Não é sobre o balançar das bandeiras

Danilo Jordão
5 min readSep 17, 2023

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O relógio bate meia-noite e quarenta e três. O rapaz avisa à sua namorada que está chegando em casa. A menina responde aos pais: “Deu tudo certo”. Outro jovem se aproxima do botequim sedento por uma gelada para compensar as horas de trabalho.

Desce escada, sobe escada. Tropeça no degrau. Pega faixa, estica, vê se não tem nenhum rasgado. Coloca a faixa e prende sobre a pequena extensão de parede. Repete.

Movimentações que fizeram parte da noite de sábado no Estádio Jornalista Mário Filho. Ou Maracanã, para os íntimos. Talvez porque sejamos todos íntimos. O olhar do torcedor, diante de mais um jogo decisivo, percorre por todo o palco do espetáculo. Também por aquele que vem de fora, o mais importante, da arquibancada.

A festa não é prometida dentro de campo. Time mal, com problemas de relacionamento, sem corresponder durante os últimos dias, semanas, meses. Mas o torcedor se prepara para instigar o jogador na parte que mais lhe tocou ao tornar determinante a escolha de sua profissão: a vida. Sejam motivos estritamente financeiros ou sentimentais, cabe ao atleta entender que não joga sozinho. E não joga pra si.

Esse é o comportamento que a torcida do Flamengo construiu para a tarde de domingo, provavelmente de sol, que se aproxima. Dezenas de torcedores, representando dezenas de milhões, se esforçaram ao longo da semana para trazer a confiança de volta aos jogadores e, por que não, à instituição. Campanha digital. Dinheiro arrecadado. Material comprado. Festa confeccionada.

No caso do Mais Querido, sensações distintas beiram o duelo decisivo que está por vir. O Flamengo quer vencer a Copa do Brasil por nada mais do que honra. Os jogadores e torcedores anseiam por dizer que não perderam tudo na temporada, que poderia ser a mais vitoriosa da história do clube. É um punhado de água quente durante o banho congelante. Já o adversário, comandado por treinador conhecido e reforços de peso, decide a vida; a possibilidade de título inédito e reafirmação dentro do cenário nacional de que o São Paulo é um gigante fadado aos grandes campeonatos. A balança está desmedida.

O problema é que o Flamengo começou a partida em desvantagem. Isso porque 90 minutos são detalhes na batalha que perdura desde o antes e após o depois. O futebol é o instrumento contraditório mais curioso do mundo. Desafia o espaço-tempo, briga com o ceticismo, impõe o infinito. Mas a determinação de uma pausa na beleza está lá, no balançar lento de uma bandeira.

O esporte não nos mostrou, pelo menos até agora, nada mais bonito do que o empunhar do mastro que rege a coreografia de todo um coro. A tarefa é simples: o torcedor segura um pedaço de bambu, movimenta os braços e cria uma sensação de poder tão grande capaz de superficializar qualquer protagonismo de 22 jogadores em torno de uma bola.

Mas a história desse esporte também nos prova que a beleza de qualquer material confeccionado por torcida está naquele que a empunha, participa e se identifica. Não significa que o torcedor por trás de cada movimento da arquibancada precisa ser esteticamente belo. O papo é outro: o bonito está no acesso. Nem todo mundo é um grande chef, mas um bom cozinheiro pode vir de qualquer lugar.

A precificação absurda dos ingressos nos estádios de futebol nos coloca em um ritual de preparação de um funeral. Perde-se o acesso, perde-se a beleza. O esporte não é mais o mesmo. Mas por que não?

Quando olho para a aura que ronda em torno do meu pai enquanto histórias sobre o antigo e verdadeiro Maracanã são contadas, me sinto um participante ativo de cada capítulo descrito. Porque a sensação que dá, diante de tanta beleza, é que o espaço abrigava todos que queriam se sentir parte. Exu clamava e o terreiro, composto por Geral, Arquibancada, Cadeiras e Tribuna, respondia em uma só voz.

Pouco vivenciei a possibilidade de democracia na cidade do Rio. Os únicos momentos, talvez, tenham sido no antigo Maraca, já afetado pelos acordos comerciais do Pan. Mas hoje, nunca me senti tão desconfortável quanto à sensação de ter perdido. O jogo dura muito mais de 90 minutos.

O Flamengo entra derrotado porque o torcedor não tem mais a opção de ir ao Maracanã. Não é novidade que a elitização das possibilidades de cidade democrática afetaram, principalmente e sobretudo, os estádios. Só que é difícil de aceitar.

Não viverei o balançar das bandeiras. Para a final de domingo, a Nação Rubro-Negra, representada por poucos, promete uma festa com bandeiras e bandeirolas, digna da estética de Maracanã dos anos 70. Ao mesmo tempo, a festa, embora provavelmente cative pela beleza da matéria-prima e das cores, deixa de fora o sangue. O sangue rubro-negro.

A missão dos jogadores não é fácil, mas a dos torcedores menos ainda. Ter de se contentar com a proibição de ir ao estádio, antes um espaço extremamente democrático, é desgastante. O futebol era muito mais legal.

O rapaz abriu a porta, sentou, deu um beijo na namorada e levantou para preparar o jantar. A menina, agora, conversa com os amigos por mensagem. Outro jovem esbraveja no bar após uma zoação mal colocada de um torcedor arquirrival. Nenhum deles estará presente no Maracanã durante o andar da carruagem de Flamengo e São Paulo.

Participaram da produção, vivenciaram o jogo, mas serão apenas mais alguns daqueles que sonharam. Por isso, o Flamengo sai perdendo. A decisão começou e o espetáculo já esfriou.

Não é sobre o balançar das bandeiras. A festa será linda, mas não terá alma. Detalhe que preocupa qualquer rubro-negro que ousa sonhar com mais uma heroica conquista em meio aos problemas que o próprio flamenguismo faz passar.

Não é sobre o balançar das bandeiras. É sobre a permissão a quem pode empunhá-las. Hoje, não é qualquer um. Hoje, não é quase ninguém. Por isso, repito, o futebol era mais legal.

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Danilo Jordão

O que veio primeiro: o sorriso ou o mundo? Na felicidade tudo se cria.