desrespeitam direitos básicos”, afirma o pesquisador.

Como se dá a violência nos dias de hoje?

Atualmente, estudos já mostram que mais de 90% dos casos de mortes cometidas por agentes do Estado não são investigados ou acabam arquivados. Isso é exemplificado, até mesmo, na maior chacina na história do Rio de Janeiro: no Jacarezinho, 1 ano após a morte de 28 civis, 10 de 13 investigações do MP foram arquivadas.

Outra ação que mostra o descumprimento de leis da polícia ocorreu em 2019. Uma das tantas crianças vítimas desse projeto foi Agatha Vitoria Felix. A revista Veja apurou que entre 10 e 20 policiais invadiram o hospital para onde ela havia sido levada, e tentaram persuadir os médicos a entregarem o projétil retirado de seu corpo, em uma tentativa de mascarar a culpabilidade policial.

Um exemplo simbólico que também expressa o uso da força e de impuidade policial, foi o assassinato da vereadora Marielle Franco e de Anderson Gomes. Em 2018, o caso trouxe consigo um recado da política de segurança pública no Rio: o silenciamento dos direitos humanos é mais rápido que a justiça.

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