Partir, mesmo sem saber o que está por vir

Dayanne Dockhorn
Revista Passaporte
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5 min readMar 27, 2019

A nossa viagem começou em junho de 2018.

A intenção nunca foi fazer uma volta ao mundo. Desde o começo, encarei essa mudança como um novo modo de viver — tendo a liberdade de conhecer diferentes países e continentes — e não como uma única viagem programada.

Para tornar isso possível, nós deixamos muitas coisas materiais para trás, aprendemos a consumir conscientemente, a dizer não para qualquer excesso. Inevitavelmente, reduzimos nossa bagagem para duas malas e duas mochilas, que levamos sempre conosco. Deixamos de ter endereço fixo. Deixamos de ter um lugar para chamar de casa. Deixamos de lado muitos confortos e aprendemos a nos adaptar em cada nova cidade.

(Aqui, vale fazer um parênteses e ressaltar que seguimos trabalhando. É muito comum pensarem que quem vive viajando é rico. Mas isso não poderia estar mais longe da verdade. É o nosso trabalho que permite esse modo de vida.)

Entre junho e setembro de 2018, percorremos o México e os Estados Unidos, visitando e vendo tudo pela primeira vez. Mas em outubro nossa viagem foi interrompida.

Estávamos em Missoula, Montana, planejando uma roadtrip de alguns dias pelos parques Glacier e Yellowstone. Já tínhamos alugado um apartamento por um mês, subido algumas montanhas, aprendido a usar spray para ursos e visto alces comendo graminha no jardim de casa. Mas poucos dias antes de ver a neve pela primeira vez, compramos passagens de volta para “casa”. Só de ida, e sem expectativa de retorno. Essas passagens nos levaram de um extremo do mundo para o outro e liquidaram a nossa poupança.

E voltamos.

24 horas de viagem depois, estávamos de volta ao mesmo lugar de onde havíamos partido: Montevidéu, Uruguai. E a partir daí nada mais seria o mesmo.

Alfonso, pai do Martín, faleceu dia 2 de outubro. Foi repentino, e ninguém estava preparado. Mas ninguém nunca está preparado para a morte. Um dia antes, ele estava me desejando “feliz cumpleaños” pelo telefone.

Foi aí que percebi que o medo que me impediu de sair de casa por dois dias antes do meu aniversário tinha razão de ser. Eu sentia que algo muito ruim ia acontecer. Só que não tinha nada a ver comigo. Mas também tinha tudo a ver comigo.

Alfonso foi um dos homens mais gentis e honestos que conheci. Passei de visita na sua casa durante várias semanas ao longo dos anos e ele não poderia ter sido mais receptivo.

Em muitas formas, ele era parecido comigo. Ou eu era com ele. Nós dois não sabemos fingir, nem mentir diante de outras pessoas. Nem mesmo quando as cortesias sociais são reivindicadas. Nossos rostos demonstram tudo que sentimos. Somos bravos por fora e moles por dentro. E só percebi isso depois que voltei para a casa dele e ele não estava mais lá. Pelos quatro meses que ficamos no Uruguai, caminhei nos seus sapatos — literal e figurativamente. Meu chinelo arrebentou e eu passei a usar os dele. E eu senti, por longas semanas, que estava tomando seu lugar. Eu cuidava da casa como eu sabia que ele cuidava. Xingava os cachorros do vizinho. Cozinhava as receitas dele. Passava todo o tempo com a sua família.

Passamos quatro meses no Uruguai com reservas de dinheiro baixas demais para pensar em fazer qualquer viagem. Com um ânimo baixo demais para pensar fazer qualquer coisa que não o essencial.

Ficamos paralisados, em um limbo entre estar e não estar, ser e não ser. Negando o que havia acontecido e querendo mais do que tudo voltar no tempo. Estávamos, os dois, tentando entender se algum dia voltaríamos ao que éramos, ao que tínhamos construído. Era tudo assim tão facilmente destrutível? Em um dia, em um pico de montanha. No outro, em um buraco. Era possível que isso acontecesse? Aparentemente sim.

A dor nos acompanha até hoje. Ela nunca foi embora. Ela deixou marcas e nos transformou em outras pessoas.

Saímos do Uruguai quebrados, e voamos para Lima em janeiro, sem saber ainda como seguir. Não pensamos muito, só compramos as passagens. Lima era um destino relativamente perto e barato. Depois de tanto tempo em uma cidade pequena no interior do Uruguai, estar em uma cidade grande como Lima foi um choque. Pensei que logo ficaríamos bem, que voltaríamos à nossa rotina normal. Só que mudar de localização geográfica não diminui a dor.

Ficamos dois meses na cidade e não conhecemos nada dela. Precisávamos desse tempo para estar sozinhos, de volta ao trabalho e de volta ao planejamento que ser nômade requer. Precisávamos voltar a nós mesmos sem a pressa de visitar pontos turísticos, tirar fotos e fingir felicidade onde há tantas outras coisas acontecendo. Precisávamos, sobretudo, fazer as pazes com o caminho que escolhemos. Viver viajando pode ser lindo nas fotos, mas está longe de ser férias. É cansativo e muito mais difícil do que viver em um lugar só.

A Dayanne que começou essa viagem oito meses atrás não é a Dayanne que vive agora.

Mas todo fim é também um começo. Toda ferida também é a nascente de alguma transformação. Aprendi tanta coisa nestes meses que é difícil colocar em palavras. A cada dia em um lugar estranho, sou mais consciente de mim e do mundo ao meu redor.

Essa semana foi especial porque foi a primeira vez que nos sentimos como nós novamente. Saímos do conforto do limbo e decidimos nos testar — tanto física como emocionalmente. E fomos até um dos lugares mais inóspitos e lindos que já visitamos — o Parque Nacional Huascarán, no Peru.

Não compartilho nossas viagens por vaidade. Não tenho nada do que me gabar. Não acordo cedo para tirar fotos nas praias desertas, não faço itinerários de pontos turísticos, não dou dicas de acomodação barata, não passo correndo por uma cidade para dizer que estive aí, não edito minhas fotos até elas ficarem irreconhecíveis, não risco países de uma lista.

Compartilho apenas porque escrevo. Escreveria mesmo se não existisse rede social para publicar. Então publico sobre esse nosso modo de viver, que é tão novo, para inspirar.

Ao tornar essa vida possível para nós, nós a convertemos também em uma possibilidade para outras pessoas. Como uma vez alguém fez para mim.

Ao estar me tornando mais consciente do mundo — por justamente estar vivendo experiências em lugares muito diferentes — espero tornar quem me lê um pouco mais consciente também.

Mas não é sempre um mar de rosas. Às vezes cansa e eu questiono as minhas escolhas pelo menos três vezes por dia. E eu tenho vontade de voltar, e fazer o que todo mundo faz, seguindo o caminho já traçado por tantos e dizendo-me contente com o que já conheço.

Viver de forma diferente é muito solitário. É abrir caminho no meio do mato, sem enxergar muito bem para onde você está indo. É abraçar sempre o desconhecido.

Mas é assim que eu vivo agora. Dando passos no escuro sem saber ao certo o caminho. Colocando a mão na massa sem esperar determinado resultado. Pintando antes de ver a imagem completa. Escrevendo antes mesmo de saber o que quero dizer ou as palavras certas para me fazer entender. Partindo, mesmo sem saber o que me aguarda adiante. E escolhendo olhar para a luz, mesmo sabendo o quão confortável é a escuridão.

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Dayanne Dockhorn
Revista Passaporte

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