A rebelião da alma

Tradução livre* de artigo de Charles Eisenstein**— de 2008, mas incrivelmente ‘dedo na ferida’ até hoje — sobre nossos distúrbios mentais e a resposta que nossa cultura dá a eles. (No site dele aqui; publicação original aqui).

Denize Guedes
11 min readJun 6, 2016
Imagens: pexels.com

Depressão, ansiedade e fadiga são partes essenciais de um processo de metamorfose que está se desenrolando no planeta hoje — e altamente significativas pela luz que jogam sobre a transição de um velho mundo para um novo.

Quando uma crescente fadiga ou depressão se torna séria, e recebemos um diagnóstico de vírus Epstein-Barr, síndrome de fadiga crônica, hipotiroidismo ou baixa serotonina, geralmente sentimos alívio e alarme. Alarme: algo está errado comigo. Alívio: pelo menos, não estou imaginando coisas; agora que tenho um diagnóstico, posso ser curado e a vida poderá voltar ao normal. Mas, evidentemente, a cura para essas condições é vaga.

A noção de cura começa com a pergunta: “O que deu errado?” Mas há um outro jeito, radicalmente diferente de enxergar a fadiga e a depressão, que começa com a pergunta: “O corpo, em sua perfeita sabedoria, está respondendo a quê?” Quando seria a escolha mais inteligente de alguém para deixar de estar apto a reunir energia e participar plenamente da vida?

A resposta está nos olhando na cara. Quando nossa alma-corpo diz “Não” à vida, por meio da fadiga ou depressão, a primeira coisa a perguntar é: “A vida como a estou vivendo é a vida certa para mim agora?” Quando a alma-corpo diz “Não” à participação no mundo, a primeira coisa a perguntar é: “O mundo como é apresentado a mim merece minha plena participação?”

E se houver algo tão fundamentalmente errado com o mundo, com as vidas e com os jeitos de ser que nos são oferecidos que se retirar seja a única resposta sã a dar? Retirar-se, seguido de uma reentrada em um mundo, uma vida e um jeito de ser inteiramente diferentes dos deixados para trás?

O objetivo tácito da vida moderna parece ser viver o mais possível e também o mais confortavelmente possível, minimizar riscos e maximizar segurança. Vemos essas prioridades no sistema educacional, que tenta nos treinar a ser “competitivos” para que possamos “ganhar a vida”. Vemos no sistema médico, em que o objetivo de prolongar a vida supera qualquer consideração sobre se, às vezes, é chegado o momento de morrer. Vemos no nosso sistema econômico, que assume que todas as pessoas são motivadas por “autointeresse racional”, definido em termos de dinheiro, associado a segurança e sobrevivência. (Você alguma vez já parou para pensar na expressão “custo de vida”?) Devemos ser práticos, não idealistas; devemos colocar trabalho na frente de prazer. Pergunte a alguém por que continua em um trabalho que odeia e a resposta frequentemente será: “Por causa do plano de saúde”. Em outras palavras, ficamos em trabalhos que fazem nos sentir mortos para ganhar a segurança de que vamos continuar vivos. Quando escolhemos plano de saúde no lugar de paixão, escolhemos sobreviver a viver.

Em um nível profundo, que chamo de nível da alma, não queremos nada disso. Reconhecemos que estamos aqui na Terra para desempenhar um propósito sagrado e que muitos dos trabalhos oferecidos estão abaixo da nossa dignidade enquanto seres humanos. Mas devemos estar com muito medo para abandonar nossos trabalhos, nossas vidas planejadas, nosso plano de saúde ou qualquer outra segurança e conforto que recebemos em troca dos nossos dons divinos. Lá no fundo, reconhecemos essa segurança e esse conforto como salário de escravos, e ansiamos por ser livres.

Então, a alma se rebela. Com medo de fazer a escolha consciente de abandonar uma vida de escravo, fazemos a escolha inconscientemente. Não podemos mais reunir a energia para atravessar as emoções. Decretamos essa retirada da vida por uma variedade de meios. Podemos adquirir o vírus Epstein-Barr, ou mononucleose, ou algum outro vetor de fadiga crônica. Podemos fechar nossas glândulas tireóide ou supra-renais. Podemos encerrar nossa produção de serotonina no cérebro. Outras pessoas vão por outro caminho, incinerando o excesso de energia vital no fogo do vício. De um jeito ou de outro, estamos nos recusando a participar. Estamos nos afastando da ignóbil cumplicidade em um mundo que deu errado. Estamos recusando contribuir com nossos dons divinos para o engrandecimento desse mundo.

É por isso que a abordagem convencional de resolver o problema para que retornemos à vida normal não vai funcionar. Poderá funcionar temporariamente, mas o corpo encontrará outras formas de resistir. Aumente os níveis de serotonina com SSRIs (inibidores seletivos de recaptação da serotonina, na sigla em inglês) e o cérebro podará alguns locais de recepção, pensando em sua sabedoria: “Ei, não é para eu me sentir bem com a vida que estou levando agora”. No fim, sempre há o suicídio, um ponto final comum dos regimes farmacológicos que buscam nos fazer felizes com algo que é inimigo do nosso próprio propósito de ser. Somente se forçando muito para permanecer no erro tanto tempo. Quando a rebelião da alma é contida tempo demais, ela pode explodir do lado de fora em uma revolução sangrenta. Significativamente, todos os massacres em escolas na última década envolveram pessoas em uso de medicação para depressão. Todos eles! Para um vislumbre de fazer cair o queixo de resultados do regime farmacológico de controle, passeie por esta compilação de casos de suicídios/homicídios envolvendo SSRIs. E eu não estou usando “de fazer cair o queixo” como figura de linguagem. Literalmente, meu queixo caiu escancarado.

Nos anos 1970, dissidentes na União Soviética eram frequentemente hospitalizados em instituições mentais e medicados com drogas similares às usadas para tratar depressão hoje. A ponderação era a de que você teria de estar louco para ser infeliz na utopia dos trabalhadores soviéticos. Quando as pessoas que tratam depressão recebem status e prestígio do próprio sistema com o qual seus pacientes estão infelizes, é improvável que elas banquem a validação básica da retirada do paciente da vida. “O sistema deve ser são — afinal de contas, ele valida meu status profissional — , por isso, o problema deve ser com você.”

Infelizmente, abordagens “holísticas” não são diferentes, ao passo que negam a sabedoria da rebelião do corpo. Quando parecem, sim, funcionar, normalmente é porque coincidem com alguma outra mudança. Quando alguém vai embora e consegue ajuda, ou faz uma mudança radical de modalidades, isso funciona como uma comunicação ritualística para a mente inconsciente de uma genuína mudança de vida. Rituais têm o poder de tornar decisões conscientes reais para o inconsciente. Eles podem ser parte de tomar o poder de volta.

Conheci incontáveis pessoas de grande compaixão e sensibilidade, pessoas que se descreveriam como “conscientes” ou “espiritualizadas”, que lutaram contra síndrome da fadiga crônica, depressão, deficiência na tireóide e por aí vai. São pessoas que chegaram a um ponto de transição em suas vidas em que ficaram fisicamente incapazes de viver a velha vida no velho mundo. Isso porque, de fato, o mundo apresentado a nós como normal e aceitável é qualquer coisa menos isso. É uma monstruosidade. O nosso mundo é um planeta em dor. Se você precisa que eu o convença disso, se você não está a par da destruição das florestas, oceanos, pantanais, culturas, solo, saúde, beleza, dignidade e espírito que subjaz o sistema em que vivemos, então, não há nada que eu possa lhe dizer. Estou falando com você se acredita que há algo profundamente errado com o jeito como estamos vivendo neste planeta.

A síndrome relacionada compreende vários “déficits de atenção” e “transtornos” de ansiedade (perdoe-me, não posso escrever essas palavras sem aspas de ironia) que refletem um conhecimento inconsciente de que algo está errado aqui. A ansiedade, como todas as emoções, tem uma função adequada. Vamos supor que você esqueça um pote no forno e saiba que esqueceu algo, só que não consegue se lembrar o quê. Você não fica sossegado. Alguma coisa lhe incomoda, algo está errado. Subliminarmente, você sente o cheiro de fumaça. E fica obcecado: será que deixei a torneira aberta? Será que esqueci de pagar a hipoteca da casa? A ansiedade lhe mantém acordado e alerta; mantém sua mente agitada, preocupada. E isso é bom. Isso é o que salva a sua vida. Eventualmente, você se dá conta — a casa está pegando fogo! — e a ansiedade se transforma em pânico e ação.

Então, se você sofre de ansiedade, talvez você não tenha “transtorno” nenhum — talvez a casa esteja pegando fogo. A ansiedade é simplesmente a emoção correspondente a: “Algo está perigosamente errado e eu não sei o que é”. Somente será um transtorno se de fato não houver nada perigosamente errado. “Nada está errado, apenas você” é a mensagem que qualquer terapeuta dá quando tenta consertar (itálico meu) você. Discordo dessa mensagem. O problema não está em você. Você tem ótimas razões para estar ansioso. A ansiedade tira parte da sua atenção de tarefas como polir a prataria enquanto a casa pega fogo, de tocar o violino enquanto o Titanic afunda. Infelizmente, a sensação de erro que você está tateando pode estar além do conhecimento do seu psiquiatra. Então, ele conclui que o problema deve estar no seu cérebro.

Similarmente, o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e, meu favorito, o transtorno desafiador de oposição (TDO) apenas são transtornos se acreditarmos que as coisas apresentadas para nossa atenção são dignas de atenção mesmo. Não podemos admitir, sem pôr à prova todo o alicerce do nosso sistema educacional, que possa ser completamente saudável para um garoto de 10 anos ficar sentado parado por seis horas em uma sala de aula aprendendo divisão longa e Vasco da Gama. Talvez a geração atual de crianças, que alguns chamam de Indigo, simplesmente tenha tolerância mais baixa para a agenda escolar de conformidade, obediência, motivação externa, respostas de certo e errado, quantificação de performance, regras e sinais (sonoros), boletins, notas e o permanente registro disso tudo. Então, tentamos forçar sua atenção com estimulantes e reprimimos sua heroica rebelião intuitiva contra a máquina destruidora da alma.

Enquanto escrevo sobre o “senso de errado” contra o qual todos nos rebelamos, consigo escutar alguns leitores perguntando: “E o princípio metafísico de que ‘tudo é bom’?” Apenas relaxe, dizem-me, nada está errado, é tudo parte do plano divino. Você apenas percebe como errado por causa da sua limitada perspectiva humana. Tudo isso está aqui para o nosso próprio desenvolvimento. Guerra: dá às pessoas maravilhosas oportunidades de fazer escolhas heroicas e de queimar carma ruim. A vida é bela, Charles, por que você tem de fazê-la errada?

Desculpe-me, mas normalmente tal ponderação é apenas um paliativo para a consciência. Se tudo é bom, é porque percebemos e experienciamos como terrivelmente errado. A percepção de iniquidade nos move para o conserto.

Não obstante, seria ignorante e infrutífero julgar aqueles que não veem nada de errado, que, alheios aos fatos de destruição, pensam que tudo está basicamente bem. Há um processo de despertar natural, em que primeiro participamos do mundo com força total, acreditando nele, procurando contribuir para a Ascensão da Humanidade. Eventualmente, topamos com algo que é inegavelmente errado, talvez uma injustiça flagrante, um sério problema de saúde ou uma tragédia próxima. Nossa primeira resposta é pensar que se trata de um problema isolado, remediável com algum esforço, dentro de um sistema que é basicamente são. Mas quando tentamos consertar, descobrimos camadas e mais camadas adentro de erro. A raiz se espalha; vemos que nenhuma injustiça, nenhum horror pode existir em isolamento. Vemos que os dissidentes desaparecidos na América do Sul, os trabalhadores infantis no Paquistão, as florestas desmatadas da Amazônia estão intimamente ligadas em uma tapeçaria grotesca que inclui cada aspecto da vida moderna. Nos damos conta de que os problemas são grandes demais para consertar. Somo chamados a viver de um jeito inteiramente diferente, começando com nossos valores e prioridades mais fundamentais.

Todos nós passamos por esse processo, repetidamente, em várias esferas das nossas vidas; todas as partes do processo são certas e necessárias. A fase de participação plena é uma fase de crescimento na qual desenvolvemos dons que serão aplicados de forma bem diferente depois. A fase de tentar consertar, de suportar, de persistir em uma vida que não está funcionando é uma fase de maturação de qualidades de paciência, determinação e força. A fase de descoberta da natureza abrangente do problema é geralmente uma fase de desespero, mas precisa ser. Propriamente, é uma fase de descanso, de quietude, de retirada, de preparação para um impulso. O impulso é um impulso de nascimento. As crises em nossas vidas convergem e são propulsoras de uma nova vida, um novo jeito de ser que dificilmente poderíamos antes imaginar existir — com exceção de termos escutado rumores de sua existência, ecos e, talvez, de termos visto relances aqui e ali, de termos sido agraciados com um breve preview.

Se você está no seio desse processo, não precisa sofrer se cooperar com ele. Posso lhe oferecer duas coisas. A primeira é autoconfiança. Confie na sua própria urgência de se retirar mesmo quando um milhão de mensagens lhe dizem: “O mundo está ótimo. O que há de errado com você? Continue com o programa”. Confie na sua crença inata de que você está aqui neste planeta para algo magnífico, mesmo quando milhares de desilusões tenham lhe dito que você é ordinário. Confie no seu idealismo, enterrado no seu eterno coração de criança, que diz que um mundo bem mais bonito que este é possível. Confie na sua impaciência que diz “bom o suficiente” não é bom o suficiente. Não rotule sua nobre recusa em participar como preguiça e não a medicalize como uma doença. Seu corpo heroico fez meramente alguns sacrifícios para servir ao seu crescimento.

A segunda coisa que posso lhe oferecer é um mapa. A jornada que descrevi nem sempre é linear e você poderá se perceber de tempos em tempos revisitando territórios passados. Quando você encontrar a vida certa, quando você encontrar a expressão certa dos seus dons, você receberá um sinal inconfundível. Você vai se sentir empolgado e vivo. Muitas pessoas lhe precederam nessa viagem e muitas mais a farão em tempos por vir. Porque o antigo mundo está caindo aos pedaços e as crises que iniciam a jornada estão convergindo sobre nós. Logo muitas pessoas seguirão as trilhas que abrimos. Cada jornada é única, mas todas compartilham da mesma dinâmica básica que descrevi. Quando tiver passado por ela, e entendido a necessidade e a retidão de cada uma de suas fases, você estará preparado para parir a vinda de outros por ela também. Seu estado, todos os anos de feitura dele, lhe prepararam para isso. Prepararam você para aliviar a passagem daqueles que virão. Tudo o que passou, cada pedaço de desespero, foi necessário para forjá-lo em um curador e um guia. A necessidade é enorme. E o tempo para tanto está chegando logo.

* Fiz esta tradução especialmente para a Lara dos Anjos, do Outro mundo possível, que está sendo bravíssima ao compartilhar com o mundo como vem lidando com seu diagnóstico de bipolaridade. Todo amor a ela. ❤

** Charles Eisenstein escreve e palestra sobre ascensão da humanidade, civilização, sistema monetário e transição para o que chama de mundo mais bonito que nosso coração sabe ser possível. Dá pra sacá-lo rapidinho aqui. ❤

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Denize Guedes

Em crise existencial no capitalismo, escrevo “A melhor próxima coisa agora” como estratégia para atravessá-la. ❤ denizeguedes.com