Por que é essencial para você, pessoa LGBTQIA+, revisitar o passado da nossa comunidade?

Danilo Novais
4 min readApr 15, 2020

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Marsha P. Johnson

A cultura LGBTQIA+ como a conhecemos saiu do armário no final dos anos 60, permitindo que um grande número de pessoas também saísse. Desde então, o nosso maior compromisso sempre foi com o presente, a necessidade de gritar para o mundo “nós existimos”. Essa abordagem continua porque, afinal, cada nova geração de pessoas LGBTQIA+ nascida de pais heterossexuais em um mundo heteronormativo precisava criar sua identidade do zero, sem qualquer referência.

Cada capítulo da nossa história era novidade, porque se baseava no momento em que era escrito, como uma espécie de antropologia em tempo real. Depois dos Protestos de Stonewall, em 1969, obras sobre a liberdade sexual e o orgulho gay surgiram nos anos 70; seguidas por trabalhos que retratavam o HIV/AIDS nos anos 80 e 90; dando lugar para narrativas sobre casamento homoafetivo ou terapias de conversão nos anos 2000, e assim por diante.

Henry Scott Tuke, "Ruby, Gold and Malachite", 1902

Somente nos anos recentes, começamos a imaginar como era o nosso passado, o que trouxe à tona o fato de que muita coisa foi reescrita ou apagada. Sem falar que a ideia de que a homossexualidade começou em 1969 é apenas absurda. Obras como “O Bom Crioulo” (1895), de Adolfo Caminha, um dos primeiros registros homossexuais da literatura brasileira (apesar da perspectiva racista), simbolizavam um movimento literário, mas somente pós-Stonewall que a reconhecemos como parte da cultura LGBTQIA+ brasileira. E não aprendemos sobre elas no passado, porque estávamos ocupados demais escrevendo o presente.

Pergunte-se: quantos artistas tiveram suas produções queimadas ou analisadas de modo superficial, muitas vezes ignorando sua homossexualidade ou identidade? Quantos lapsos significativos do tempo protagonizamos e foram apagados ou alterados? E como você seria se tivesse conhecimento ou contato com essa história desde a infância?

Entre 1919 e 1933, pessoas trans recebiam assistência médica, emprego, acomodação e proteção legal no Instituto de Sexologia de Berlim, de Magnus Hirschfeld, quando o diálogo sobre identidade de gênero mal existia. O Instituto teve todos os seus arquivos queimados, além de boa parte de suas moradoras assassinadas pela Juventude Nazista. Fatos como esse teriam um grande impacto cultural se não tivessem sido desprezados e, talvez, a luta pelos direitos transexuais tivesse iniciado muito antes.

Simeon Soloman, Sappho and Erinna in a Garden at Mytilene, 1864

Outro ponto a se considerar é a relação da sociedade com a homossexualidade: ela sempre se deu de forma sazonal. Períodos como a Grécia Antiga, em que a prática homoafetiva não só era aceita como era estimulada, ou o próprio Nazismo, que perseguia gays e trans, são exemplos dessas eras transitórias. Refletindo sobre o agora, definitivamente, não estamos em uma janela de aceitação. Por isso, o orgulho se eleva como arma mais que necessária.

"Comportamentos que, em determinado ponto, pareciam adequados e aceitáveis — ou completamente inapropriados — podem, dentro de alguns anos, ser revertidos. Logo, se o passado pode mudar, o presente também”. — Sarah Waters

Ainda há muito para ser conquistado hoje, mas chegou a hora de entender que parte do nosso compromisso na luta também é com o passado. Assim como o movimento negro começa a resgatar suas origens, revisitar os acontecimentos para serem reescrevê-los respeitando o que de fato ocorreu, deixando de lado a visão colonizadora do homem branco, heterossexual, europeu e rico, pessoas LGBTQIA+ também precisam desenvolver esse olhar retroativo. Não só a nossa geração, também as futuras poderão ter referências essenciais para criar suas próprias identidades, sem o medo ou a tristeza de sentir que este mundo não foi feito para nós.

Este texto é parte traduzida do artigo “How Today’s Queer Artists Are Revising History”, de Jesse Green, para a The New York Times Style Magazine, com trechos originais escritos por mim.

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Danilo Novais

Content Strategist, Research & Insights. Faminto por novas ideias e boas conversas. Estou na newsletter (E)MANA: https://www.getrevue.co/profile/emana_orgulho