A complexidade do “pardo” e o não-lugar indígena

Anahata
5 min readSep 3, 2019

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Associar “pardo” exclusivamente à negritude significa aderir ao discurso de que indígenas foram dizimados

É interessante lembrar que a palavra “pardo” foi registrada pela primeira vez na história escrita brasileira para descrever indígenas. Não que ela já carregasse o significado que tem hoje, mas a carta de Pero Vaz de Caminha traz uma herança à tona importante de se considerar — a da colonialidade.

Por que lembrar disso?

O debate e os questionamentos ao redor do “pardo”, assim como tantos outros, se difundiram a partir de pensadores do sudeste do Brasil. Pode não ser óbvio para todos, especialmente paulistas, mas o que acontece no epicentro econômico do país possui uma validade e um alcance maior para outras regiões. Dificilmente o contrário acontece — é como a lógica colonialista opera há séculos.

Há alguns anos, noto que esse debate, feito pelos movimentos sociais sudestinos, praticamente só levam em consideração a existência de brancos e negros. Seguem a linha de pensamento de que pardo seria uma maneira “aceita” de apagar apenas a negritude das pessoas, especialmente daquelas filhas de negros e brancos, que possuem a pele mais clara, mas que ainda sofrem racismo.

Embora o “sujeito-pardo” tenha historicamente sido alienado de sua própria identidade, validar esse discurso é também dizer que:

1) Todos os indígenas morreram em 1500 e não fizeram parte dos processos violentos de miscigenação;

2) O processo de colonização no Brasil aconteceu da mesma forma, em todo o país;

3) Se ainda existem indígenas que sobreviveram ao processo de colonização, eles vivem em aldeamentos e são completamente capazes de se identificar e se declarar como indígenas.

Isso me chamou a atenção há algum tempo, porque venho de um lugar onde muitas pessoas carregam em seus corpos “fenótipos indígenas” — certas características que as fazem serem reconhecidas pelo Outro como “índias”. Esse Outro em geral é a branquitude, o sudestino, o estrangeiro. Na capital do estado com a maior população declarada parda e indígena, as pessoas são recorrentemente vistas como ou comparada com indígenas, mas morrem de vergonha disso.

Clipe de Jander Manauara, “Chama o cara de índio”

Essas pessoas com “fenótipos indígenas” preferem se autodeclarar ribeirinhas ou caboclas e isso não é à toa. Essa última nomenclatura já fez parte oficialmente do censo brasileiro e perdura no vocabulário nortista até hoje. Se levarmos em consideração a defesa de Câmara Cascudo, que teoriza que a palavra “cabloco/cabocla” vem da etimologia tupi, kaa’boc (que vem da floresta) ou kari’boca (filho do homem branco), fica mais compreensível entender porque essa população aderiu ao termo.*

Historicamente, a Amazônia foi a região cuja entrada dos colonizadores foi mais difícil, devido à sua geografia, e a que menos recebeu mão-de-obra escrava africana. A escravização se deu pela catequização (para os povos aliados) e pela captura de indígenas prisioneiros de guerra (para os povos inimigos). Mesmo com a legislação pombalina, que pretendia “civilizar” indígenas, a escravidão continuou, e quando chegou ao fim a “política indigenista” do diretório de Marquês de Pombal, uma nova caça se iniciou.**

É seguro dizer que a miscigenação amazônida aconteceu do sequestro ou diáspora dos povos da floresta, além do estupro da mulher indígena, medida considerada “civilizatória”.

Catequizados ou expulsos de seus aldeamentos, esses povos perderam a ligação com o local onde viviam e praticavam sua religiosidade. Ao perderem essa conexão com o território, o processo “conciliatório” estava concluído e o Estado podia não mais reconhecê-los como indígenas. Estes, obrigados a trabalhar precariamente nas cidades, na extração de borracha, e garimpos tiveram sua indigenidade vulnerabilizada.

Toda essa linha de acontecimentos incentivou a mentalidade brasileira de que é muito simples despir a pessoa indígena da identidade dela. A narrativa hegemônica de que quem não morreu fisicamente, “deixou” de ser indígena.

O Estado criou novas identidades para afastar ainda mais essa população da sua origem. O caboclo, cuja identidade pode ser traçada como o indígena que não tem mais a aldeia e vive como pessoa do campo, entrou para as classificações censitárias. No primeiro censo (1872) as categorias raciais eram: branco, preto, caboclo e pardo (o que sobrava).***

Depois, pardo foi substituído por mestiço e de lá pra cá, pardo foi retirado e renomeado diversas vezes. No censo de 1940, pardo era novamente uma categoria residual, onde também se incluíam indígenas.

Só em 1991, a categoria indígena foi incluída no censo. E mesmo com a inclusão tardia do termo “indígena”, ainda há a problemática de quem é indígena, se o Estado brasileiro só reconhece quem tem território, etnia e língua. Nas regiões da costa, de primeiro contato com colonizadores, os povos que primeiro perderam suas terras, migraram e fugiram para as periferias do que hoje são grandes cidades, mas um raciocínio colonial não lhes dá o direito de se reivindicarem como tal — ainda que a convenção 169 da OIT assegure o direito à autodeclaração.

Ser indígena é a única declaração cuja última palavra é do Outro.

No Amazonas, tem também o outro lado da moeda — a dos defensores das nomenclaturas caboclo, mestiço, pardo. Porque o marcador de “fenótipos indígena” existe na realidade concreta dessa população, mas há também o impedimento de se declarar como tal — partindo do pressuposto que houvesse esse interesse.

“A questão não é de querer ou não querer ser negro. (…) Eis a questão: se ser “negro” é uma marca fenotípica, se significa ser afrodescendente e se implica ter uma cultura de “matriz africana”, então os caboclos não são negros. Entendemos aqui o problema concreto provocado pela fusão das categorias. Fosse negro um mero agregado estatístico, não teria havido equívocos e conflitos. Mas diante da indissociação entre cor, origem e cultura, os caboclos tornaram-se invisíveis. Mais uma vez, como veremos, a questão não é meramente existencial: quando direitos fundamentais são definidos na base da identidade étnica, aceitar a invisibilidade é um suicídio político.”

‘Nação Mestiça’: As políticas étnico-raciais vistas da periferia de Manaus

Esse movimento surgiu de um grupo majoritariamente “caboclo”, que não se viu representado por movimentos que liam o pardo como negro. É claro, a defesa do termo pardo e de uma suposta mestiçagem espontânea, uma identidade “brasileira” também mostram em que espectro político esse grupo se encontra. Mas também ilustram como a narrativa vinda dos sudeste/sul, lugares que sempre exerceram influência no norte, não lhes coube. Ainda que às custas da negação da ancestralidade indígena.

Mas com o imaginário arraigado de que o indígena é preguiçoso, indolente, selvagem, ganancioso como se interessar por esse resgate?

O pardo é filho do colonizador com a índia pega no laço, a linda morena que se submeteu ao conquistador. A sua indigenidade é só uma memória distante.

* CASCUDO, Câmara. 1954. Dicionário do Folclore Brasileiro

** RAMOS, André. 2004. A escravidão do indígena, entre o mito e novas perspectivas de debates

*** OLIVEIRA, João Pacheco. 1997. “Pardos, mestiços ou caboclos: os índios nos censos nacionais no Brasil (1872–1980)”

**** VÉRAN, Jean-François. “‘Nação Mestiça’: As políticas étnico-raciais vistas da periferia de Manaus”

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