Como entregar leite de Kombi me mostrou que qualquer trabalho pode ser uma aventura.

Dan Queirolo
5 min readSep 1, 2021

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Conheci muitas pessoas que começaram a trabalhar ainda na infância. Alguns começaram com 8 ou 10 anos, outros aos 12 anos. Embora o Estatuto da Criança e do adolescente condene e proíba tal prática, isto faz parte da realidade de milhares de famílias pelo mundo. O trabalho infantil é proibido no Brasil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 2010, cerca de 123 mil crianças de 5 a 9 anos, trabalhavam para ajudar no orçamento familiar.

Se você não nasceu em berço de ouro, sabe que isto é uma realidade, e deve conhecer alguém que trabalhou na infância — se você mesmo não trabalhou. Num país no qual a desigualdade social e econômica é enorme, isto é, na maioria das vezes, comum e necessário.

Meu pai fez parte desta estimativa, só que lá no final da década de 60. Sempre me contava como começou a trabalhar aos seis anos vendendo picolé. Apesar de eu não ter nascido em uma família rica, eu não precisei trabalhar tão cedo. Aos seis anos, eu só me lembro de ir à escola e assistir desenho animado na televisão de casa.

A minha primeira experiência de trabalho foi antes da vida adulta, e teve ares de aventura. Para mim, é uma doce lembrança.

Lembro do meu pai me acordando. Eu não sabia que horas eram. Enquanto abria os olhos eu já pude perceber pelo breu no quarto, que o céu ainda estava escuro. Devia ser próximo das 4 horas da manhã. Acordar uma criança de 11 anos não é fácil, mas neste dia eu despertei rapidamente enquanto meu pai dizia que a gente precisava comer rápido pra sair.

Me recordo de vestir uma calça de moletom, uma camiseta e colocar uma blusa de frio pois era outono em Curitiba — e em Curitiba o tempo pode mudar a qualquer momento. Minha mãe passava pelo corredor e botava a cabeça dentro do quarto me dando várias recomendações: Obedece seu pai, viu? Vai ter que levar mais uma blusa pra não pegar resfriado. Tá garoando, não vai ficar na chuva!

Engoli correndo meu leite com Nescau e comi um pão sem mastigar direito. Eu estava ansioso por este dia. Meu pai me levaria para trabalhar com ele. Recentemente, ele havia comprado uma Kombi branca e entregava pães, leite, iogurte e outros produtos nas casas de pessoas que pagavam uma espécie de assinatura mensal.

Colagem autoral: Dan Queirolo

O trajeto era tranquilo. Geralmente a entrega era realizada dentro de condomínios de luxo, então não havia trânsito. O pai dirigia até uma casa, parava em frente, descia do veículo, abria a porta lateral, pegava os produtos previamente separados, entregava em uma cesta na frente da casa, voltava para a Kombi, e fazia tudo de novo. E eu estava lá para ajudar meu pai a reduzir este trabalho todo! O meu papel era pegar os produtos, descer do automóvel, entregar e voltar pra Kombi, assim meu pai continuava dirigindo e o trabalho terminava mais rápido.

Eu decidi que iria na parte de trás da Kombi, com os produtos, esperando que meu pai parasse o automóvel. Nas primeiras entregas, meu velho parava, eu descia e fazia a entrega mas depois de um tempo tanto eu quanto ele já sabíamos que poderia ser mais emocionante. Ele dirigia devagar, e eu já ficava preparado com a cesta de produtos na mão, pulava do veículo em movimento, fazia a entrega e pulava para dentro do carro que não parava. Para mim, que sempre tive uma imaginação muito fértil, isto foi o equivalente a uma aventura cinematográfica estilo Indiana Jones! Foi realmente inesquecível. Apesar de ter que acordar bem cedo, eu achei tão legal esse negócio de trabalhar, que pensei: É melhor eu crescer logo, para poder ganhar algum dinheiro fazendo algo tão divertido!

Manchete da TV com criança fofinha: Criança quer ser um profissional da construção

Percebi que pais e mães tem um papel fundamental na formação profissional dos filhos. Vemos nos filmes quando as crianças fazem trabalhos sobre a profissão dos pais, e que realmente os admiram. Levar os filhos para conhecer o trabalho, para ver as atividades que fazem, e dar uma pequena mesada por pequenos trabalhos como cortar grama ou lavar a louça, também podem auxiliar no desenvolvimento de um interesse saudável da criança pelo trabalho e por planejamento financeiro.

Meu pai não ficou muito tempo fazendo entregas e eu fui apenas poucas outras vezes me aventurar de Kombi, mas isto ficou marcado para sempre na minha memória. Trabalhar pode ser uma aventura. Basta mudar a forma como se encara o trabalho. Posteriormente, tive outros trabalhos nos quais eu senti este mesmo senso de aventura mesmo sem ter que pular de um veículo em movimento.

Mudar nossa forma de encarar o trabalho é o primeiro passo para você ser bom em tudo o que colocar a mão pra fazer. Tem gente que passa anos a fio em um trabalho, e nunca aprendeu nada mais do que as atividades para as quais foi designado.

Você pode me dizer: “Ei, mas eu só sou pago pra fazer isto! Se quer que eu faça mais tem que me pagar mais!”. Você pode continuar com este pensamento, é claro, mas lamento dizer que você será apenas um profissional medíocre.

Os empresários e responsáveis por contratações nas empresas estão buscando profissionais que sejam multitarefa e que sejam generalistas também. Isto não significa que você deverá saber tudo da empresa toda, mas se souber será muito valioso.

Se aventurar no desconhecido continua dando o mesmo frio na barriga, seja ao entrar em uma caverna escura em um local longínquo, ou iniciar um novo trabalho no qual você não sabe quase nada. Permita-se experimentar novos conhecimentos, tarefas, línguas, conversas. As melhores recompensas surgem quando nos arriscamos em aventuras no desconhecido.

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Dan Queirolo

Sou Polímata: multiartista, designer, empreendedor e aspirante à escritor.