Por que eu não me arrependo de ter um diploma inútil

Dayanne Dockhorn
Revista Subjetiva
Published in
8 min readMay 17, 2018

2015 foi um ano excelente para o departamento de Antropologia e Arqueologia da UFPel. Oito anos após a inauguração do curso, nossa turma se formou em número recorde.

Éramos oito formandos.

A cerimônia foi feita em nossa primeira sala de aula, o que deu um toque especial àquilo que não parecia em nada com uma formatura de faculdade. Não teve toga, nem flores, nem discursos, nem uma caminhada da glória, nem festa, pouquíssimos familiares.

Já se passaram quase três anos desde que recebi o diploma, mas foram poucas as vezes em que me intitulei antropóloga e arqueóloga com a convicção de que essa é minha formação. Algumas vezes, alguém chegou a mencionar meu título para me apresentar. Outras, eu o recitei nos consultórios médicos para preencher a lacuna “profissão”, o que sempre provocava exclamações surpresas como: “Arqueóloga! Que diferente! O que você faz?”

"Eu passo mais tempo nos museus do que a maioria das pessoas", eu deveria responder.

Por vontade própria, porém, eu nunca pensava em mim como antropóloga e arqueóloga. Hoje, meu diploma está pendurado na parede, pegando pó, literal e figurativamente. Não o utilizei, durante todo esse tempo, para absolutamente nenhum fim. Parece poético que ele esteja, de fato, emoldurado e celebrando uma conquista passada, que nada tem a ver com a minha vida agora.

Nunca trabalhei com a Antropologia nem com a Arqueologia depois que saí da faculdade. Mas, ao contrário do que a maioria das pessoas hoje presume, eu não acredito que meu diploma seja inútil.

Eu tinha 17 anos quando optei por mudar de cidade para cursar um curso que era, ao mesmo tempo, exótico e pouco aceitável. Não era bonito dizer que eu faria Antropologia quando todos os meus amigos estavam cursando Direito, Medicina, Odontologia e Engenharia. Ninguém entendia minha escolha, e eu mesma não era capaz de explicá-la. Por sorte ou destino, hoje eu tenho certeza de que essa foi a melhor decisão que eu já tomei.

Ao contrário da maioria dos estudantes que adentram a universidade cedo demais, eu nunca troquei de curso e nunca tive vontade de largá-lo no meio do caminho. Em retrospectiva, estes eram ótimos sinais para continuar exatamente onde eu estava. E eu continuei.

Sempre fui a mais quieta da família, e minha mãe diz que eu falo somente o essencial. Mas longe de ser uma coisa ruim, falar “o essencial” te permite escutar e observar. Quem fala demais ou emite opiniões sobre tudo pouco percebe e pouco escuta o que os outros têm a dizer. Eu passei anos apenas ouvindo, mas aprendi mais do que todos aqueles que não paravam de falar.

Sempre senti imensa curiosidade pelo mundo à minha volta. Queria experimentar o diferente, me imergir em uma cultura oposta à minha e ver como aquilo me faria sentir e reagir. Essa curiosidade não foi herdada e eu não conhecia, à época, alguém que se sentisse como eu. Acabei escolhendo, não por acaso, um curso que incentivou essa loucura de aprender mais sobre os outros e se desprender de si mesmo.

Em oficinas do LECA que ministramos para crianças, aprendi que você primeiro precisa construir o diálogo para então construir o interesse.

Não é para todo mundo. Eu sei. Cursar Antropologia, afinal, te torna uma máquina de questionamentos e reflexões. Enquanto passamos 18 anos (ou mais) sendo ensinados a sentar na sala de aula, ouvir e não falar, me surpreendi quando, na faculdade, esperavam que eu, do nada, adquirisse uma posição sobre os mais diversos assuntos.

Pelo menos é isso que acontece nos cursos de Ciências Sociais. Somos ensinados a questionar, argumentar e basear nossas visões em fontes, porque muito do que pensamos já foi pensado por alguém mais, ou seja, tem precedentes. Nosso trabalho, afinal, é observar, analisar, pesquisar. Não tiramos uma opinião das nuvens, ou pelo menos não deveríamos. Livros não são escritos sem anos de pesquisa prévia.

Aprendi, aos poucos e na marra, que nossa educação não precisa ser pautada por regras rígidas e uma ideia única de como uma aula deveria ser. Fui estimulada a pensar, a exercer reflexões e a encontrar minha própria voz.

Na Antropologia, e em grande parte dos cursos pelos quais eu passei durante os quatro anos de graduação (Letras, Cinema, História, Artes), as aulas não eram uma via de mão única, como geralmente espera-se que elas sejam, com um professor sendo o centro das atenções.

Pelo contrário, a maioria das nossas aulas foi uma constante troca. Aprendemos que nossas experiências também são válidas e que temos muito a contribuir, porque não somos seres desprovidos de conhecimento. Não somos sacos vazios que assistem aulas para serem preenchidos por alguém que supostamente sabe mais.

Mesmo assim, quando você entra num curso como o de Antropologia, e até mesmo depois que você se forma, as únicas perguntas que estranhos e conhecidos fazem são: por que você escolheu esse curso? Com o que você vai trabalhar depois?

Não é por acaso que, logo depois de formada, eu entrei em crise justamente porque não tinha essas respostas, nem perspectiva de tê-las. Ninguém que sai de um curso como esse tem perspectivas de emprego. Muito pelo contrário. Ser formada em Antropologia não significava nada para ninguém. Quatro anos, centenas de aulas, inúmeros questionamentos, diálogos, trabalhos de campo, pesquisas e um diploma não me deram um “emprego dos sonhos”, de carteira assinada, com hora para entrar e para sair. Não me deram a perspectiva de um consultório chique, de um escritório, e muito menos o respeito daqueles ao meu redor.

Colocando a mão no barro (o que também é uma ótima metáfora para o que eu fiz durante esses quatro anos). Estudei cerâmica grega, mas quase exclusivamente por fotos. Colocar a mão no barro me mostrou o outro lado da moeda. Da mesma forma os trabalhos de campo — tanto etnográficos como arqueológicos.

Por outro lado, eu tinha aprendido a olhar com outros olhos o que eu já conhecia, e a sentir empatia por aquilo que era tão distante de mim. Mais do que empatia, na verdade. Aprender sobre questões tão abstratas como o ser e o estar no mundo permite criar uma consciência crítica que nunca mais nos deixa em paz (para a infelicidade das pessoas à nossa volta).

Abri os olhos para uma nova forma de ver o mundo, da qual eu não era o centro. Me despi dos meus preconceitos, conheci realidades muito diferentes da minha, e muito próximas de mim. Aprendi a ser humana, a me colocar no lugar do outro e a não tomar a minha experiência como verdade universal. Passei a não me importar só comigo, com o meu dinheiro, com as minhas coisas e com a minha felicidade.

Mas eu não tinha me dado conta disso até pouco tempo atrás, quando passei a questionar diversas coisas que geralmente ninguém questiona.

Eu não queria trabalhar oito horas por dia em um emprego que eu não gostava só porque me diziam que “a vida é assim mesmo”. Eu não queria ganhar o mínimo para viver enquanto uma pessoa, sozinha, ganha o suficiente para sustentar a população de um país inteiro. Eu não queria ter duas semanas de férias por ano. Eu não queria ficar a vida toda morando num só lugar porque foi nesse lugar que eu nasci e aprendi a viver. Eu não queria ter toda a minha vida minimamente pré-planejada aos vinte anos sem nenhuma perspectiva de mudança. Não queria pensar em casar ou comprar uma casa e um carro e mergulhar em dívidas só porque “é isso que todo mundo faz”. Não queria viver pensando somente em mim.

Eu olhava para as pessoas ao meu redor e me dava conta de que não era assim que eu queria viver. Todo mundo estava infeliz, vivendo por puro hábito, passando para os filhos as mesmas infelicidades, repetindo um ciclo que nunca termina.

Mas justamente porque eu sou antropóloga, e porque eu fui treinada para ver o que quase ninguém vê, eu fui compreendendo que eu não precisava fazer todas essas coisas que eu não queria fazer.

A arqueóloga na Acrópole de Atenas. Realizada.

Minha ideia de trabalho, por exemplo, estava totalmente fechada na ideia do senso comum: 8 às 18h, empresa, escritório, carteira assinada. Minha ideia de felicidade e sucesso, atada a coisas materiais para as quais eu não ligava.

Fui compreendendo que, embora exista grande pressão social para seguir a norma, o mundo não caía ou parava de rodar se eu atrevesse a me desviar desse caminho. As melhores ideias e criações saíram de pessoas que não se conformaram com o status quo. Essas pessoas tiveram curiosidade o suficiente para imaginar um mundo diferente. Sem elas, não teríamos eletricidade, nem direitos humanos, nem aviões, nem Netflix.

E foi assim que eu passei a me desapegar dessas ideias que não eram minhas e realmente pensar no que eu gostaria de estar fazendo. Eu podia fazer qualquer coisa. Então o que faria?

Não demorou muito para eu ter várias respostas na ponta da língua. Eu queria desesperadamente aprender a tocar piano. Sempre adorei a sonoridade dele e queria poder me expressar através dela. Queria andar a cavalo pela primeira vez, fazer aulas de dança, criar algo com as minhas próprias mãos, aprender um novo idioma, visitar a Grécia, aprender a me defender sozinha, conhecer mais sobre meu corpo e minha mente, deixá-los mais felizes e saudáveis. Queria ter a liberdade para escrever e criar o que eu quisesse.

Ode à Alegria foi a primeira música que aprendi, coincidentemente ou não.

Eu não sabia na época, mas hoje entendo como esses quatro anos foram decisivos para mim. Sem a Antropologia e o tremendo choque de realidade que foi essa formação e toda essa experiência, eu definitivamente não estaria aqui. Eu não estaria fazendo exatamente o que eu quero fazer.

Então, não. Eu não me arrependo de ter um diploma inútil.

--

--

Dayanne Dockhorn
Revista Subjetiva

ruim com as palavras. me escreva: dayannedockhorn@gmail.com me encontre nas redes: @dayannedockhorn