Você não precisa monetizar as suas paixões

Dayanne Dockhorn
Revista Subjetiva
Published in
7 min readMay 14, 2019

Eu trabalho o mínimo possível.

É feio dizer isso? Acho que sim. Nessa cultura louca de trabalhar até a exaustão ou pelo menos até “ficar rico”, é inesperado, estranho e até ingrato dizer que não gosto de trabalhar. E também é feio porque o trabalho nos define como pessoa e quem não trabalha é automaticamente marginalizado.

Mas é a verdade. Eu não gosto de trabalhar. Acontece que trabalhar é vender tempo e eu quero muito que o meu tempo permaneça aqui, comigo.

Eu trabalho o mínimo possível na atividade que me dá dinheiro para cobrir os meus gastos, que são bastante baixos. O que eu faço com o resto do tempo é uma escolha minha.

Pode parecer que eu não tenho ambição alguma, mas é porque a minha ambição não tem a ver com números e carreiras com futuros previsíveis. Ela ultrapassa os limites de empresas e de arranha-céus. A minha ambição é voltada à criatividade. Eu não quero nem espero um trabalho que pague milhões. O legado que eu espero deixar não é material. Eu poderia trabalhar mais para ganhar mais? Sem dúvidas. Mas aí eu não teria tempo restante para construir significado na vida.

Quando estamos constantemente sendo pressionados a nos reafirmar como seres produtivos, se torna fácil nos tornarmos algo que não queremos ser. Até porque, como sempre esquecemos, os nossos próprios quereres são totalmente condicionados. Se vivemos em uma sociedade que valoriza o material acima de tudo, os meus e os seus desejos naturalmente se inclinam para esse lado.

O que eu tento sempre lembrar é que eu não estou aqui para colecionar zeros no banco (nenhum de nós, aliás, embora muitos façam disto sua missão de vida). Não vim aqui me divertir como se não houvesse amanhã. Entendo que a vida não é passeio, e o mundo não é nosso parque de diversões (vejo muitos estrangeiros dizendo exatamente isso: “the world is our playground”, só que não é).

A vida é trabalho constante, mas não daquele que paga dinheiro. Confuso. Eu sei.

O trabalho que ninguém poderia comprar

Eu escolho trabalhar o mínimo para que eu tenha sanidade suficiente para me dedicar aos meus próprios interesses, aqueles que não pagam dinheiro.

Eu escrevo regularmente sobre o que sinto que deve ser dito. Artigos, livros, poemas, rabiscos… Chame do que quiser. Eu leio, escuto, discuto. Me conecto. Alimento meu corpo com comida feita pelas minhas mãos. Aprendo sobre o mundo dentro de mim e o mundo à minha volta. Trabalho para criar (e às vezes destruir) pontes entre pessoas e ideias. Entre o que é material e o que não é.

Viajo, conheço, vou, volto e, principalmente, me mantenho em constante transformação. Às vezes só descanso. Descansar é uma parte tão importante e negligenciada do trabalho.

Infelizmente, nada disso é considerado trabalho de verdade porque essas horas não significam números entrando no cartão que eu uso para comprar comida.

Pago ou não, é trabalho do mesmo jeito. Consome tempo, dedicação, esforço, energia física, mental e emocional. Mas é o tipo do trabalho que parte do desejo, não da obrigação. Eu não sou obrigada a fazer qualquer uma destas coisas, eu faço por escolha, porque elas significam algo para mim.

Antes, eu queria converter as horas criativas na minha fonte de renda. Unir o útil ao agradável, não é o que dizem? “Se você faz algo bem, nunca faça de graça”? Mas não somos todos gananciosos a esse ponto. Eu sei que eu não sou. Posso oferecer o meu melhor sem esperar nada em troca quando existirem oportunidades — e há muitas.

Hoje, em meio a uma cultura de monetização de estilos de vida e de virtualmente qualquer atividade, eu entendo que não preciso ganhar dinheiro com a minha criatividade. Entendo que esse papo de monetizar sua vida e suas paixões é furada.

Colocar uma etiqueta de preço em algo não significa que aquilo tem valor. E se você coloca essa etiqueta de preço na sua vida ou em algo que você cria por amor, é perigoso cair na armadilha de se medir exclusivamente por quanto você fatura.

Em outras palavras, eu entendi que não preciso estragar o que eu crio por amor colocando em cima disso a pressão de pagar o meu aluguel. Se um dia isso acontecer naturalmente, ótimo. Enquanto não acontece, eu percebo que aprecio muito o ato de criar pelo simples prazer de criar. E não há nada de errado em ter um trabalho chato que pague dinheiro para que eu possa continuar criando por prazer.

Agora, por favor, não me venha com aquela velha história de “trabalhe com o que você ama e você não terá que trabalhar um dia da sua vida”. Que baboseira absurda.

Trabalho pago, independente se você gosta dele ou não, continua sendo trabalho. E esse discurso comum inflacionado por fotos bonitinhas no Instagram com a legenda “faça o que você ama” não inspira. Pelo contrário, serve apenas para nos fazer sentir inadequados nas posições que ocupamos.

“Trabalhe com o que você ama, e você vai acabar odiando o que ama” é uma afirmação que não combina com as fotos, mas é assim que eu vejo. Quando a obrigação entra na equação, ela tem o potencial de destruir o seu amor.

A sua criatividade não é obrigada a pagar as suas contas

Finalmente entendi. Eu não preciso que a minha criatividade pague as minhas contas, porque esta simplesmente não é a sua função. Não é com essa intenção que eu escrevo.

Existem coisas que precisam ser feitas, e estas se tornam trabalhos pagos. Casas precisam ser construídas, por exemplo. Já a arte que vai decorar as paredes é puramente arte. Ela não precisa estar ali. Arte não precisa ser feita, na prática, mas sem ela a vida não tem muita cor ou sentido.

Dizer que não estamos aqui para trabalhar, pagar contas e criar filhos é uma afirmação já bastante gastada. Mas quando todos que vivem ao nosso redor reproduzem esse comportamento automático, eu preciso lembrar: estamos aqui para criar, aprender e conectar. E por menor que sejam as suas criações, elas são seu legado e seu legado, com sorte, torna o seu canto do mundo um pouco melhor.

Seja uma poesia, um quadro, um jardim, uma música, murais de grafite, quadrinhos, esculturas de lixo reciclado; criamos o que precisamos, o que fala conosco. Não porque estas criações são particularmente úteis ao mundo ou nos concedem uma identidade valorizada como artistas, mas porque são necessárias aos seus criadores. Porque elas nos transformam.

Cada processo criativo tem valor intrínseco, independente do resultado. O processo é a recompensa. Isso vai na contramão do que somos ensinados, que o fim é o propósito e a recompensa é monetária. Por isso tantas pessoas reprimem qualquer célula criativa dos seus corpos.

Quando a recompensa é tida no processo, não no resultado, nascem as melhores criações. Elas são despretensiosas, não carregam a intenção de mudar a vida de pessoas estranhas ("escrevi este livro para AJUDAR as pessoas"), mas de transformar a si, primeiramente, porque o que realmente estamos fazendo quando estamos criando por prazer é formar conexões. Nos conectamos com a nossa essência, entendemos melhor nosso lugar no mundo e abrimos espaço para diálogo com quem virá a testemunhar as nossas criações.

Eu escrevo somente o que eu preciso escrever, sem a pressão de ter que criar algo fantástico por ter boletos esperando em cima da mesa.

Depois de formada, fiquei por muito tempo sofrendo e me sentindo completamente inútil por não conseguir um trabalho que pagasse as contas. Associei meu valor como pessoa ao dinheiro que eu ganhava por mês (zero), e me deprimi. Eu sabia que tudo que eu tinha vivido durante os anos de pesquisa acadêmica tinham sentido e potencial de melhorar muitas vidas, mas não me pagavam para fazer isso “no mundo real”.

Em troca, queriam me pagar 500 reais para trabalhar seis horas de segunda a sexta como secretária de uma startup criada por dois homens que, provavelmente, faturariam mais do que o suficiente para pagar um salário decente a uma secretária. Mas eles optaram por aproveitar a mão de obra barata, que é abundante no Brasil.

E eu considerei. Contei para todos, animada, porque na realidade eu estava desesperada. Desesperada para adquirir aquela identidade, aquela carteira de trabalho que me definiria, finalmente, como alguém útil.

Mais tarde eu entendi que aquele trabalho não seria proveitoso para mim em nenhum quesito. Nem de perto. Eu sabia, também, que não queria viver para trabalhar, independente do trabalho que fosse, independente de gostar ou não desse trabalho. Escolho viver o meu tempo, em vez de sobreviver a ele.

Não somos imortais e isso me faz escolher conscientemente trabalhar mais tempo não no que me dá dinheiro e conforto material, mas no que me torna melhor e no que torna o meu cantinho do mundo um pouco melhor também.

Adeus ao que eles decidem que vale milhões
e olá ao que me faz sentir
milionária.

Sou nômade, poeta, escritora. Arqueóloga e antropóloga por formação. E também sou muito mais do que isso. Meu nome é Dayanne. Se você gostou do texto, me escreva!

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Dayanne Dockhorn
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