Por que nós queremos Christian Grey?

“Cinquenta tons de cinza” e a Síndrome de Estocolmo

Deixa de Banca
8 min readMar 1, 2015
Ilustrado por Palindrômica

Quando o livro “Cinquenta tons de cinza” foi lançado, muito se disse sobre o que seu sucesso representaria. Após a emancipação feminina (sic), as mulheres querem ser submissas de novo? Todas as mulheres têm o desejo secreto por BDSM? E por que diabos Anastasia não sabe como usar um computador? Agora, com o lançamento do filme, as mesmas questões voltaram à tona.

Acredito que o sucesso de “Cinquenta tons de cinza” não está em resgatar a submissão feminina para a mulher moderna. Está no fato de ser simplesmente um produto perfeito da indústria cultural: une uma roupagem supostamente subversiva (cultura BDSM) a uma ideologia tradicional (amor romântico).

Ao mesmo tempo em que “choca” o público pela ousadia, reafirma os valores da sociedade. Isso torna “Cinquenta tons de cinza” extremamente atraente — e palatável. Ele nos alicia com a novidade e nos tranquiliza ao não provocar nenhum questionamento além do esperado: Christian e Ana vão ficar juntos no final?

Ao discutir “Cinquenta tons de cinza”, pode ser tentador questionar se BDSM é ou não opressor para mulheres. Embora essa seja uma discussão interessante, não é o que pretendo levantar por aqui. Meu argumento é justamente que o BDSM em “Cinquenta tons de cinza” é irrelevante. É só mais um tempero para impulsionar a venda de exemplares. O verdadeiro cerne do livro está na promoção do amor romântico.

Tirando algemas, chicotes e palmatórias, não há nada em “Cinquenta tons de cinza” que se distinga de um romance chicklit. Sei disso porque fui uma ávida consumidora desse tipo de literatura durante a adolescência. Já li diversas vezes cenas em que os heróis beijavam as mocinhas à força — e isso deveria ser romântico por mostrar como eles não podiam conter os próprios impulsos diante da mulher desejada. No livro “A mulher eunuco”, publicado em 1970 (!), Germaine Greer analisa uma série de romances femininos:

O enamorado, no romance, é um homem de maneiras dominadoras claramente superior à sua amada, sendo mais velho ou de nível social mais alto, de mais entendimento ou inteligência.

É autoritário, mas profundamente preocupado com sua dama, a quem protege e guia de maneira claramente paterna.

Pode ser severo e desinteressado, ou pelo menos desagradável, mas a heroína do romance o dobra pela pura força da modéstia, da beleza e do poder enfeitiçador de seus vestidos.

Bingo! Christian Grey é um CEO bilionário aos 27 anos, enquanto Anastasia Steele é apenas uma universitária seis anos mais nova, que trabalha como caixa em uma loja de ferramentas. Quando se trata de sexo, a assimetria se mantém: ela é virgem, ele é experiente. Grey não é dominante só na cama. O personagem constantemente toma decisões por Anastasia, seja sobre como ela deveria se depilar ou qual método contraceptivo usar.

Grey alerta que “não é do tipo romântico”, mas Steele está determinada a dobrá-lo e ele tenta conceder às necessidades românticas dela. Para completar, ele tem um passado secreto e um temperamento difícil. Christian Grey é o herói romântico quintessencial.

Aí está: “Cinquenta tons de cinza” não é uma obra subversiva e muito menos inventou a roda. Ele não é diferente dos livros da coleção Sabrina que nossas mães devoravam. Por outro lado, é preciso ter bom senso para não vociferar “Cinquenta tons de cinza” como o grande criador do patriarcado.

Duvido que E.L. James planejava maleficamente promover a opressão masculina sobre as mulheres enquanto escrevia o livro. É uma fanfiction, afinal. James estava dando vazão aos seus desejos mais íntimos, criando um universo de fantasia que jamais poderia ser reproduzido na realidade. E esse sonho repercute em várias mulheres — eu inclusa, apesar de ter cursado “Comunicação e Gênero” na faculdade e escutar Bikini Kill.

Se Christian Grey é a projeção do ideal romântico, Anastasia Steele é a projeção de nós mesmas. O romance tem um efeito parecido como jogar RPG. Graças à narração em primeira pessoa, adotamos o ponto de vista de Anastasia e passamos a nos identificar com os anseios dela.

A pergunta a ser feita não é “Como ‘Cinquenta tons de cinza’ mudou as mulheres?”, porque o efeito de mudança que ele tem na estrutura da sociedade é nulo. Em vez de criar algo novo, apenas reforçou uma ideologia já vigente. É um sintoma e não uma causa. Eu pergunto então: Por que nós queremos Christian Grey?

Ilustrado por Palindrômica

Anima e animus

O psiquiatra Carl Jung acreditava que alma humana poderia ser dividida em dois elementos: anima, de aspecto “feminino”, e animus, de aspecto “masculino”. De acordo com o gênero ao qual somos assignados no nascimento, acabamos reprimindo um dos aspectos. Mas esse potencial não-realizado continua lá. Por isso, para ter um senso de completude, podemos acabar projetando nosso animus em outras pessoas, em vez de buscar desenvolvê-lo em nós mesmas — até porque não temos consciência desse potencial.

Em uma das primeiras cenas de “Cinquenta tons de cinza”, José, um amigo de Anastasia, tenta beijá-la à força enquanto a garota, bêbada, o repele timidamente. Aí Grey aparece e empurra José com agressividade. A mensagem é clara: Anastasia, uma pessoa insegura, com dificuldade de controlar e manipular situações, projeta o seu potencial assertivo em Grey. É o que nós, mulheres, fomos ensinadas a fazer. Em vez de buscar desenvolver esse potencial adormecido, devemos procurá-lo nos nossos pais, irmãos, namorados, maridos.

Essa união, no entanto, gera uma completude ilusória, pois é baseada em co-dependência. As pessoas presas nesse laço não aprendem uma com as outras para se desenvolver e evoluir, elas se mantém estagnadas. É possível argumentar que Grey, cuja infância foi permeada por abuso, enxerga em Anastasia um lado fragilizado com o qual se identifica, mas busca reprimir e controlar. Em vez de encarar a própria fragilidade, ele prefere manipular e controlar mulheres frágeis. Isso é escapismo, não crescimento.

Amar é sobreviver

Mas se homens agridem e oprimem mulheres, não parece loucura projetar neles o nosso poder de assertividade e atribuir a eles a capacidade de nos proteger? Nem tanto. No livro “Loving to Survive”, publicado em 1994, as autoras Dee L.R. Graham, Edna I. Rawlings e Robert K. Rigsby argumentam que os homens impõem às mulheres uma condição semelhante à Síndrome de Estocolmo.

A Síndrome de Estocolmo é uma condição na qual a vítima sequestrada desenvolve sentimentos de empatia e simpatia pelo sequestrador. Irracional à primeira vista, esse comportamento na verdade é uma estratégia de sobrevivência. A vítima acredita que sentir hostilidade contra o sequestrador pode reduzir suas chances de sobreviver, e portanto acaba se associando a ele. Esse padrão pode explicar porque ainda confiamos, amamos e defendemos homens, apesar de constantemente sermos confrontadas com abuso, agressão e ódio.

O que permite que a Síndrome de Estocolmo floresça está na percepção da vítima, e não necessariamente em fatores externos, objetivos. Existem quatro condições principais: ameaça à sobrevivência, gentileza do sequestrador, isolamento e incapacidade de fugir. Agora vamos ver como esses fatores podem ser aplicados a relação de Anastasia e Christian.

Ameaça à sobrevivência

Segundo “Loving to Survive”, “a ameaça de abandono pode ser vivida por alguns como uma ameaça à sobrevivência psicológica e física”. Ao encontrar Christian, Anastasia finalmente pôde se sentir completa, de acordo com o mecanismo animus/anima que já expliquei por aqui. No entanto, essa união é constantemente ameaçada pelas vontades de Christian, as quais ela deve se submeter.

Após Grey explicar as regras necessárias para que os dois pudessem ter um relacionamento, Anastasia questiona: “O que eu ganho com isso?”. Christian responde: “Eu”. É com esse “eu” que Grey barganha e retém o poder dentro da relação. Anastasia aceita entrar em relacionamento sadomasoquista não por curiosidade ou interesse próprio, mas para conseguir ter acesso ao homem que deseja. Ela não pode fazer demandas, ou então o afasta. O abandono é uma ameaça à sobrevivência de Ana, já que ela se tornou co-dependente de Christian.

Gentileza

Para a vítima com Síndrome de Estocolmo, os supostos atos de gentileza do sequestrador se sobrepõem aos de violência. O fato de que Christian Grey rastreia (duas vezes!) o celular de Ana, invade a sua casa e vende seu carro sem autorização são elementos diminutos na narrativa em comparação aos presentes que ele dá e a preocupação paternal com a sua “segurança”.

O fato de Christian condescender a alguns desejos de Ana, como levá-la para jantar com os pais ou fazer sexo baunilha com ela pela primeira vez são enquadrados como uma demonstração da intensidade de seus sentimentos por ela–e da sua bondade. “Minha mãe nunca me viu com uma mulher”, diz Christian após apresentar sua mãe para Ana. Até então um homem saturninamente privado, Grey não tem receio de ser visto em público com Ana ou de apresentá-la como namorada. Esses elementos são dispostos para nos fazer enxergar Ana como uma mulher especial, capaz de despertar gentileza em Christian.

Isolamento

Christian pede que Anastasia assine um contrato de sigilo, para que ela não possa divulgar informação alguma sobre o relacionamento entre os dois. Além disso, ele é incapaz de deixá-la sozinha. Quando Ana viaja para visitar a mãe porque precisa de um tempo, ele aparece de surpresa. Isso fortalece o laço de co-dependência entre ela e Christian, e deixa Anastasia isolada.

A vítima com Síndrome de Estocolmo enxerga sequestradores como mocinhos protetores e os policiais resgatadores como vilões. A mesma lógica funciona aqui em “Cinquenta tons de cinza”. No livro, não é apenas o contrato de sigilo que impede Ana de falar com sua amiga Kate sobre Christian: Ana teme que Kate se vingue de Christian ou interrompa o relacionamento entre ele e Ana.

Incapacidade de fugir

A vítima com Síndrome de Estocolmo é incapaz de perceber oportunidades de fuga, ou se percebe, não foge por medo de retaliação do agressor. É comum que, após o resgate, ela viva assombrada pela imagem do agressor, pois teme que ele possa voltar a qualquer momento para repreendê-la por ter escapado–sido infiel. A escolha do single “Haunted” (Assombrado) de Beyoncé para a trilha sonora do filme acaba de ganhar implicações mais perturbadoras do que românticas.

Embora Ana tente, ela parece incapaz de abandonar Christian definitivamente. Ela volta. Por quê? O padrão de co-depedência já foi estabelecido. Na cena final do filme, Ana o abandona. Deixa em cima da mesa do apartamente dele o computador presenteado e a chave do carro, tokens de afeição de Christian–já que não consegue demonstrar afeto com palavras e ações, Grey o materializa em objetos. A porta do elevador se fecha, sem antes que os dois se encarem nos olhos e murmurem o nome um do outro. Os créditos sobem. Sentimos a certeza de que eles vão voltar. Estão presos.

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