xkcd, #2281

Afinal, por que não utilizar a Hidroxicloroquina no tratamento do Coronavírus/Covid-19?

Davi J. Fontoura Solla
9 min readApr 16, 2020

Demorei a decidir escrever algo sobre a “polêmica” da Hidroxicloroquina (HCQ) e Coronavírus. Tenho tido algumas discussões pessoais (breves nas redes sociais e um pouco mais aprofundadas no dia-a-dia), mas não pensei, inicialmente, em publicar nada a respeito. Acredito que as palavras mais importantes a serem ouvidas pela sociedade nesse momento são dos pesquisadores que atuam cotidianamente nas áreas relacionada diretamente ao problema. Infectologia e Medicina Intensiva não são minhas áreas de especialidade. Entretanto, acima de tudo, no momento, este é um problema da ciência, lato sensu. Considerando a proliferação de discursos e “laives” com “pseudo-pesquisadores de última hora” tão cheios de certezas, é fundamental que mais profissionais se posicionem trazendo as devidas incertezas e reflexões que o problema merece.

FILOSOFIA CIENTÍFICA

Most published research findings are false”

Antes de entrarmos no mérito da qualidade das recentes evidências e discutir metodologia, há algumas observações do âmbito da filosofia científica. De base, podemos (e devemos) partir do pressuposto de que a probabilidade da hipótese nula (ausência de efeito) é maior que a hipótese alternativa. Em outras palavras, most published research findings are false. A maioria dos resultados de estudos de fase I e II (in vitro, animais, pequenos estudos clínicos) não se confirma em estudos de fase III (ensaios clínicos). Isto se deve a alguns motivos, entre eles, a concepção primordial da hipótese. Não raro (leia-se rotineiramente) as hipóteses de tratamento em medicina originam-se de modelos indutivos (em oposição ao modelo hipotético-dedutivo de Popper). Ou seja, originam-se de observações empíricas com formulação de hipótese (e uma bonita justificativa fisiopatológica) a posteriori, ex post facto — e não da formulação de uma hipótese a priori com desenho de estudo visando refutá-la ou não. As primeiras utilizações da Cloroquina em uma doença infecciosa ocorreram há 60 anos, antes mesmo que se soubesse a sua causa viral. Desde então, inúmeros estudos se seguiram com diversos vírus (influenza, Epstein-Barr, Ebola, Zika, Chikungunya) e resultados variáveis, inclusive deletérios (seja aumento de replicação viral ou piora clínica), in vitro e em animais. Um recente editorial publicado na BMJ traz uma breve revisão desses estudos laboratoriais. Sistemas biológicos são muito mais complexos e dinâmicos que o ambiente “inerte” de estudos in vitro. Nem sempre é possível ou seguro atingir a dose da droga em estudo e a farmacocinética da interação da droga com outros medicamentos, hormônios, citocinas e outras moléculas inflamatórias é (quase) imprevisível, para dizer o mínimo. E essa imprevisibilidade tende a guardar relação direta com a gravidade da doença e extensão das disfunções orgânicas. Os estudos (ir)responsáveis por levantar a possível efetividade da HCQ contra o Coronavírus foram in vitro, em animais e pequenos estudos clínicos. Ensaios clínicos com tamanho e metodologia adequados ainda estão em andamento.

A frágil plausibilidade biológica

Outra reflexão fundamental diz respeito à plausibilidade biológica do grande tamanho de efeito alardeado por alguns entusiastas da HCQ. Fala-se em zero internações e até em zero mortes. Não há qualquer tratamento em medicina que seja 100% efetivo, o que só reforça a descrença nos resultados supostamente encontrados. Mesmo considerando esses relatos apenas como hipérboles de entusiastas, a probabilidade de um tamanho de efeito game changer continua sendo baixa. Ainda que reposicionamento de fármacos seja uma estratégia de pesquisa bem sedimentada, a taxa de sucesso é baixa e tratamentos não-específicos, que sejam indicados para várias doenças e processos fisiopatológicos distintos (e não baseados nos efeitos colaterais), dificilmente apresentam grandes tamanhos de efeitos para todas as diferentes doenças — o inverso ocorre para tratamentos específicos (bem exemplificados, no limite, pelas terapias com anticorpos, terapias gênicas ou baseadas em marcadores moleculares). Especificidade é um dos critérios de causalidade de Hill, os quais também podem ser aplicados à avaliação de supostos tratamentos. E, para finalizar o tópico de plausibilidade do efeito da HCQ, chama atenção a ênfase na argumentação quanto à (suposta) segurança e baixo custo. Ora, quando um tratamento é efetivo, não precisamos utilizar argumento de que este não tenha efeitos adversos e/ou que seja barato. Quando o tratamento é efetivo de verdade, utilizamos apesar dos efeitos adversos e apesar do custo.

METODOLOGIA CIENTÍFICA

Quanto à metodologia científica das evidências disponíveis até o momento sobre o efeito da HCQ no tratamento da Covid-19, nosso objetivo não será esgotar o assunto. Primeiro, porque seria algo longo e maçante. Segundo, e não menos importante, porque dá até preguiça de comentar todos os possíveis vieses nos primeiros estudos. Também não irei citar novamente os estudos de fase I, cujos principais problemas já foram discutidos nos parágrafos acima.

O começo da “hype

O primeiro estudo clínico a alçar a HCQ ao estado atual talvez seja o exemplo mais extremo, na história da medicina, de disparidade entre a qualidade do estudo e velocidade e extensão do impacto nas condutas médicas e na sociedade. Trata-se de um estudo francês pequeno (26 pacientes no grupo intervenção e 16 controles), sem poder estatístico adequado (para uma estimativa de tamanho de efeito já superestimado e tamanho amostral aquém do descrito no próprio artigo), não randomizado e com viés de seleção (grupo controle composto pelos pacientes que recusaram tratamento, tinham critérios de exclusão ou tratados em outros centros que não o centro principal), aberto (não cego), predominando pacientes assintomáticos ou leves (quase 80% da amostra) e sem desfecho clínico (desfecho primário laboratorial de carga viral; desfechos secundários clínicos não relatados). Como se já não fosse suficiente, 6 dos 26 pacientes no grupo intervenção com HCQ foram excluídos, incluindo 1 óbito (!), 3 pioras com necessidade de UTI (!) (todos ainda com carga viral positiva) e 1 interrupção do tratamento por efeito adverso.

O ensaio clínico chinês

Outro estudo digno de nota foi um ensaio clínico randomizado chinês com 62 pacientes (31 tratados com HCQ e 31 no grupo placebo). Este estudo incluiu também predominantemente pacientes leves (saturação de oxigênio >93% e relação PaO2/FIO2 > 300 mmHg) e num tamanho amostral menor que o previsto (300 pacientes no protocolo original). Outra diferença para o protocolo foram os desfechos relatados. O relatório final do estudo descreve como desfecho principal o tempo para recuperação clínica (definida pela melhora de tosse e febre), o qual não havia sido pré-especificado (bem como a evolução da pneumonia na TC), mas não descreve os desfechos virológicos e hematológicos que haviam sido pré-especificados. Um total de 23 (37%) e 25 (40%) pacientes, respectivamente, não tinham febre e tosse no início do estudo (e não ficou claro como isso foi considerado na análise). Ainda no desfecho principal de tempo para melhora da tosse e febre, deve-se notar que a análise foi feita pela comparação de média pelo teste T (utilizado para amostras normais). Fundamentalmente, uma análise de sobrevida teria sido mais bem indicada para de fato captar o tempo até o desfecho e, sobretudo, dada a natureza do desfecho, pelo provável desvio importante da normalidade no primeiro e último dia do estudo (efeito teto e/ou efeito chão). Por fim, não foi discutido o significado do mínimo efeito clínico da diferença encontrada entre os grupos (1 único dia a menos de febre e tosse). Outras questões menores sobre discrepância entre o protocolo do estudo e o que foi efetivamente realizado podem ser conferidas aqui.

“Mas no Brasil está funcionando…”

Na realidade brasileira, muito tem sido divulgado na imprensa leiga e nas mídias sociais sobre a experiência da Prevent Senior com a HCQ. Para ser sincero, tomei melhor conhecimento a partir de uma Live entre um economista do Instituto Mises Brasil, um virologista/microbiologista da USP e um médico/diretor da Prevent Senior (não citarei nomes pois não se trata de crítica pessoal — e a referida Live não merece divulgação em minha opinião). Na ocasião, fiquei profundamente impressionado pelo tom conspiratório do discurso dos dois primeiros, e pelos argumentos grosseiramente não-científicos do último. Este último defende que a que a HCQ funcionou porque reduziu as internações e óbitos quando passaram do cenário 1 (dar a medicação a casos graves, com diagnóstico tardio) para o cenário 2 (medicação para casos leves ou até suspeitos, com diagnósticos mais precoces e denominador maior por aumento no número de diagnósticos). Somente para citar alguns vieses grosseiros, cenário menos grave (viés de seleção), tratado mais precocemente incluindo outras medidas de cuidados gerais sabidamente efetivas em qualquer patologia (viés de co-intervenções), com possíveis não doentes, sem grupo controle, seguimento incerto (viés de transferência e possível viés de sobreviventes), e et cetera. Ainda, viés de confirmação é altamente plausível por conflito de interesse (ainda que, e até provavelmente, inconsciente). Adianto que não conheço mais detalhes da casuística da operadora de saúde/instituição, e acredito que ninguém conheça, porque não há publicações científicas a respeito e os dados não foram divulgados completamente (“show me the data!”). Ressalto que essas críticas à interpretação da experiência não-controlada com a HCQ não significam crítica à qualidade da assistência médica da operadora de saúde/instituição.

O que esperar do futuro breve

No outro lado da moeda, como era de se esperar aliás, já começam a sair as primeiras notícias de estudos sugerindo ausência de benefício e possível malefício (1, 2). Também não são estudos perfeitos (e para um deles, particularmente, tenho até dúvida se é um estudo real). Será apenas uma questão de tempo até termos mais evidências disponíveis. Existem mais de 100 estudos clínicos em andamento envolvendo a HCQ/CQ, mas chamo atenção para alguns a estarmos atentos nas próximas semanas e meses: SOLIDARITY (mega trial da OMS avaliando HCQ/CQ, Remdesivir, Lopinavir + Ritonavir, Lopinavir + Ritonavir + Interferon beta-1a ou placebo); DISCOVERY (estudo europeu avaliando HCQ, Remdesivir, Lopinavir + Ritonavir, Interferon beta-1a ou placebo); e os estudos brasileiros da série COALITION I, II e III, os quais avaliam, respectivamente, [HCQ, HCQ + Azitromicina ou placebo] em pacientes leves, [HCQ ou HCQ + Azitromicina, sem grupo placebo] em pacientes moderados e [Dexametasona ou placebo] em pacientes graves. Pessoalmente, não tenho muitas expectativas para a HCQ. Diria que o mais provável é ser neutra, não me surpreenderia se for deletéria e me surpreenderia se ficar demonstrado benefício clínico.

NOTAS FINAIS

Acredito que seja realmente sem precedentes um caso de uma medicação com estudos com tantas falhas que tenham, tão rapidamente, influenciado a conduta de tantos médicos em tantos lugares do mundo… a ponto, inclusive, de dificultar a inclusão de pacientes em ensaios clínicos bem desenhados — o receio de não conseguir incluir pacientes no grupo placebo foi o motivo principal para ausência de grupo placebo no COALITION II e há relatos de hospitais incluídos no DISCOVERY em que até 4 de cada 5 pacientes recusam a participação para não ter chance de não receber a HCQ. O cenário é propício para um novo caso de Medical Reversal (the phenomenon of a new trial — superior to predecessor because of better design, increased power, or more appropriate controls — contradicting current clinical practice). E reverter condutas médicas largamente difundidas envolve tempo, resistência, custos (financeiros e, às vezes, de vidas) e perda de credibilidade pela sociedade. E nem vamos comentar o maniqueísmo político que a polêmica da HCQ desencadeou, contribuindo para o acirramento da polarização “direita/esquerda”.

Enquanto evidência indireta contra a efetividade da HCQ, em pacientes internados já está ocorrendo um uso amplo desta há pelo menos cerca de duas semanas, mas o número de mortes e a letalidade seguem aumentando (nos EUA e Brasil, por exemplo). Ainda que se possa argumentar que a internação desses pacientes é longa (e, portanto, haveria um atraso na percepção de efeito da HCQ), há uma clara contradição com o discurso de melhora rápida e espetacular.

Precisamos resgatar o princípio da não-maleficência (não só individual, mas coletiva) e não me convence o argumento de utilização da HCQ como uma esperança. É justificável o uso compassivo (por compaixão, “compassionate use”) quando a manifestação do desejo em usar a HCQ vem do paciente/familiar, dando o “benefício da dúvida” em certa consideração à autonomia do paciente, desde que devidamente informados os riscos. Mas é uma situação completamente distinta o uso indiscriminado de uma medicação sem o mínimo rigor científico baseado na crença do médico (sem esquecermos que, nestas situações, a utopia da decisão compartilhada e consentida pode ser uma falácia, dada a desproporção hierárquica e de conhecimento técnico entre o paciente e seu médico). Assim, vejo, na verdade, como um desrespeito à esperança dos pacientes e familiares. Teria mais valor um plano terapêutico realista e prognóstico informado com empatia do que uma falsa esperança.

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Davi J. Fontoura Solla

Médico Neurocirurgião (UFBA/USP). Research Fellow (Cambridge U., UK). Doutorado e especialização em Neurorradiologia Intervencionista em andamento (USP).