Articulação judaica contra o fascismo

*Alguns nomes foram trocados para preservar a identidade das pessoas envolvidas nos acontecimentos descritos a seguir.

Daniel Douek
12 min readMar 2, 2017

Do anúncio de um suposto evento com Jair Bolsonaro (PSC/RJ) no clube A Hebraica, em São Paulo, até o comunicado sobre sua suspensão, foram pouco mais de 54 horas. O deputado federal havia sido convidado pelo empresário Alexandre Nigri para uma entrevista, com plateia, mas o evento foi cancelado, antes mesmo de ser oficializado, após protestos de parte da comunidade judaica.

A articulação contra a iniciativa poderia parecer improvável, mas apenas para aqueles que não acompanham os fóruns de discussão da esquerda judaica. Nos últimos anos, judeus de várias matizes de esquerda têm se organizado, principalmente em grupos de Facebook, para trocar ideias e se manifestar frente a temas como o antissemitismo e a Ocupação israelense. Desta vez, a ação, em nome dos direitos humanos, contou com importante participação de setores de centro e de direita, contrários à presença de Bolsonaro em uma das principais instituições judaicas do país. Como lembrou Charles Kirschbaum, em artigo publicado no Pinat, a bandeira dos direitos humanos não é e nem poderia ser exclusividade de um único espectro político.

O imbróglio começou na última sexta-feira (24/02). Às 13h22, o jornalista Marc Tawil noticiava em sua página no Facebook: “ATENÇÃO: Jair Bolsonaro na Hebraica em 27.03, com plateia. Eu entrevisto”.

Minutos depois, Alexandre Nigri trazia mais detalhes sobre o encontro, também pelo Facebook.

O “furo”, porém, foi mal calculado. Não tardou para que reações de parte da comunidade judaica começassem a se espalhar pelas redes sociais.

“Não vejo sentido em dar moral para um cara como esse. (…) O cara é praticamente um símbolo de intolerância… Independentemente de posição partidária. É muito triste pensar que estaríamos dando espaço para uma pessoa dessa disseminar sua imagem, além do mais, nós como judeus sentimos na pele as consequências da intolerância banalizada, o que torna isso mais vergonhoso ainda!!”, publicou Nechama Leibovich*.

Nigri justificou dizendo que, com autorização do presidente da Hebraica, convidaria qualquer um que se propusesse a debater democraticamente matérias necessárias para o convívio civil dos judeus como comunidade judaica e como brasileiros. “Debater as ideias é um exercício de cidadania independente de militância partidária. Enquanto o mundo nos impinge suas ideias à força, devemos sempre tentar usar a diplomacia. É o que nos resta”. Disse ainda que o convite para Bolsonaro falar na Hebraica “se deu principalmente porque, em uma viagem a Israel, onde ele pretendia manifestar sua simpatia para com o povo judeu, foi hostilizado já no avião”.

De fato, em maio de 2016, o deputado foi alvo de manifestantes em voo para Paris, a caminho de Israel — a viagem havia sido capitaneada pelo Pastor Everaldo (PSC). Um grupo de judeus brasileiros também organizou protestos contra Bolsonaro em solo israelense (esse tema foi abordado aqui).

Cartaz preparado para o dia em que Bolsonaro visitaria o Yad Vashem, Museu do Holocausto, em Jerusalém

Emmanuel Levinas* foi o primeiro a compartilhar o post de Tawil em grupos que reúnem judeus brasileiros de esquerda, tais como JUPROG e Shlepers — שלעפערס. “Para começar bem o carnaval”, ironizou.

“Bora protestar?”, perguntou Rosa Luxemburgo*, no JUPROG. E o que se seguiu foram centenas de comentários, com propostas de ação variadas: de abaixo-assinado à projeção de imagens de mortos pela ditadura militar no Brasil nas paredes da Hebraica, passando pela difusão de vídeos em que o deputado ameaça minorias e sugere o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso, até uma uma ocupação do clube na semana anterior ao evento. Para organizar a ação, Anne Frank* e Olga Benário* criaram um grupo de articulação no Facebook que, em pouco tempo, já reunia centenas de pessoas.

O histórico era favorável. No Rio de Janeiro, em 2014, uma palestra de Bolsonaro no clube judaico Monte Sinai foi cancelada após protestos da comunidade judaica local.

Até aquele momento, porém, A Hebraica não havia se manifestado. A suposta entrevista com Bolsonaro ‘existia’ apenas em posts de Facebook dos que se diziam organizadores. Os sócios que ligavam ao clube perguntando sobre o tema — houve quem ligasse, inclusive, para se desassociar — recebiam respostas evasivas, dizendo que a questão estava “em análise”.

A impressão era a de que Tawil e Nigri haviam se precipitado com um anúncio extraoficial. E o grupo contrário à presença de Bolsonaro na instituição adotou a estratégia de pressionar pelo cancelamento antes de qualquer comunicado oficial.

Nos fóruns de discussão, debatia-se o teor do texto de um eventual abaixo-assinado. No domingo, 26/02, pela manhã, Mauro Nadvorny lançou o documento, direcionado à presidência da Hebraica. Escrito a várias mãos, o manifesto dizia:

Não aceitamos Bolsonaro na Hebraica-SP
Impossível ficar passivo ao convite para que Jair Bolsonaro venha ser entrevistado para uma plateia na Hebraica de São Paulo.
Tomados pela incredulidade de convite para entrevista com plateia de Jair Bolsonaro na sede do clube, nós judeus brasileiros chamamos a direção da Hebraica-SP para ponderar as implicações de tal atividade para a comunidade judaica brasileira como um todo, e a paulista em especial.
Bolsonaro representa a extrema direita brasileira e em todas oportunidades em que lhe é permitido falar, explora e ataca as minorias entre as quais, nós judeus, nos encontramos.
Ele é homofóbico, misógino, racista e antissemita por natureza e convicção. Idolatra a extrema direita neonazista e admira os torturadores da ditadura militar, a qual enaltece em todas as oportunidades.
Por tudo isso que em nome da memória de Vladmir Herzog, Iara Iavelberg, Ana Rosa Kucinski, Gelson Reicher, Chael Charles Schreier, e tantos outros judeus vítimas da ditadura, os abaixo assinados pedem que a Hebraica — SP não permita ato com Jair Bosonaro na sede do clube.

O objetivo inicial era o de que a iniciativa se somasse a outras, que ainda estavam em construção, mas o abaixo-assinado tornou-se a principal ferramenta para espalhar a mensagem de protesto, ganhando o apoio de famosos, como o ator Michel Melamed, que o compartilhou aos seus mais de 50 mil seguidores no Twitter.

Tweet de Michel Melamed

No meio da tarde, já eram 500 assinaturas. No início da noite, ultrapassava 1.200. Às 19h30, menos de 10 horas após a divulgação do manifesto, Alexandre Nigri voltou ao Facebook, agora para anunciar a suspensão do evento.

Vitoriosa, a petição foi encerrada na manhã de terça-feira, 28/02, com 3.807 apoiadores.

Como era de se esperar, a suspensão do evento incomodou setores da comunidade judaica que apoiam Jair Bolsonaro ou que, mesmo discordando de suas posições, gostariam de ouvi-lo falar no clube. Criado no site Petição Pública por uma página de Facebook intitulada Queremos Bolsonaro na Hebraica, um novo abaixo-assinado destinado à diretoria da Hebraica, agora em defesa da presença de Bolsonaro na instituição, passou a circular pelas redes sociais no próprio domingo, à noite. O texto dizia:

Queremos JAIR MESSIAS BOLSONARO na Hebraica, por direito democrático.
Tivemos conhecimento da possível visita do deputado JAIR MESSIAS BOLSONARO, que esteve recentemente em Israel, à HEBRAICA, para participar de um debate com os sócios; uma ótima oportunidade para que fossem esclarecidas questões interessantes sobre seus projetos e até mesmo sobre suas posições polêmicas.
Todavia, A ORGANIZAÇÃO DO EVENTO FOI ATACADA por grupos de viés esquerdista, os quais promoveram um polêmico abaixo-assinado para impedir a presença do deputado em questão no clube. Tal iniciativa partiu de uma pessoa de Porto Alegre, que nada tem a ver com o clube, e a maioria das assinaturas de seu abaixo-assinado foi e está sendo feita por esquerdistas de todo o país, em grande parte não pertencentes à comunidade judaica.
Segundo a Constituição Federal, em seu 5º artigo, entretanto, ‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’, por isto, nós — judeus e não judeus, sócios e simpatizantes do CLUBE HEBRAICA — queremos assegurar que tal direito constitucional prevaleça.
Sabemos que já houve eventos com a participação de políticos de partidos representantes da Esquerda no Clube, os quais ocorreram normalmente, sem que houvesse impedimento. Donde, concluímos que, de igual modo, deve haver espaço para políticos conservadores, representantes da Direita e demais vertentes de pensamento.
Acreditamos que um país melhor se faz com o debate de ideias e não com a censura aos que pensam de forma diferente do ‘establishment’.
AJUDE-NOS A COMBATER TAL ATO ASSINANDO ESTE ABAIXO-ASSINADO, O QUAL DEFENDE O DIREITO DEMOCRÁTICO DE LIVRE EXPRESSÃO E QUE APOIA A VINDA DO DEPUTADO AO CLUBE HEBRAICA DE SÃO PAULO, PARA UMA ENTREVISTA PRODUTIVA E TOTALMENTE DEMOCRÁTICA.
Desde já, contamos com a cordial compreensão da Diretoria da Hebraica para a manutenção do evento previsto para o dia 27 de março, com o presença do deputado.
São Paulo, 26 de fevereiro de 2017
1 de Adar de 5777

O abaixo-assinado que promovia a realização do evento desconsiderava o fato de que os setores que se opunham à sua realização iam além dos círculos da esquerda. E, equivocadamente, reputava a um único indivíduo a iniciativa que buscava o seu cancelamento.

A polêmica, aos poucos, ultrapassava os muros da comunidade judaica. Sites de notícia como a Revista Fórum e o Diário do Centro do Mundo anunciavam os protestos contra a presença de Jair Bolsonaro na Hebraica. E a segunda petição ganhava adeptos rapidamente, a exemplo do que ocorrera com a primeira.

Só então a Hebraica se manifestou, em carta aos associados, assinada pela presidência.

Queridos associados,
Acho que vocês têm recebido algumas informações equivocadas, publicadas e replicadas nas redes sociais. Mas, a pergunta é: estão se baseando em alguma publicação oficial do clube A Hebraica para este evento? Somente publicaríamos algo que estivesse totalmente definido, com escopo completo, o que não ocorreu neste caso.
O clube tem uma tradição de debates sociais e culturais, sim. Somos uma entidade apolítica. Para assuntos políticos da comunidade existem órgãos judaicos como a Conib e a Fisesp. O Clube A Hebraica prega a democracia e a livre expressão dentro dos limites éticos para quaisquer debates que aconteçam na entidade. Nesse caso específico, faltaram várias definições e, portanto, nada foi oficializado. Após conversa com a equipe do deputado, definimos que seria mais adequado fazer um evento no período de pré eleições, com todos os pré candidatos à presidência num modelo equilibrado e democrático, como sempre agimos. Portanto, não suspendemos nada, pois simplesmente não havia nada definitivo agendado.
Agradeço atenção de todos e espero que antes de sair escrevendo coisas seria importante verificar os fatos e agir com respeito com nossa entidade.
Avi Gelberg,
presidente
A Hebraica

A carta não foi suficiente para atenuar a discussão. Mauro Nadvorny, criador do documento contrário ao evento, passou a ser atacado em mensagens privadas de Facebook. Mais ainda após a exposição da polêmica nos jornais O Globo e Folha de S.Paulo na terça-feira, 28/02.

Comentários enviados a Mauro Nadvorny por mensagem de Facebook (Inbox)

Hannah Arendt*, então, notou que havia certo protagonismo feminino nas manifestações contra Bolsonaro, em especial devido ao papel de Anne Frank* e Olga Benário* na articulação do grupo que pedia o cancelamento da atividade na Hebraica. E, por outro lado, observou que das 1.213 assinaturas registradas até aquele momento no abaixo-assinado pró-Bolsonaro, apenas 232 eram de mulheres. Nesse sentido, a Folha de S. Paulo, ao entrevistar Mauro Nadvorny (contra Bolsonaro) e Tamara Segal (pró-Bolsonaro) deixou escapar essa dimensão de gênero que diferenciava os dois grupos — criando, inclusive, a sensação oposta daquela verificada por aqueles que acompanhavam o debate de perto.

E o que Jair Bolsonaro estaria achando disso tudo?

O jornal Folha de S. Paulo procurou o deputado, que preferiu não se manifestar. Porém, apenas algumas horas depois, Bolsonaro entrou no debate utilizando sua página no Facebook. Em um vídeo caseiro, o deputado criticava a “grande mídia” e pedia o apoio à petição em defesa do evento na Hebraica.

Ao evitar a imprensa e comunicar-se diretamente com os seus quase quatro milhões de seguidores, Bolsonaro adotava a cartilha que elegeu o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Seis horas após sua publicação, o vídeo já tinha mais de 22 mil likes e 4.900 compartilhamentos, tendo sido visualizado 297 mil vezes. O abaixo-assinado ultrapassava 24 mil apoiadores.

Olá, amigos, vocês têm acompanhado o que a grande mídia vem fazendo comigo nos últimos dias. Isso tudo, obviamente, porque eu estou em segundo lugar na corrida presidencial. E olhem que nem candidato eu ainda sou. Mas de todas essas infâmias, essas calúnias, da nossa grande mídia, nenhuma pesou tanto como a publicada no jornal O Globo no dia de hoje, assinada pelo jornalista Ancelmo Gois. Eu não quero desqualificar Ancelmo Gois para tentar se justificar de nada, mas a entrevista que ele deu ao jornal da ABI, número 343, de julho de 2009, bem diz quem é Ancelmo Gois. “Vivi algum tempo com o nome de Ivan Nogueira, porque estávamos na ditadura militar, e a gente só conseguia ir para a Rússia protegido pela KGB. Foi este órgão que me deu uma identidade e me transformou numa outra pessoa”. Realmente, Anselmo, te transformou em uma outra pessoa: um comunista mentiroso (sem querer, com isso, falar em redundância). Agora, a matéria do Ancelmo Gois no dia de hoje: “Bolsonaro idolatra a extrema direita neonazista”. É uma grande mentira! Ele quer, com isso, me jogar contra esse maravilhoso povo judeu. Estive há pouco tempo em Israel e conheci como eles vivem. Aquela ilha de democracia. Um povo que é exemplo para todos nós. E no que vier a depender de mim no futuro, faremos grandes acordos com o povo de Israel. Agora, o Anselmo também diz que eu fui desconvidado a comparecer na Hebraica, em São Paulo, agora no final de março. Mais uma grande mentira. Isso está em negociação. Eu apelo a você, que me segue aqui no Facebook: aqui, no link debaixo, tem um abaixo-assinado. Assine-o e mande para a Hebraica. Por que eu quero Bolsonaro na Hebraica? Lá sempre foi um local de debates, do contraditório, da verdade e da democracia. Acredito nesse povo judeu. Estamos juntos por um Brasil e por Israel melhor para todos. Um forte abraço a todos e fiquem com Deus.

A polêmica, assim, deve continuar. A “suspensão” do evento, em vez de seu cancelamento, dá margem para o clube A Hebraica buscar alternativas diante da pressão que vem recebendo.

Tradicionalmente, em tempo de eleições, a comunidade judaica, por meio da Confederação Israelita do Brasil e das Federações estaduais, organizam encontros com os principais candidatos aos cargos do poder executivo, momento em que expressa preocupações e anseios, além de debater propostas de seu interesse. É de se supor que reuniões desse tipo sejam realizadas em breve, muito provavelmente com a participação de Jair Bolsonaro, que tem aparecido em posição de destaque nas pesquisas de intenção de voto. Até o momento, porém, a Confederação Israelita do Brasil e a Federação Israelita do Estado de São Paulo não se manifestaram. À Folha de S. Paulo, o Rabino Michel Schlesinger, uma das lideranças da comunidade judaica brasileira, defendeu a suspensão do evento na Hebraica, para “que fique claro o compromisso do clube com valores de liberdade e democracia”. Segundo ele, “O judaísmo tem tradição de debate. Mas a liberdade de expressão não pode servir de plataforma para a propagação de ideologia discriminatória e apologética à ditadura”.

Erra quem pensa que a discussão sobre a presença de Bolsonaro na Hebraica diz respeito apenas à comunidade judaica brasileira ou, mais ainda, a um clube privado de São Paulo e seus associados.

A questão é do interesse maior na medida em que o deputado federal almeja se tornar presidente. Com aspirações políticas menos modestas, Bolsonaro precisará ampliar seu o círculo de apoio para além da extrema direita — dialogar com pequenos grupos radicais é suficiente para eleger-se em cargos legislativos, mas não para a conquista de um cargo executivo.

Se o histórico de afronta aos direitos das minorias e de grupos inferiorizados da sociedade brasileira ainda rende acusações, a presença em uma instituição judaica do porte da Hebraica, fora do contexto de um debate com presidenciáveis, seria utilizada como (falsa) prova de sua inocência.

Ainda que a suspensão do evento na Hebraica de São Paulo tenha sido resultado do engajamento de uma ampla frente democrática, formada por pessoas com posições políticas variadas, a existência prévia de uma rede de judeus esquerda tornou possível sua articulação.

Em um momento em que judeus de esquerda são questionados, tanto por uma certa direita (que os considera “de esquerda demais para serem judeus”), como por uma certa esquerda (que os considera “judeus demais para serem de esquerda”), os acontecimentos dos últimos dias serviram também para deixar uma mensagem clara: nós existimos.

*Alguns nomes foram trocados para preservar a identidade das pessoas envolvidas nos acontecimentos descritos acima.

O texto é resultado de cinco dias de leituras e debates silenciosos com dezenas de colegas que se envolveram diretamente nos desdobramentos descritos acima. A mim, coube apenas incentivo distante e a relatoria, segundo o que pude acompanhar. A todos eles, o meu agradecimento.

Ainda sobre o assunto, é recomendável a leitura dos textos Sem fantasia, de Prsicila Franco, e Para além do cancelamento do pré-convite à entrevista a JM Bolsonaro na Hebraica, de Charles Kirschbaum, ambos publicados no Pinat.

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Daniel Douek

Cientista social, pesquisador do Centro de Estudos Judaicos da USP e colaborador do Instituto Brasil-Israel.