A Cidade Neoliberal na Periferia do Capitalismo
Lara Caldas*
Henri Lefebvre deixou uma enorme contribuição para o entendimento da construção urbana como parte do processo de produção e reprodução social, entendendo que a forma urbana não é só um reflexo das relações de poder, como parte constitutiva dessas. Lefebvre faz suas observações em meados do século XX, quando a automatização e visões cientificistas sobre a sociedade ganhavam protagonismo. Foi a era de ouro dos distantes subúrbios e de cidades planejadas de acordo com princípios modernistas. Lefebvre alerta que se por um lado essa nova forma urbana refletia um ‘novo modo de produção’ capitalista, a nova forma de organização do espaço também subvertia as relações sociais existentes, reforçando a ideologia dominante (sob o capitalismo, aquela da burguesia). Assim, deslocava-se os trabalhadores para longe dos centros, dos empregos, da vida urbana; ampliavam-se as distâncias, muitas vezes intransponíveis sem um automóvel individual; desenhavam novos espaços de poder que dificultam a contestação, o protesto; criava-se espaços mortos, homogêneos (visual e socialmente), que só poderiam ser lidos a partir do céu, destruindo as práticas sociais que pertenciam à rua, que dependiam da legibilidade do espaço, que requerem a presença e conexão humana.
Considerando que o neoliberalismo pode ser entendido como “a razão do capitalismo contemporâneo” (Dardot e Laval, 2016), e entendendo que todas as relações sociais são dependentes de contexto, busco explorar neste ensaio o que há de particular à urbanização neoliberal no capitalismo periférico. O termo neoliberalismo fica brevemente aqui definido como “o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (Dardot; Laval, 2016). E ainda, por não ver contradição, complemento essa definição de origem foucaultiana com um elemento da concepção marxista, entendendo que essa forma de governo capitalista é um projeto de classe, e serve à manutenção da hegemonia burguesa.
O neoliberalismo, como fenômeno global, tem sido amplamente estudado nos últimos anos. Entretanto, a abordagem predominante nas produções costuma estar localizada no Norte Global. Por isso é necessário fazer algumas considerações ao transpormos esse conceito para analisar o caso do Sul, uma região marcada pelo colonialismo, de condição de “capitalismo periférico”, e estruturas sociopolíticas cindidas por enormes desigualdades (como já alertou, por exemplo, Luciana Ballestrin neste artigo de 2018). Observamos em nossa região um neoliberalismo de estilo mais agressivo, violento e autoritário, não raro alinhado a ditaduras, e que se beneficia de uma estrutura de poder muito mais desigual que aquela do Norte, e isso se manifesta e diferencia nossas dinâmicas urbanas.
A urbanização neoliberal é frequentemente descrita a partir da chave “espaços de consumo, consumo do espaço”. A financeirização da terra e ativos imobiliários aceleraram padrões de gentrificação, e as novas tecnologias de plataforma contribuem para a precarização de serviços, resultando em espaços mais estratificados. A segregação urbana se reproduz em símbolos de status, distâncias, desertos de serviços, e valores de troca excludentes. Se adicionarmos o sujeito neoliberal à essa análise, e nos voltarmos para as relações sociais produzidas, vemos um universo organizado em torno de relações privadas. O ideal da vida urbana passa pelo carro próprio, pela residência isolada da rua, pela aquisição e contratação de serviços privados: da educação à saúde. Todos os desafios de acesso podem ser vistos como algo a ser transposto pelo esforço e mérito individual, e, portanto, toda exclusão é justa. Naturalizadas as desigualdades, o “público” perde seu sentido de virtude igualitária e, ou é mercadorizado por algum símbolo de status, ou passa a ser visto como algo depreciativo, para os que “não conseguem ter acesso a nada melhor”. O sujeito neoliberal idealiza sua individualidade, e o urbano se constrói em relações sociais que correspondem a esse ideal.
Então, de forma geral, senão global, o neoliberalismo idealiza a experiência individualista, condiciona a cidadania à capacidade de consumo, e reimagina a cidade — e todas as relações sociais — a partir do privado. Entretanto, é apenas enraizado nas desigualdades estruturais do Sul que a cidade neoliberal encontra sua expressividade máxima, não porque nossos sujeitos são “mais neoliberais”, mas por uma diferença de possibilidade política. Essa “máxima” se exprime duas formas urbanas opostas, mas que são parte da mesma totalidade. Uma dessas expressões, Verônica Gago (2018) chamou de “Neoliberalismo por baixo”, e estabelece territórios de “empreendedorismo precário”, baseados na superexploração do próprio trabalho, à margem da cidade formal, e muitas vezes constituindo enormes mercados-favela. Por outro lado, espalham-se pela América latina, África e Ásia os “bairros privados”, “zonas especiais” ou até “cidades privadas”, verdadeiros espaços de exceção criados por configurações legais inéditas ao Norte Global, mas financiados com recursos de organizações e corporações oriundas da Europa e Estados Unidos, em uma dinâmica com um quê de neocolonial, e que poderíamos chamar analogamente de “neoliberalismo por cima”.
O “neoliberalismo por baixo” é exemplarmente caracterizado por Gago a partir do mercado urbano La Salada, em Buenos Aires. O mercado surge do crescimento de assentamentos às margens da cidade formal, por muitos anos não sendo nem mesmo incluído em mapas oficiais, apesar de seu enorme tamanho. Excluídos não só das moradias e serviços formais, os habitantes desses assentamentos, muitos dos quais são imigrantes, também estão excluídos do mercado de trabalho e da economia formal. Ao longo dos anos, La Salada passa a se inserir em uma rede global de produção que abrange a China, o Oeste Asiático, e América do Sul (GAGO, 2018). Por ali, circulam todos os tipos de produtos têxteis, eletrônicos e plásticos, constituindo uma gigantesca feira viva, que integra diferentes formas de economia e habitação. Espacialmente, temos uma imagem comum aos territórios autoconstruídos, misturando estruturas permanentes e efêmeras de materiais variados, organizados em ruas mais ou menos estreitas, muitas vezes labirínticas.
A permeabilidade da racionalidade neoliberal em La Salada, mas também em muitos bairros construídos de maneira semelhante é inegável: o empreendedorismo é a linguagem dominante — todos são empreendedores de si, construindo capital, enquanto os corpos são completamente dominados pelo trabalho incessante. O etos do sujeito neoliberal é apropriado talvez da maneira mais “pura” em relação à teoria neoliberal — os trabalhadores são móveis, a economia é ferrenhamente competitiva e global, os direitos e as regulações são mínimos, e códigos morais como a religião e laços familiares são os principais organizadores dessa microssociedade (GAGO, 2018). Mas é claro que a isso se soma a dimensão punitivista e opressora do Estado que, se em algum momento se mostra presente, é para reprimir violentamente qualquer sinal de incomodo à ordem da cidade (sociedade) formal, ou angariar votos em momentos pré-eleitorais. A brutalidade no trato da informalidade também se diferencia no Sul em relação ao Norte, com algum paralelo talvez nos Estados Unidos, uma nação que também de história colonial e escravocrata. Nessas regiões, a racionalidade meritocrática do neoliberalismo se combinou cruelmente com o racismo, a aporofobia e a segregação social para legitimar a letalidade policial, que só atingirá “quem merece morrer”. Nesse sentido, a segregação espacial cumpre um papel essencial, diferenciando claramente as regiões passíveis de abordagens letais.
O outro lado da moeda, constitutivo do “neoliberalismo por cima”, são a evolução jurídica das formas urbanas de “segregação voluntária”, que por muito tempo se expressaram em “enclaves fortificados” (CALDEIRA, 2000). Como exemplo que se constitui de maneira particular ao Sul Global, podemos referenciar o caso das “cidades privadas” de Honduras. Após um golpe de Estado e a dissolução da Suprema Corte, foram aprovadas emendas constitucionais para criar as ZEDES (Zonas de Emprego e Desenvolvimento), em que corporações ganharam carta branca para redigir seu próprio tratado de governança e administrar áreas de forma semi-independente do governo central. O projeto foi assessorado por empresários americanos e europeus em diferentes fases, incluindo o ganhador do Nobel de economia, Paul Romer. Nessas áreas, não se aplicam os direitos trabalhistas, ambientais, urbanístico, civil ou tributário do resto do país, e os governantes não são eleitos. Habitantes locais foram expropriados sem direito à recurso, e a permanência de pessoas na região é sujeita à retirada de um “passaporte” privado, pago em dólares. A primeira cidade fundada sob esse regime, chamada Próspera, é dirigida por uma corporação com sede em Delaware, um paraíso fiscal, e nenhum dos membros de seu conselho é hondurenho. Um tribunal privado com juízes estrangeiros também já funciona a distância por um aplicativo, convenientemente desenvolvido por um dos acionistas da empresa que administra a futura cidade. Por fim, almeja-se a implantação de um sistema financeiro inteiramente baseado em criptomoedas, com o objetivo de tornar Próspera um “centro internacional de investimentos”. O impacto na escala do território, caso o projeto continue avançando, é previsível: comunidades tradicionais serão substituídas por condomínios desenhados pela marca Zaha Hadid[1]; a paisagem será refeita de forma homogeneizada, de aspecto “internacional”; as atividades de subsistência de populações ribeirinhas perderão, permanentemente, lugar ou sentido. De fato, os habitantes locais, incluindo indígenas, já estão sendo expulsos de suas terras, convidados a se retirar do território agora privado, ou a se tornar mão de obra barata. Como escreveu Lefebvre, “o novo ‘modo de produção’ não pode se realizar sem subverter as relações e, por conseguinte, o espaço existente” (LEFEBVRE, 2008, P.120).
Próspera foi criada a partir de relações de poder “de cima para baixo”, sem que a formação de um “sujeito neoliberal” fosse necessária a priori. De fato, o caminho para a implementação da lei das ZEDES indica não só uma atuação “de cima para baixo”, como a ativação de relações de poder que historicamente são típicas ao Sul Global. Em nossa região, a herança colonial se conecta com a forma mais autoritária de neoliberalismo, que se constrói apesar de subjetividades ou mesmo vontade política da população — bastando o alinhamento de interesses das elites locais e estrangeiras. E isso não é novidade, basta lembrar que uma das primeiras “experiências neoliberais” é a do Chile de Pinochet.
Para Lefebvre (2008, p. 120), “o capitalismo se estendeu subordinando a si o que lhe preexistia agricultura, solo, subsolo, domínio edificado e realidades urbanas de origem histórica. Adiciona setores novos, comercializados, industrializados: os lazeres, a cultura, a arte, a urbanização”. Entretanto, pensamento dialético em Lefebvre nos permite entender que nenhum movimento é unilateral, nem escapa ao contraditório. A disputa é uma característica do político, que pode ser atenuada, escondida ou até sufocada momentaneamente, mas sempre torna. No mercado de La Salada, surgem inovações que almejam a independência do sistema financeiro formal: são moedas locais, bancos informais e formas de empréstimo coletivo a partir de contribuições “comuns”. Ali, a racionalidade neoliberal, abandonada às próprias contradições, parece começar a subverter a si mesma, reavivando noções de “comum” necessárias à sobrevivência, por meio de festas e organizações político-populares emergentes. Já em Honduras, após 12 anos do golpe de Estado, o povo elegeu Xiomara Castro, uma mulher indígena, de esquerda, cujo item número um de sua campanha é derrubar as ZEDES, e o número dois, reestabelecer os planos para a reforma agrária.
Graduada em Arquitetura e Urbanismo (UnB), mestre em História da Arquitetura e Urbanismo (University of Groningen), e doutoranda em Ciência Política no IPOL-UnB.
Referências
CALDEIRA, Tereza Pires. Cidade de Muros. Edusp, 2000.
DARDOT, Pierre e LAVAL Christian . A nova razão do mundo. Boitempo, 2016.
LEFEBVRE, Henry. Espaço e Política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. Capítulo: espaço, a produção do Espaço e a Economia Política do Espaço. Pp.111–145.
GAGO, Veronica. A razão neoliberal. São Paulo: Elefante, 2018.
[1] Ver: https://prospera.hn/