Quem ensinou você a pensar?

deborah nogueira
5 min readJan 12, 2019

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Mestra Aoyama, a professora de Monja Coen no mosteiro de Nagoya, durante onze anos, contava a história de uma aldeia habitada por ladrões. Hábeis, orgulhavam-se de roubar sem ferir as pessoas. Um deles, certa, subiu ao mosteiro para meditar. Na entrada, como de costume, os praticantes deixam seus calçados, lado a lado. A mestra notou, no entanto, que aquele homem havia deixado um pé de sapato em uma ponta e o outro longe, no extremo oposto. Estranhando, perguntou ao praticante o porquê da atitude. “Venho de uma aldeia de ladrões” — explicou o homem — “e sei que, se eu deixar os sapatos juntos, fica mais atrativo e mais fácil para alguém roubá-los”.

Como se sabe, a mentalidade do grupo nos transforma e chegamos a fazer coisas das quais vamos nos arrepender mais tarde. Tanto nas manifestações de rua como no futebol é lastimável. É triste ver, não só as torcidas, mas também em campo, os jogadores se desentendendo. E, mais ainda, vendo gente machucando os outros com brutalidades que provavelmente não aconteceriam se o agressor não estivesse em um grupo.

Como eu me protejo, como ando, onde quer que eu esteja, vestido com a armadura do bem? Não é fácil. É preciso treinar. Voltemos aos estímulos neurais. Temos que buscar estimular a mente, os neurônios, para o compromisso de nunca fazer o mal. Mesmo que sejamos muito provocados, não devemos responder com violência.

No livro A coisa mais preciosa da vida (ed. Palas Athena, 2013), da mestra Aoyama, traduzido pelo templo Sôtô e lançado em 2013, há uma história sobre Buda, um discípulo e uma corda.

Buda caminhava e encontrou um pedaço de corda caído no chão. Pediu ao discípulo que a pegasse e dissesse que cheiro tinha. O discípulo apanhou a corda, aproximou-a do nariz e respondeu que a corda tinha um cheiro insuportável. Seguiram andando e Buda encontrou um pedaço de papel jogado no caminho. Novamente, Buda pediu ao discípulo que sentisse seu odor, e a resposta foi a de que tinha um aroma agradável. Então, Buda observou: A corda não era fétida desde o começo, mas tocou algo malcheiroso e ficou com esse odor insuportável. O papel não tinha esse aroma agradável desde o começo, mas, como embrulhou algo perfumado, ganhou esse cheiro bom. Da mesma maneira, vocês devem ter bons amigos. Um bom amigo é tudo na vida, é a maior fortuna que se pode ter. E não se deve esquecer que isso também vale para o mal. É para o que o ditado popular alerta ao avisar: “Antes só do que mal acompanhado”. Uma pessoa que é bastante dócil quando está sozinha pode se transformar e fazer toda sorte de más ações quando está dentro de um grupo repleto de más intenções. É um bom lembrete de quão importante é rodear-se de bons amigos.

Há quem diga que não tem um amigo verdadeiro, que as pessoas estão cada vez mais cruéis, que querem só se aproveitar. Mas existe, sim, o amigo verdadeiro, desde que você seja também um amigo verdadeiro. A partir daí, você vai se conectando com o espaço puro do outro, mas sem expectativas sobre ele. Seja você mesmo verdadeiro e transforme a realidade. O zen é encontrar esse estado por meio da prática da meditação. Silenciar, ouvir as vozes interiores, e até essas se calam. E quando tudo se cala entramos em contato com o sagrado. O sagrado que é silencioso, imenso e que permeia tudo e todos. Não há um só ser, uma só criatura que esteja separada. A ideia da separação é uma distorção da realidade. Somos um só corpo, uma só vida, e temos ligação com tudo o que existe.

A pessoa que fez ou faz coisas ruins não era antes necessariamente assim. Onde foi que ela pegou, como a corda, esse “cheiro” que não é bom? Aquela pessoa não tinha esse “cheiro” no começo, não é? Se nos lembrarmos de cada um de nós mesmos ou de um criminoso terrível, será que não foram bebês bonitos, que riam e alegravam pai e mãe? Onde foi, nessa caminhada, que essa pessoa se perdeu?

Nós também podemos nos perder. Como que, nesta caminhada da vida, em vez de nos perdermos, rumamos ao encontro do sagrado? Significa mantermos a essência do ser. E termos comprometimento. Porque o compromisso é importante, principalmente o que você faz consigo mesmo. Ser um ser do bem. Não se envolver com malefícios nem com nada que possa tirá-lo do Caminho verdadeiro. Você consegue? Você tem conseguido? Qual é o seu compromisso com a sua própria vida?

No budismo, dizemos que há vários diabos e demônios que vêm atrapalhar o praticante. Quando você se compromete e quer seguir esse Caminho, as dificuldades e obstáculos virão. Como você os está superando? Como você põe seu compromisso em prática no dia a dia? Cumprimenta as pessoas na rua? Você sente alegria ao encontrar as pessoas com quem trabalha? Mesmo aquela que não gosta de você? Porque há alguma razão, de alguma forma você a incomoda — mas não precisa ficar incomodado com o incômodo que causa. Se você chega de coração aberto, a pessoa desmonta. Não se trata de forçar um relacionamento de amorosidade, mas da capacidade de olhar para cada ser humano como ser sagrado.

Por isso budistas cumprimentam as pessoas com namastê: o sagrado em mim cumprimenta o sagrado em você. Reconhecer a sacralidade em cada criatura, em cada aspecto, em cada grão de areia, em cada molécula. Tudo manifesta esse sagrado. O compromisso com o outro é o de cuidar.

De Osasco, em São Paulo, recebemos este telefonema:

— Monja, eu sempre tento fazer o bem, mas às vezes não consigo.

— E o que você faz?

— Fico triste.

— Ficar triste é o primeiro passo, mas deve-se seguir no esforço para corrigir o erro, buscando perceber onde a gente não foi suficientemente bem e como corrigir. Não adianta ficar só no primeiro passo, porque outras situações ocorrerão e é melhor estar preparado para o que vai acontecer na vida.

— Eu estou preparada; tão preparada que passo até mal.

— Não. Também não dá para ficar preparada demais. Temos que buscar um ponto de equilíbrio. Temos de ser como uma corda de violão afinada: se estiver frouxa, o som não é bonito; se estiver esticada demais, arrebenta. Para esse equilíbrio, recomendo zazen, sentar-se em meditação, afinar o coração, a voz e a vida com a vida do Universo e do sagrado. Nem mais nem menos.

Texto retirado do livro “Zen para distraídos”, Monja Coen, 2018. s2

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