Senhor Milagre

Crítica de HQ

Danilo Téo
4 min readFeb 25, 2023

intro

Nesse clássico instantâneo de 2017, os leitores têm acesso a uma nova perspectiva do Quarto Mundo de Jack Kirby. Apesar de ser tão colorido, como qualquer gibi sobre os Novos Deuses deveria ser, essa iteração apresenta o panteão sob uma luz mais depressiva com um acompanhamento de sarcasmo e ironia.

história

A história começa com Sr. Milagre, Scott Free, sentado no seu banheiro em Los Angeles com ambos os pulsos cortados e sangue fluindo pelo chão. A HQ então corta abruptamente para Scott na ambulância e, em seguida, na cama do hospital. As próximas páginas são sobre Scott e sua esposa, Grande Barda, voltando para casa. Scott então recebe a notícia do próprio Pai Celestial: Darkseid obteve a equação anti-vida e Apokolips e Nova Gênese entrarão em guerra novamente. Inicialmente, Scott e Barda se dispensam do fardo de lutar na guerra. Porém a eventual morte do Pai Celestial faz com que Barda e Milagre sejam recrutados pelo novo Pai Celestial, Orion.

roteiro

Ao longo do livro é possível notar total interesse e investimento do escritor, Tom King, na construção da narrativa. Apesar de consistir no estilo característico da maioria das suas obras da época, o diálogo tipo resmungo de King funciona muito bem para essa história. Scott está em uma situação complexa e entorpecente. Arrastado para lutar em uma guerra entre deuses meros dias após uma tentativa de suicídio enquanto tenta sustentar uma vida saudável em Los Angeles como um artista de escape ao lado de Grande Barda. Toda essa confusão, pressa e distorção da realidade vêm de uma forma bem realista e íntima para quem lê justamente devido à condução críptica e resmungada do Tom King da história.

Relendo a HQ ficou mais claro que King quis contar a história de um super-herói — um deus — lidando com um seu caso de depressão. O autor explora como isso afeta o trabalho de Scott, o papel dele como líder militar de Nova Gênese e, claro, suas relações pessoais. Scott está completamente perdido e sem fé em si mesmo, mas se esforça para não deixar isso evidente, sofrendo em silêncio. Isso se aplica bem no final aberto que King deixou para o livro. Não se sabe qual o real estado de Scott no final da HQ. Ele está vivendo a melhor vida de todas com sua família dos sonhos na Terra? Está no inferno por estar preso à guerra sem fim entre Nova Gênese e Apokolips? Ele mesmo não sabe. E isso o incomoda e perpetua seu estado mental. Nunca confortável como se estivesse trancado — dessa vez sem escapatória — para fora da realidade.

arte

A arte do Mitch Gerads é, no mínimo, de tirar o fôlego. Cada quadro é super bem composto focando nem tanto em pequenos detalhes mas refletindo a visão dupla do Senhor Milagre sobre seus dois mundos: um mundo de violência e combate em Apokolips/Nova Gênese versus a vida pacata em Los Angeles. Este é o aspecto definitivo da arte dessa obra. Tanto Nova Gênese quanto Apokolips são retratadas em cores mais densas e escuras acompanhadas de diálogos sombrios, em certa cena jogando uma visão obscura sobre uma canção de ninar. Enquanto isso, tanto o leitor quanto Senhor Milagre podem se sentir aliviados em Los Angeles que é retratada em cores mais claras e amigáveis com diálogos divertidos e personagens fazendo caretas. Essas cenas retratam, majoritariamente, o cotidiano comum de qualquer casal trabalhador até mesmo contendo uma breve cena em que Senhor Milagre sai para uma noite de bebedeira com o Besouro Azul e o Gladiador Dourado.

Outro aspecto, que consegui apreciar mais na minha segunda leitura, foi a disposição dos painéis sempre na grade de 3x3. Optando por esse formato os criadores conseguem manter um ritmo constante na progressão do tempo da história, como se cada quadro fosse um segundo. Isso facilita contrastar a monotonia da vida cotidiana com as batalhas na guerra entre os deuses. As cenas em Los Angeles costumam retratar, de fato, uma fala ou duas em um único quadro, quase sempre em um plano fixo no protagonista. Isso, de uma tacada só, retrata o ritmo calmo da vida caseira do casal Free e o sentimento de desolação que se sente em um estado de depressão.

conclusão

Apesar de o final da HQ ser ambíguo e aberto à interpretação do leitor — o que pode fazer com que quem esteja lendo acredite que todos os 12 capítulos não adiantaram de nada — a lembrança dos sentimentos e emoções embutidos no livro vem facilmente se você para e relembra de todo o ocorrido. Toda a dor na guerra e toda a felicidade na vida comum em Los Angeles. Isso é o que faz o Senhor Milagre de King e Gerads valer a leitura. Tanto a história por si só, mas um exemplo excelente do quanto o meio das histórias em quadrinhos pode cumprir como arte e ferramenta narrativa.

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